Acervos em risco

Enquanto duas mil obras agonizam no Museu de Arte da Pampulha, que teve cancelada a construção de anexo para armazenar sua coleção, a Prefeitura quer gastar R$ 1,3 milhões para transferir Museu da Imagem e do Som para o Cine Santa Tereza, em manobra que coloca em risco o acervo


por Lucas Simões

Reprodução Internet

Diante à decisão relâmpago do prefeito Alexandre Kalil (PHS) em determinar a transferência de todo o acervo e atividades do Museu da Imagem e do Som (MIS) para o Cine Santa Tereza em inacreditáveis 20 dias, museólogos, produtores e associações de audiovisual prometem recorrer ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para barrar a mudança, caso não haja diálogo. A Prefeitura pretende investir R$ 1,3 milhões na transferência, vista como arbitrária por profissionais e especialistas de audiovisual e de preservação do patrimônio. Enquanto isso, o poder público permite que outro acervo histórico da cidade, o do Museu de Arte da Pampulha (MAP), agonize em condições precárias, após desistir de realizar a construção do anexo do museu que abrigaria seu importante acervo de obras de arte.

O assessor de comunicação de Kalil, Chico Maia, diz que a decisão de transferir o MIS para o Cine Santa Tereza não será revista. “Que eu saiba, esse assunto (do MIS) não tem nem chegado ao gabinete (de Kalil). Está totalmente fora da pauta do prefeito”, disse. Ele também contesta a informação de que a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS), presidida por Ana Laender, esposa de Kalil, possa ocupar o casarão do MIS, na avenida Álvares Cabral, após a transferência. “Não sei de onde saiu essa informação, mas é algo que não existe”, afirmou.

O presidente da Associação Curta Minas, Marco Aurélio Ribeiro, ainda busca o diálogo com a Prefeitura antes de recorrer à Justiça. “Tivemos a informação de que o prefeito deve marcar uma reunião em breve com o setor audiovisual, e que teria havido um primeiro recuo. Mas, se isso realmente não acontecer, vamos reunir todas as denúncias técnicas e ir ao Ministério Público, que já tem ciência do caso”, diz Marco.

Os funcionários do MIS foram comunicados oralmente da transferência na quarta-feira (3), em anúncio feito pelo Diretor de Museus e Centros de Referência da Fundação Municipal de Cultura (FMC), Yuri Mello Mesquita. “Não houve uma reunião, nenhum estudo prévio apresentado ou feito em conjunto com profissionais da área ou do próprio MIS. Só nos comunicaram verbalmente da mudança”, diz o museólogo do MIS, Victor Louvisi.

Com nove anos, o MIS, antigo Centro de Referência do Audiovisual (Crav), abriga cerca de 90 mil itens históricos da memória da cidade, como películas, fotografias, máquinas fotográficas, cartas, roteiros de cinema e fitas VHS, datados de 1908 até os dias de hoje. As peças estão armazenadas em um espaço de 480 m², no casarão tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com a decisão da Prefeitura, todo o acervo deverá ocupar um local menor, no galpão multiuso de 150 m² do Cine Santa Tereza, onde hoje acontecem exposições e oficinas. A solução apontada pela Prefeitura seria a ampliação do espaço para 300 m² com a construção de um segundo andar, segundo Yuri Mesquita, diretor de Museus e Centros de Referência da FMC. “Haveria uma adaptação dos 150 m². Seria criado um novo pavimento metálico, dobrando a área. Mas, isso tudo ainda está em estudo preliminar, algo que deve ser concluído até a semana que vem”, diz.

Há apenas três anos, a Prefeitura investiu R$ 600 mil para reformar o casarão e adaptá-lo ao acervo do MIS. E agora pretende destinar mais R$ 1,375 milhões para transferir o mesmo acervo para o Cine Santa Tereza, que também foi reformado recentemente ao custo de R$ 4 milhões, sendo reaberto ao público com mostras de cinema em março do ano passado. Entre as reformas previstas no Cine Santa Tereza, além de um segundo pavimento para receber o MIS, estão a instalação de uma porta corta-fogo para melhorar a qualidade acústica dos filmes e a elaboração de um estudo para implantação de um núcleo de produção digital com o objetivo de formar profissionais de audiovisual. A FMC não deu mais detalhes sobre esse projeto.

Mesmo com as reformas anunciadas, a doutora Juçara Vitória Freitas, professora do curso de Restauração de Bens Culturais da Escola Belas Artes da UFMG, não se convence de que a mudança atenda a “uma antiga demanda do setor (audiovisual)”, como diz reportagem publicada no site de notícias da PBH de dia 4 de maio. “É nitidamente um gasto de dinheiro mal feito”, critica. Ela também diz que “é impossível fazer uma transferência de acervo em 20 dias”. Mas o principal problema da medida da prefeitura não é o espaço onde o acervo do MIS seria realocado, e, sim, as “condições arbitrárias” impostas pelo poder executivo.

“Não há como você tirar quase 100 mil itens de um acervo adaptado há três anos para aquele lugar e recolocar tudo em outo espaço em apenas 20 dias. Transferir ou instalar um acervo é algo que se faz em meses, com muito cuidado, diálogo e com a escolha ideal do imóvel, o que parece que já havia ocorrido com o MIS. Essa medida soa como uma ordem para desocupar uma residência às pressas ou para deixar um acervo largado. O acervo necessita de preparo da equipe para retirar as peças, fazer uma logística de transporte menos danosa possível, estamos falando de um manuseio e um planejamento que não são fáceis e que precisam de muita atenção”, diz Juçara.

Todo o casarão da avenida Álvares Cabral foi adequado para respeitar as especificidades de guarda do acervo do MIS. As últimas adequações foram concluídas recentemente. “No fim do ano passado, trocamos as estantes estáticas pelas móveis, que são mais práticas e ocupam menos espaço, além de guardar mais acervo. Foram estantes encomendadas e planejadas para este espaço. Teríamos também que transferir um gerador de energia enorme, adaptar estruturas climatizadas das salas. Tudo isso é complexo e pode ser prejudicial ao acervo. Eu não sei como levar isso para outro lugar em 20 dias”, diz o museólogo do MIS, Victor Louvisi.

No Cine Santa Tereza, o clima também é de apreensão. O produtor cultural do cinema, Gilberto César Vieira, alerta para um fatídico choque entre as programações dos dois espaços, ao menos neste ano. “Além da questão de infraestrutura para receber o MIS, o que é impossível para nós, o Cine Santa Tereza teria que interromper uma programação bem extensa, fechada até dezembro, incluindo mostras especificas, como o Anima Mundi. E o MIS também tem uma programação de visitas de escolas já esquematizada que não conseguiria ser transferida. Seria um choque e uma perda inestimável para a cultura audiovisual da cidade”, alerta Gilberto.

Em resposta às críticas recebidas, o Diretor de Museus e Centros de Referência da FMC, Yuri Mello Mesquita, afirmou que “vai garantir que não haja nenhum dano ao acervo”, caso a transferência ocorra nas condições impostas pela Prefeitura. “Nenhuma peça vai deixar o MIS sem segurança. Todo o acervo só será transferido quando as adequações físicas e técnicas forem feitas no (Cine) Santa Tereza”, frisou, sem saber confirmar se o prazo para as obras são compatíveis com os 20 dias dados pela prefeitura para o desalojamento do MIS.

Mesquita ainda justificou que a medida da Prefeitura está alinhada à “política de redução e otimização de espaços que empenham funções congêneres”. Porém, ele não soube explicar porque, mesmo nesse contexto de redução de gastos, a prefeitura decidiu investir R$ 1,375 milhões para unificar o MIS ao Cine Santa Tereza.

Diante disso, os vereadores Pedro Patrus (PT) e Arnaldo Godoy (PT) solicitaram uma audiência pública para tratar do tema, que acontece nesta segunda (15), a partir das 19h, na Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Os dois parlamentares realizaram uma visita técnica ao MIS e ao Cine Santa Tereza, na semana passada. “É uma situação escandalosa. A prefeitura quer colocar um ônibus dentro de um fusca. O galpão no Cine Santa Tereza será, logicamente, pequeno para receber o acervo e os funcionários do MIS. Onde as pessoas vão trabalhar? Isso vai comprometer a atividade dos dois espaços. Por isso, queremos que seja feito um debate com todos os atores envolvidos e que a Prefeitura possa ouvi-los. A intenção é que seja suspensa essa ordem de 20 dias de despejo do MIS”, diz Pedro Patrus.

MAP

Foto: Carlos Alberto

Na mesma audiência pública, os vereadores também vão denunciar as más condições do Museu de Arte da Pampulha (MAP), integrando ao conjunto arquitetônico desenhado por Oscar Niemeyer e eleito Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco no ano passado. Sem exposições permanentes e com raras mostras temporárias, o museu recebe festas e pequenos shows de jazz, através do Circuito Pampulha Noturno. Mas abriga um acervo de cerca de 1.500 peças, incluindo um auto-retrato de Guignard, além de obras de Di Cavalcanti, Inimá de Paula, Ivan Serva e Maria Helena Andrés, todas alocadas em condições precárias, segundo a denúncia dos vereadores. “O MAP não foi feito para armazenar obras de arte. Não há esse espaço lá. E, mesmo assim, guarda um acervo poderoso de maneira bem precária, sem climatização ideal, com pouquíssimo espaço. Há esculturas deterioradas e quadros danificados”, diz o vereador Pedro Patrus.

Na última sexta-feira (5), servidores do MAP denunciaram, através da “Carta de Apoio ao Museu de Arte da Pampulha”, que o museu vem sofrendo cortes orçamentários anuais. O projeto Arte Contemporânea, destinado a mostras e exposições de artistas que dialoguem com a arquitetura da Pampulha, teve redução de mais de 50% do orçamento neste ano. “Estão privilegiando eventos festivos em detrimento das ações de curadoria de arte do museu. Não há, sequer, um catálogo atualizado de todas as obras, esculturas, quadros e peças que temos aqui. São cerca de 2 mil obras, mas não temos certeza do acervo exato. Sem contar que as infiltrações nunca param e essas obras estão aí, resistindo”, diz uma servidora que pediu anonimato.

Construído em 1943 para abrigar um cassino, o MAP funciona como museu desde 1950, mas nunca passou por uma restauração de peso. Em 1954, vários problemas estruturais surgiram com o rompimento da represa da Pampulha, o famoso e trágico acidente. “Há relatos de problemas de infiltração muito antigos e em toda a estrutura, deformações na construção, incluindo as áreas de reserva técnica, a antiga adega do cassino. E muitas, muitas obras deterioradas”, diz Pedro Patrus. “Além disso, desde 2012 o MAP não tem curador e, desde 2014, não tem um museólogo”, completa o vereador.

O próprio ex-diretor de Patrimônio Cultural da FMC e atual chefe de departamento do MAP, Carlos Henrique Bicalho, admite que obras de arte do acervo do MAP estão deterioradas. Mas apenas aquelas armazenadas no Galpão do bairro São Bernardo. “Parte do acervo, hoje, está condicionado neste galpão, além de também estar no Mercado de Santa Tereza e outra parte administrada pela empresa de armazenamento Damasceno. No Galpão do São Bernardo, teve uma chuva de vento e pedra. As obras estavam encaixotadas, mas a gente não vai lá todo dia olhar, e elas acabaram danificadas”, diz Bicalho.

O projeto de restauração do MAP e a construção de um anexo para abrigar o acervo do museu está pronto desde 2014. Segundo Bicalho, a obra completa está orçada em aproximadamente R$ 25 milhões, o que inviabilizou o financiamento integral pelo BNDES no ano passado, através da Lei Rouanet. Por isso, a Prefeitura optou por realizar apenas a reforma do prédio original do MAP, orçada em cerca de R$ 5 milhões. “Como havia uma solicitação anterior para o financiamento da reforma do MAP e da construção do anexo, nós cancelamos essa solicitação e pedimos apenas a da reforma do prédio original, com o apelo de que agora o MAP faz parte do Patrimônio Cultural da Humanidade”, diz Bicalho. A Prefeitura aguarda apenas uma revisão do projeto orçamentário feita pela Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) para encaminhar a nova proposta de reforma ao BNDES.

Sem a construção do anexo, a solução provisória encontrada pela administração municipal será abrigar o acervo do MAP em um novo galpão, situado ao lado do Arquivo Público Mineiro, na rua Itambé, no bairro Floresta. “Só para esclarecer, o MAP tem, sim, condições de abrigar o seu acervo. Só não tem condições de expandi-lo. Por isso, teremos esse galpão novo, todo aparelhado com contêineres próprios para a reserva técnica. As obras de arte ficarão lá até a reforma do MAP estar completa. Quando isso acontecer, todo o acervo retorna ao MAP”, frisa Bicalho.

Entretanto, a Horizontes Arquitetura e Urbanismo, empresa contratada pela Prefeitura para elaborar o projeto arquitetônico de reforma do MAP e construção do anexo, informou, em análise publicada em seu site, que “mesmo após estas reformas, o MAP não oferecerá condições adequadas para guarda e exposição de obras de arte”. Isso porque, segundo a empresa, “seus grandes salões envidraçados não oferecem controle de luz, umidade e calor. Além disso, “sua reserva técnica, adaptada no ‘subsolo’, é tecnicamente inadequada e não tem espaço suficiente para todo o acervo”, diz a análise.

O projeto arquitetônico do anexo do MAP, inspirado na arquitetura de Niemeyer, previa um grande salão de exposição com mais de 90 metros lineares de paredes “cegas” e um pé direito de 5,4 m. Além disso, o anexo também abrigaria laboratórios de pesquisa e restauração, reservas técnicas para esculturas, pinturas e papéis, centro de documentação e centro de administração, oficinas de montagem, foyer e espaços de apoio, como cafeteria, lojas e sanitários públicos.