A hipocrisia do MBL


Por João Gualberto Jr.

Há certos termos que, apropriados pela política, viram bandeiras. Povo, soberania e progresso são exemplos dessas grandes ideias caras aos discursos e às intenções de quem as evoca, nem sempre as melhores. E uma das preferidas é liberdade, “essa palavra que o sonho humano alimenta – que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, conforme teceu Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência (1953).

Liberdade é uma dimensão humana difícil de conceber, um tanto ideal. Mas Kant, por sua vez, compreendia a condição de liberdade, em seu aspecto positivo, sempre de maneira relativa: para o indivíduo perante o corpo, há o condicionamento às leis e ao direito; em relação ao outro, as ações são direcionadas e restritas pela moral.

Talvez a tese mais difundida da filosofia kantiana seja o imperativo categórico: a partir dessa condição inexorável de que a liberdade do indivíduo é (e deve ser) limitada pela moral, isto é, pelos valores que conduzem o comportamento, deve-se agir sempre de forma tal que a ação possa ser alçada ao status de norma universal. É mais ou menos isso o que ele estabelece. Dito de outra forma por Jesus, faça ao outro aquilo que gostaria que o outro fizesse a você. Ou ainda, minha liberdade termina onde começa a sua, ou seja, minha ação não deve cercear a condição alheia de indivíduo livre.

Essa diretriz moral aplicada à sociedade constitui a noção de empatia em sua forma mais elementar: meu semelhante condiciona meu raio moral de ação. Não só para Kant, mas também um tanto para Stuart Mill, autor essencial da tradição liberal, a compreensão dessa condição de liberdade relativa é fundamental para a emancipação do indivíduo em sua potencialidade moral e, portanto, para a estabilidade da república e o êxito da democracia.

De toda forma, ainda que ninguém os explique, parece inconcebível que o conceito de “liberdade” e a condição de “livre” sejam explorados politicamente por facções que têm por prática corrente a mentira e a intolerância. Se a verdade liberta, como ser livre com a mentira? Se a liberdade se faz pela inviolabilidade do respeito a outro indivíduo livre, como diz Kant, e se ela se exerce idealmente na pluralidade social, conforme Mill, como odiar meu semelhante?

Essas são contradições ideológicas elementares que sustentam as ações do Movimento Brasil Livre

(MBL). No fim de semana de 11 e 12 de novembro, a agremiação realizou seu terceiro congresso em um centro de convenções em São Paulo. Aproximadamente 1.200 pessoas estiveram presentes. A campanha de arrecadação de fundos direcionou de forma assertiva a condição individual que dá nome à entidade. O apelo dizia: “com apenas um real por dia, você nos ajuda a fazer do Brasil um país mais livre!” Mais livre do que ou de quem? Do PT e de Lula, é claro, pintados à exaustão como encarnações do inferno e do diabo, em demonstração que as abordagens aos adversários ficam à margem da argumentação racional: é pura destilação de ódio.

No congresso do movimento que se intitula livre, foram expulsos uma jornalista da Folha, um do Nexo e outro do The Intercept. Este último foi convidado a se retirar porque registrava em vídeo o momento da expulsão do colega anterior. Um vigilante o obrigou a deletar o registro do celular. Mas cerceamento à imprensa combina com liberdade?

Nada surpreendente para o grupo que, especialmente em Porto Alegre, capitaneou o boicote ao

Queermuseu no espaço cultural do banco Santander. Militaram contra as obras que, no entender do grupo e de aliados, exarava o crime de pedofilia e imoralidades. Foi aquele lobby organizado contra artistas que deu origem à série atual. Censura a manifestação artística combina com liberdade?

Demonização, desconstrução de imagens, incitação ao ódio, estética de guerrilha, a captura de mentes pelo inconsciente parece ser a estratégia primordial do MBL. A milícia digital se arregimentou em 2014, nos atos anti-Dilma. Surgiu para isso: derrubar a presidente. E conseguiu. Hoje, resta comprovado o protagonismo do movimento na escalada sentimental, na contaminação do humor nacional que culminou no golpe.

Uma pesquisa realizada dentro de um curso do grupo de Opinião Pública e Marketing Político da UFMG minerou os três perfis mais movimentados do Facebook durante o período de destituição que traziam em seu nome os termos combinados “impeachment”, “fora”, “Dilma”, “presidente” ou “presidencial”. Num universo de aproximadamente 53 mil postagens realizadas até agosto de 2016, nada menos do que 11,1% tiveram como fonte os perfis oficiais do MBL e foram compartilhadas por essas três páginas analisadas (uma delas, inclusive, tinha como autor um líder da entidade no Rio Grande do Sul). Em sua grande maioria, esses posts eram imagens, memes e vídeos, numa abordagem intencionalmente estética visando a uma (re)construção narrativa dos processos políticos em curso.

Como jovens estudantes, em caráter voluntário, podem ter agido tão prolificamente e tão profissionalmente no período? Como um grupo que se define apartidário pôde ter agido de forma tão unidirecional e sido tão decisivo para a dissolução de um governo? A militância estava focada no combate à corrupção, eles alegavam. Corrupção que associaram somente aos governos do PT e, dentro desses governos, apenas ao partido dos presidentes Lula e Dilma. A imagem colou, o discurso também, e as famílias de bem embarcaram. Os partidos que integram o governo Temer, incluindo o PMDB, são majoritariamente os mesmos que compunham a base de Dilma, como os vários do “centrão”. Como se vê, caiu o PT, acabou a corrupção em Brasília.

