Babu Santana longe dos estereótipos

Homenageado na 21ª Mostra de Tiradentes, ator carioca celebra duas décadas de carreira e, após viver Tim Maia nos cinemas, se prepara para encarar o boxeador Maguila


por Lucas Simões

Foto: Leo Lara

Aos 38 anos, com duas décadas carreira e mais de 20 filmes no currículo, a ficha de Babu Santana ainda não caiu a respeito da homenagem luxuosa que receberá na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes. “Quando disseram que eu ia ser o homenageado deste ano, olhei para trás e bateu alegria e medo. Parecia impossível para um garoto negro nos anos 80 se tornar ator e, ainda hoje, tenho que me beliscar para saber que é real”, diz Babu.

Nascido e criado no Morro do Vidigal, o carioca Alexandre da Silva Santana foi pedreiro, camelô de praia, aderecista de escola de samba e eletricista, mesmo enquanto assumia alguns dos primeiros papéis nas novelas da Rede Globo. A virada só aconteceu ao encarnar o ídolo Tim Maia nos cinemas. “Até o Tim Maia, eu não tinha ganhado dinheiro na vida. Precisava pagar as contas e os bicos eram para isso, porque como ator não dava. Não tive uma trajetória de ser escolhido, tive que provar muito meu valor”, diz.

Prestes a interpretar o boxeador Maguila, Babu Santana falou ao O Beltrano sobre o início da carreira ainda no grupo Nós do Morro, o medo do estereótipo na televisão, racismo, políticas sociais e a paixão pelo teatro.

Como foi seu começo como ator, ainda no Morro do Vidigal. Quem te levou para o teatro?

Desde pequeno eu tinha um casal de tios que estimulavam muito a questão do teatro e do cinema, a cultura em si. Era o nosso grande programa de domingo, ir ao cinema ou ao teatro. E desde muito pequeno eu admirei muitos atores. Eu tinha esse desejo oprimido por conta da minha realidade. Não era normal na década de 80 um negro ser ator, tinha pouquíssimos, contava nos dedos. Além disso, era uma profissão muito temida pela família pela instabilidade. Eu estudava no Colégio Divina Providência e, aos 12 anos, participei da minha primeira peça. A ex-mulher do meu tio trabalhava no projeto Nós do Morro, e um dia ela me levou para ver a peça “Abalou”, um musical funk de 1995. Eu fiquei encantado, apaixonado e assisti dezenas de vezes a peça. Acabei fazendo o teste entrando para o grupo e, no meu primeiro ano, em 1997, fui substituir um ator do “Abalou” e foi a primeira vez que o espetáculo saiu do Vidigal para se apresentar em circuito no Rio de Janeiro. A partir daí outros testes começaram.

Parte significativa dos seus personagens dialoga diretamente com as desigualdades sociais do país. Em algum momento você teve receio de estereótipos?

Hoje eu moro num bairro da Barra da Tijuca, mas morei muitos anos no Vidigal. Nasci numa família muito boa nesse sentido de educar, saber mostrar as coisas. Muito cedo, por causa disso, eu questionava tudo: o que é certo e errado? Quem falou que é assim? ‘Ah, aquele bandido é safado, tem que morrer’: é muito fácil ouvir isso e fazer um julgamento, principalmente por quem nunca experimentou um estado de fraqueza que leva ao crime. É fácil chamar de filha da puta e acabou a discussão. Os personagens foram chegando em mim, delegado, traficante, assaltante, e eu não queria fazer o cara bom ou ruim, queria a complexidade do ser humano. Principalmente depois do ‘Cidade de Deus’ (filme que rendeu a Babu o Prêmio de Melhor Ator Coadjuvante com o personagem “Grande”, em 2012), um filme expressivamente forte no Brasil e no mundo. Eu fiquei com medo de ficar estereotipado, sim: ‘Olha o negão que só faz pobre e criminoso’, tinha esse lance. Com o tempo, fui vendo que esses personagens precisavam ser representados de outra forma, mas precisavam e muito ser representados. Coloquei na minha cabeça que é um personagem e não vamos medir ele pela profissão. Então, eu sempre preferi fazer o traficante principal do filme do que o médico figurante que aparece três vezes. E isso não significa que eu não tenha vontade de fazer um político importante, por exemplo.

E quanto aos meios, teatro, televisão e cinema?

A gente sabe que tem o mercado, né? O capitalismo está aí. Digo que teatro é uma religião, o cinema uma paixão e a TV uma forma de me sustentar. Mas eu sempre olhei as novelas e pensei: por que o branco loirinho é sempre o galã? Cadê os queixudos, os narigudos, os barrigudos, os carecas, os caolhos, os transgêneros vivendo uma história de amor, tendo um emprego legal, se dando bem? Cadê as pessoas de verdade? Eu ficava irritado porque no cinema e na televisão só tinha gente bonita ou que eles achavam ser bonita. Hoje, a televisão principalmente foi obrigada a rever um pouco esses conceitos, mas não por escolha dela, e sim porque o público, um público menos preconceituoso e mais antenado, começou a questionar. Quando fiz o Tim Maia, foi a primeira vez que eu estava num papel de negro, gordo, mas que tinha romance, tinha importância, respeito e status. Então, você é olhado de outra forma, é reconhecido socialmente e começa a pensar diferente. ‘Pô, se o Tim Maia pode, porque eu não, já que eu estou vivendo esse cara?’.

Antes de interpretar o Tim Maia e começar a ganhar dinheiro e fama, como lidou com o preconceito e a ideia de que poderia não ser ator por ser negro?

Quando você começa a querer se comunicar através da sua arte, eu acho que o dinheiro se torna o de menos. A preocupação maior em ganhar dinheiro era dos outros, não era minha. Só que a vida foi me conduzindo, fui tendo filhos. Tenho três, duas meninas e um menino. E aí veio a necessidade de ganhar mais dinheiro. Mas não falo em ganhar dinheiro como as pessoas pensam, aos montes, e sim do necessário para minha família. Eu não tinha isso: o básico. Tudo o que fiz trabalhando em livraria, praia, produção, carregando pedra, era só para tapar esse buraco do existencialismo, daquela coisa da necessidade de pagar as contas, comprar comida, ter grana para um sorvete. Então, a arte para mim, o teatro, o cinema, sempre foram formas de expressão, não de ganhar a vida. Eu transformei minha arte em forma de ganhar a vida. E se eu for falar do preconceito, vai encher muitas páginas. Já ouvi de tudo que você possa imaginar, inclusive que eu só faria papel de bandido. De fato, fazer o Tim Maia foi marcante porque nesse personagem havia empoderamento: era um gordo, negro, bêbado, cheirador e suado como protagonista. Então, se eu fiz esse cara e ele foi um sucesso, posso fazer muitos outros fora da caixa.

Além do Tim Maia, você está prestes a interpretar o Maguila na cinebiografia do boxeador. Como estão os preparativos?

A gente passou por um momento difícil no cinema em geral. As coisas ficaram um pouco paradas ano passado, mas devem ser retomadas esse ano. Cheguei a perder 10 quilos ano passado para o papel, mas ainda farei uma preparação ideal quando as coisas estiverem encaminhadas. É um roteiro muito lindo e que desmistifica o estereótipo de que Maguila era burro, essas coisas. Ele é um ser humano com uma inteligência muito grande e eu adoro ressaltar isso. É uma figura folclórica, um grande mártir, que não teve escândalos em sua vida, só uma vida de luta e guerra. Mas é um filme que necessita de apoio e patrocínio ainda. Então, eu tenho feito esse apelo aos interessados. Tenho certeza que o Maguila ficaria honrado com essa homenagem em vida, é o desejo dele.

Muito se discutiu o papel político da arte, principalmente nesse momento frágil da democracia brasileira. Você considera o ator como um agente político também?

Eu acho que o que aconteceu no Brasil e acontece ainda é mais uma das várias tentativas de deixar e tornar o povo ignorante. Todas essas criminalizações da arte em museus e etc… A educação e a cultura do nosso país são um grande reflexo desse caos, dessa hipocrisia. E, sim, acho que um ator e um diretor formatam uma história baseada no seu tempo, com seus questionamentos e debates contemporâneos. Meu desejo é levar as pessoas a terem raciocínio, um crivo crítico. No Rio de Janeiro, a prefeitura sucateou completamente a cultura, nunca vimos nada igual. Então, é mais fácil que, sem cultura e crítica, nós passemos a acreditar sem resistência nos mitos da vida e nas mentiras que nos contam.

Qual a sua visão da política hoje? Você se posiciona partidariamente ou de outra maneira?

Nós tivemos grandes artistas que se posicionaram politicamente e cada um é cada um. Eu, na verdade, prefiro me apegar às políticas sociais. Eu vim de um trabalho social e eu vejo que dá certo. Eu tento empregar minha luta nessa vertente. