A urgência de uma TV Pública nacional

A Empresa Brasil Comunicação enfrenta sua maior crise de identidade


Por Luciano Alkmim

Reprodução Internet

O produto da televisão pública é a programação, voltada para a formação crítica do telespectador. O produto da televisão comercial é a audiência, baseada no entretenimento. Na TV estatal, o produto é a divulgação de ações e atos do Poder Executivo. São televisões complementares, segundo a sábia ordenação da nossa Constituição Federal. TV pública, portanto, não se confunde com TV estatal nem com TV comercial privada.” Jorge da Cunha Lima – Jornalista, escritor, ex-presidente e membro vitalício do Conselho Curador da TV Cultura de São Paulo 

O imenso silêncio nas ruas de Brasília na noite de 26 de Fevereiro de 2008 contrastava com o frenesi intenso na Câmara dos Deputados. Clodovil, parlamentar por São Paulo, e seus assessores se destacavam no plenário com ternos muito bem cortados. Na tribuna, ACM Neto bradava querendo criar um clima beligerante. Nos pequenos intervalos a tribuna recebia o baixo clero que mandava cumprimentos aos aniversariantes de suas bases eleitorais e outras mensagens sem importância. A casa estava lotada. A pauta era a votação para a criação da Empresa Brasil de Comunicação e seu mais importante veículo, a TV Brasil.

Mas aquela votação não acontecia pelo simples fato do governo federal ter interesse em criar uma TV para si. Ele já tinha seus veículos. A TV Educativa, ligada à Fundação Roquete Pinto, fazia parte do conjunto, assim como a Radiobras, com seu caráter marcadamente institucional imprimido pela Hora do Brasil. Na verdade aquela votação era o culminar de mais de um ano de reuniões e consultas a vários setores e instituições que resultaram no Projeto de Lei 11.652/2008, que trazia mudanças significativas na estrutura da comunicação federal. Alguns pressupostos previstos no PL dificultavam a apropriação editorial da TV Brasil pelo governo, como a instituição de um Conselho Curador que, além de referendar o presidente da emissora, definiria a programação. Outro ponto importante foi o mandato do presidente da emissora. Assim como em várias TV’s Públicas de outros países, o presidente da TV Brasil teria um mandato de quatro anos não coincidentes com o do presidente da República. Assim, um presidente da República eleito só poderia indicar os nomes para o conselho curador e para a Presidência da EBC na metade de seu mandato, conferindo um certo grau de independência e autonomia à estrutura de comunicação. Todos esses critérios foram sublimados pelo atual governo federal.

Formalmente, o início de todo o processo de construção da EBC e da TV Brasil foi o 1º Fórum Nacional de Tv’s Públicas, que aconteceu em Maio de 2007, em Brasília. O resultado desse encontro foi a Carta de Brasília. Nela, os objetivos são claros: “Nós, representantes das emissoras Públicas, Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas e Comunitárias, ativistas da sociedade civil e militantes do movimento social, profissionais da cultura, cineastas, produtores independentes, comunicadores, acadêmicos e telespectadores, reunidos em Brasília, afirmamos, em uníssono, que o Brasil precisa, no seu trilhar em busca da democracia com igualdade e justiça social, de TVs Públicas independentes, democráticas e apartidárias.” A carta continua: “Podemos afirmar que este nosso clamor soma-se aos anseios da sociedade brasileira. Neste processo, o Brasil debateu intensamente a televisão que quer e pretende construir, quando estamos à porta da transição para a era digital”.  

 

Alfredo Manevy – Foto tirada em 28/06/2010 pelo Garapa – Coletivo Multimídia

Para Alfredo Manevy, ex-secretário executivo do Ministério da Cultura, a TV Brasil nasceu de uma ampla discussão do setor audiovisual em 2006, capitaneada por Gilberto Gil, que era Ministro da Cultura na época. “Criou-se o Fórum das TVs Públicas e havia a expectativa de um novo campo público de televisão”, disse Manevy . Na realidade, durante mais de um ano, representantes de todas as emissoras públicas do país tiveram espaço na discussão para a criação da TV Brasil. José Roberto Garcez, ex-diretor de Rede da TV Brasil, lembra que “uma demonstração concreta de que o projeto de construção da Rede Pública foi bastante participativo é que o documento que dita as bases e os conceitos da cooperação entre as emissoras públicas estaduais só ficou pronto mais de um ano após a criação da EBC”.

O espaço concedido aos vários atores sociais para a construção da TV Brasil criaram características inovadoras para a televisão brasileira. Segundo Garcez, uma das características diferenciadoras da TV Brasil é que ela tinha a vocação de ser uma televisão nacional. Para ele, é natural que a mídia comercial concentre suas atividades onde é maior a possibilidade de vendas. “Ela atua onde há patrocinadores e consumidores para seus produtos. Por isso, as redes comerciais de televisão cobrem os fatos do Rio de Janeiro e de São Paulo como se fossem de interesse nacional. Dessa forma, uma pessoa que se informe apenas pela mídia comercial e more em Boa Vista, Roraima, terá mais informações sobre o congestionamento na Avenida Paulista ou na Avenida Vieira Souto do que uma informação de Manaus ou Belém”, diz o ex-diretor da TV Brasil.

Esse elemento regional deu legitimidade ao projeto e colocou as TV’s educativas dos estados como participantes do processo de criação da TV Brasil. Depois de sua inauguração, as emissoras regionais tinham assento no Comitê de Rede e deliberavam sobre grade da TV Brasil. Não havia mais um conceito vertical de “cabeça de rede”. A emissora, durante seus primeiros anos, trabalhava a grade com as TVs estaduais. A Rede Minas de Televisão, por exemplo, chegou a ter 30 minutos de segunda a sexta em rede nacional na grade da TV Brasil. Além de ter coproduções em três programas que também eram transmitidas para todas as emissoras culturais e educativas do país.

Assim como Minas Gerais, os demais estados, fora Rio de Janeiro e São Paulo, não têm mercado que sustente projetos mais arrojados em emissoras de televisão comerciais. Como todos sabem, essas emissoras são praticamente repetidoras do sinal do Rio de Janeiro e São Paulo. Por isso, é tão importante a participação do estado para garantir, nas emissoras Culturais e Educativas estaduais, a produção de conteúdos, a aquisição e acordos de parcerias com outras emissoras para veiculação de programas e o incentivo à produção independente com editais públicos e compra direta. Sem esses pilares, uma grade de programação está totalmente dependente de uma cabeça de rede. A TV Brasil, quando surgiu, tinha um projeto que aos poucos poderia garantir essa conquista. A Rede Minas, A TV Cultura, do Pará, e a Aperipê, de Sergipe, são exemplos de emissoras educativas e culturais que trilharam, cada uma a sua maneira, o caminho estabelecido pela TV Brasil de parcerias e coproduções.

Uma grande responsabilidade das emissoras de televisão é o papel que tem dentro da cadeia produtiva da cultura. Ela que deve fomentar, divulgar e estabelecer pontos de apoio para artistas e projetos. Como artistas mineiros, escritores baianos, músicos sergipanos, atores goianos, artistas plásticos gaúchos, produtores paraenses, agitadores culturais acreanos, vão mostrar seus trabalhos? Como eles, juntamente com designers, arquitetos, jornalistas, estudantes, filósofos e profissionais que se importam com a cidade ou estado, onde vivem, vão poder discutir esse lugar, se não na TV Pública?

A capilaridade da mídia na sociedade tem uma força inigualável e seus resultados podem ser perversos. Grande parte da população não tem os veículos de comunicação como fonte de informação. Ela a têm como única oportunidade de esforço intelectual. Assim se formam a opinião e os valores de uma sociedade. Isso define o comportamento dela.

A situação atual da TV Brasil requer cuidados. Muitas coisas aconteceram de seis anos pra cá e os últimos fatos colocam a EBC em um momento grave. Sempre atento para os acontecimentos no âmbito da comunicação pública, o jornalista e escritor Jorge da Cunha Lima afirma: “A EBC partidarizou sua administração e programação. Há no Brasil 23 televisões públicas que deveriam se constituir numa rede nacional, com participação da EBC que só pensa em ser cabeça de rede e não parte do sistema. A questão não é fechar, mas abrir, conforme a lei que a criou.”

Luciano Alkmim é jornalista e ex-diretor de programação e produção da Rede Minas de Televisão