Área VIP é casa grande


Por João Gualberto

A “Folha de S.Paulo” publicou que um determinado evento, de dimensão grande, estrelado por um guru espiritualista brasileiro, terá área VIP com ingresso a R$ 800. Não apenas essa quantia salta aos olhos, mas também a existência de um reservado distinto num encontro de caráter espiritual. Será que existe área VIP no além? Só que, aí, em vez de “very important person”, seria “very important soul”, ou seja, VIS. Mas não seria VIS como plural de vil, afinal, diferenciar-se como mais elevado é o inverso de aviltar-se.

Por que nós, brasileiros, temos fixação por área VIP? Por que essa necessidade de sentir-se e fazer-se distintamente importante? É o camarote da boate, a porção interna ao cordão que o trio elétrico puxa (aquém da pipoca à margem), é o acesso ao backstage, ao camarim dos artistas, ao vestiário dos jogadores, é estar mais dentro entre os internos.

Na maioria desses casos, associados ao lazer, os espaços aos diferenciados garante, e por isso ajuda a explicar, acessos diferenciados: às estrelas, às comidas e bebidas, ao som e à imagem etc. Ser VIP é acessar um padrão de consumo especial. Paga-se mais por isso e, portanto, a régua que separa os mais internos entre os que entram é o bolso. Pode-se enxergar alguma justiça nessa transposição do privilégio de renda para o privilégio de acesso a bens e serviços: quem pode, pode. Não é assim, naturalmente, na sociedade, visível na roupa e no sapato que são usados, no restaurante em que se come, na escola onde o filho estuda ou no salão onde se corta o cabelo? O caminho curto entre o poder e o fazer é óbvio. Agora, por que tão poucos vivem no bom e no melhor é que é o xis da questão.

Para as relações de consumo, são mais importantes as pessoas habilitadas a pagar mais caro. Assim, o mais rico é mais importante do que o menos rico na ótica de quem vende. Como as relações mercantis passaram a mediar um número e um volume cada vez mais variados de interações sociais, direitos de cidadania quase que se fazem coincidir com a condição de consumidor. A importância de um sujeito é aferível a zeros à direita. O melhor cidadão é aquele que gira mais fortemente a roda da economia, não só comprando como produzindo, isto é, recrutando a força produtiva de mais gente – obviamente menos rica.

Mas um reservado para as pessoas mais importantes nem sempre existe para garantir a elas bens e serviços especiais. Um aeroporto é um lugar público ou de concessão pública a que, em tese, qualquer indivíduo tem acesso. Apesar da vigilância, cadeiras acolchoadas e ar condicionado estarem disponíveis a todos que adentrem o saguão, por que aguardar em uma área VIP enquanto a chamada para o voo não é anunciada? Para não se misturar. Ou há outro motivo?

Distinguir-se, para além da certeza do tamanho da conta corrente, para além da tranquilidade psicossocial, para além do que se aparenta ser, do que se ostenta. Apartar-se fisicamente por uma vidraça, uma corda, uma linha real que separa ambientes. Ainda que se pague caro, reservar-se numa salinha não garante acesso a nada de especial? E não é especial apenas passar alguns minutos na salinha especial reservada aos especiais para que estes não tenham contato com o resto? Vale o quanto se paga para quem é capaz de pagar.

Como muito do que se interpreta de nossas identidades socioculturais, a área VIP é marca que remonta à herança lusitana, sempre e especialmente, ao desembarque da corte no Rio de Janeiro, em 1808. Desde aquela época, e provavelmente antes, capital social era tradução das conexões interpessoais, do contato com a nobreza ou, ao menos, ao que ela contagiava em seu rastro. Importante mesmo era quem tinha acesso ao séquito de dom João e, depois, dom Pedro, quem frequentava a Quinta da Boa Vista, quem recebia convite para bailes e banquetes no Paço Imperial.

Mas há controvérsia sobre essa origem portuguesa do VIP, assim como a identificação dela como a gênese do patrimonialismo estatal, do jeitinho brasileiro e do mau-caratismo inato e exclusivo à política. Quem canta essa pedra é Jessé Souza. Ele questiona que, antes de formar um portfolio de capital social, frequentando altas rodas, um indivíduo necessariamente tinha outros atributos prévios, seja capital financeiro, seja cultural.

Em seu mais recente livro, A Elite do Atraso, best-seller há mais de mês, o sociólogo argumenta que o traço mais determinante do que somos hoje como povo e sociedade não é a herança lusitana, mas a escravidão, que, abolida após 350 anos e centenas de milhões de africanos e descendentes exterminados como carvão de caldeira, persiste ainda, com outros métodos de exclusão, ou melhor, de segregação.