Tanto é verdade que os jovens, antes aliados a Eduardo Cunha, Bolsonaro e à cúpula tucana, posados em fotografia para derrubar Dilma, arranjaram outras pautas para gerar tópicos de conflito no Facebook e fazê-los fermentar. É o que explica a guinada mais recente para o moralismo nas galerias de arte, para o confronto ao que enxergam ser pregação de ideologia de gênero ou socialismo nas escolas e para a eleição rotativa de artistas para bater, como ocorre com Caetano Veloso. Mas a ironia cessa aqui. Essa militância nas redes sociais, insuflada pela milícia em favor do conservadorismo de costumes nas ruas, na sociedade, tem como único objetivo jogar uma cortina de fumaça sobre o que rola dentro das instituições políticas. Foi um truque, um bombom oferecido por um pedófilo. Enquanto nos inflamávamos contra um sujeito com o pau à mostra no museu, as denúncias da PGR contra Temer eram rejeitadas, o perdão a dívidas de agropecuaristas e igrejas junto à União era aprovada, a abertura para exploração econômica em reservas indígenas e florestais era proposta e a reforma da previdência era remodelada.

Mas a quem serve o MBL? Primeiramente, a eles próprios. Mas pelo menos parte do financiamento e o espírito da estratégia vêm de fora. Dados vazados pelo Wikileaks trouxeram a informação de que dois fundadores do grupo fizeram curso em uma instituição de formação liberal nos Estados Unidos, mantida pela família Koch, um dos mais poderosos grupos do segmento de energia e petróleo do mundo. Além disso, já é conhecido que o MBL foi um braço operacional preferencial da Atlas Network no Brasil. O think-tank, também norte-americano, notabilizou-se nas últimas décadas no suporte a grupos emergentes de direita, formado especialmente por jovens, na América Latina, com intuito de solapar governos de centro-esquerda. O Atlas forma suas conexões com apoio do National Endowment for Democracy (NED), uma entidade não-governamental criada pela CIA nos governo Reagan e que, por sua vez, é financiada por Washington. O NED foi criado para patrocinar a realização de eleições presidenciais no exterior, evidentemente, aliando-se a grupos favoráveis à influência dos EUA, que vende democracia entregando imperialismo soft por meio da atuação dessas entidades invisíveis. É claro que essas conexões estrangeiras do MBL não são reveladas, muito menos os fins por trás das parcerias. Mas essa falta de transparência combina com liberdade?

Apesar das colaborações vindas dos Estados Unidos, deduz-se que há necessidade de outros meios para se bancar o movimento, que ganhou vulto inegável desde que nasceu. Como já foi mencionado, o congresso da milícia digital lançou o apelo por doação de R$ 30 por mês para livrar o Brasil. Além disso, foi publicado na imprensa que integrantes do grupo mantiveram por certo tempo a prática de furtar dados de internautas que acessavam um site noticioso mantido pelo MBL com o fim de minerar criptomoedas, um ouro que é real apesar de virtual. Para se ter noção, um bitcoin, a criptomoeda mais famosa que existe, é cotada a mais de R$ 60 mil hoje, e é cada vez maior a quantidade de empresas de serviço que aceitam pagamento por esse tipo de dinheiro que não lastro nem órgão de controle de meio circulante. Uma prática dessas pode ter alguma relação com liberdade?

O site de notícia recentemente desacreditado, identificado como anexo do movimento para fazer política travestido de jornalismo. Era um repositório de notícias falsas publicadas para achacar adversários. Um deles, Alexandre Schneider, que pediu demissão da secretária de Educação de João Doria. Ele era crítico às ações pouco democráticas da militância do vereador Fernando Holiday (DEM), um dos cabeças do MBL, em sua cruzada pela tal escola sem partido. O grupo, por meio do site noticioso, teria sido influente para que o secretário perdesse sustentação na prefeitura. E o mesmo tipo de perseguição vinha sendo feito tendo por alvos jornalistas, artistas e outros adversários da política partidária. O que jornalismo fake tem a ver com liberdade?

Em maio do ano passado, foram publicados áudios de conversas telefônicas que atestaram a colaboração financeira de PMDB, PSDB, DEM e Solidariedade aos espontâneos protestos pró-impeachment convocados pelo apartidário MBL. Das intenções isentas, apartidárias e voluntárias dos profissionais do MBL nasceram sete vereadores e um prefeito em 2016, todos eleitos por partidos de centro-direita. A atuação do movimento, especialmente nas redes, foi considerada decisiva para as vitórias dos prefeitos de São Paulo e Porto Alegre, ambos do PSDB. E, agora, no congresso da semana passada, publicaram a meta de eleger uma bancada na Câmara, isso mesmo, de 15 deputados federais. Um dos cotados, dizem, é a ascendente liderança nipo-brasileira do MBL, por certo, o rosto mais identificado à sigla.

Essa é uma perna do projeto para 2018. O outro é prosseguir no confronto ao PT, evidente. Um youtuber virulento de direita, que também lidera o grupo, em seu momento de palestra solo, pediu para a plateia imaginar que ele era o Lula, candidato a presidente, e inflamou os presentes para que direcionassem ao “Lula” toda a contrariedade que pudessem trazer à tona de seus fígados. Outro slogan difundido naquele fim de semana: “não seja um hater de sofá”. Incitação ao ódio e à violência, o que isso tem a ver com liberdade?

É difícil resistir à tentação de confrontar essa ficha corrida com os piores sentimentos. Mas deixe o tempo cuidar disso. Quem semeia mentira, engodo e violência, aproveitando-se da ignorância alheia em proveito próprio, não há de colher bom fruto, ainda que hoje posem como jardineiros de competência. Como o pau da imoralidade pode erguer a bandeira da liberdade? O Brasil há de se ver livre de uma incongruência dessas.

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.