Jessé não é consenso sequer na esquerda. Polemista, mas inegavelmente corajoso. Nesta obra, ele constrói uma ousada crítica ao paradigma de vira-latismo como matriz de nossa autointerpretação, forjada no senso comum a partir dos pensamentos de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e outros e por meio dos meios de comunicação. Segundo o sociólogo, esse estigma assimilado serve de legitimação e perpetuação dos privilégios de classe em prejuízo da nova “ralé”, os escravos da atualidade.

Para construir sua tese e desconstruir a hegemônica – tão poderosa que até para o pobre a razão de seu malogro –, Jessé lembra do estado de abandono a que foram relegados os escravos libertos e ressalta o quanto esses indivíduos sem amparo, sem lastro e sem “virtude” carregam no lombo, desde o fim do século XIX, o desprezo e o ódio das camadas privilegiadas, temerosas de uma “revolta negra”.

A Elite do Atraso sublinha também o pacto antipopular, visando à reprodução do poder, entre a elite e a classe média, esta agente daquela e afogada na lógica do vira-latas, do brasileiro cordial, da malversação intrínseca e restrita à política. Esse pacto, segundo o autor, escamoteia a verdadeira corrupção, que é a privatização do patrimônio coletivo pelos endinheirados por diversas formas, e age sem peias contra qualquer esforço governamental de caráter popular que vise à redução de desigualdades no acesso a conforto material. O “golpeachment” de 2016, sustentado pela seletividade da Lava Jato, foi uma demonstração da eficácia desse acordo secular entre a elite e a classe média (que, na política, percebe-se desde o golpe que instaurou a República em 1889).

E o que tem o discurso de Jessé com o tema que vinha sendo desfiado aqui? Tudo bem que a Quinta da Boa Vista tenha sido “a” área VIP do Rio de Janeiro do século XIX, porém, o convite do imperador demandava requisitos e, de fato, eles se sustentavam nos lucros provenientes da escravidão. Se os sub-humanos estão marginalizados, hoje, nas quebradas e nos presídios, se os novos escravos atuam como serventes, babás, domésticas e motoboys – se não se renderam à esperança arriscada da prosperidade pelo tráfico –, o espaço VIP é a nova casa grande. A autodistinção que dispensa qualquer sopro de empatia, o esforço de se reconhecer especial e diferente do resto, da ralé, a medida do dinheiro que determina quem é mais interno dentre os que estão dentro, essas características guardam semelhança com a clareza de classe, de facílima verificação pela cor da pele, daqueles tempos de império e de colônia. E acompanhando o sentir-se e fazer-se “important”, está o mostrar-se. Jessé Souza afirma que “o consumo diferenciado deve aparecer como expressão de uma sensibilidade também diferenciada. O rico que só tem dinheiro é um rico branco” (p 148).

Assumindo que a área VIP seja traço fixo de nossa personalidade obcecada na autoidentificação como distinto, isso remete à segregação física da escravidão, tanto antigamente quanto hoje. Ela desnuda a predileção pelo exclusivismo. Gosto não menos obsessivo. Por que o rico brasileiro quer ser rico sozinho?

Por falar em coragem, o ator Pedro Cardoso, que anda dizendo pelos cotovelos o que muita gente tem vontade, mas não faz, apareceu em um vídeo na “timeline” descrevendo uma distinção entre o Brasil e a Europa. Ele morou recentemente em Portugal, e disse que, por lá, as pessoas têm noção de que não adianta de nada ter uma Ferrari se as rodovias estiverem todas esburacadas. E, estando as estradas em boa condição, graças ao investimento público com aval da consciência coletiva, basta um carro bom para curtir a velocidade com segurança. Não é necessário uma Ferrari.

Então, de que vale ser o único sadio entre os doentes? De que vale ser o único sábio entre os idiotas? Qual o prazer de ser o 1% com renda equivalente a 36 vezes à dos 50% mais pobres do país (IBGE)? O rico europeu ou norte-americano parece ter assimilado, há muito tempo, a sagacidade de perceber o seguinte: estando no topo da pirâmide social, o enriquecimento dos menos ricos ampliará a demanda por bens e serviços que ele, o rico, é quem fornece. Assim, seja direta ou indiretamente, a prosperidade geral é melhor ainda para quem já é privilegiado.

Acontece que, talvez, o rico norte-americano ou europeu tenha preferido não se livrar das tarefas domésticas mais comezinhas, como a limpeza de casa, e do acompanhamento de seus filhos. Aí que está: ser rico sozinho garante a manutenção do amplo estoque de subempregados baratos, pedreiros, empregadas, porteiros etc. Isso pela perspectiva racional/pragmática. Pela subconsciente/emocional há o tesão em ser VIP, em ser “nhonhô”. O egoísmo é, antes de tudo, uma burrice sub-humana. Uma hora o caldo entorna.

Política

João Gualberto

Jornalista, economista e cientista político.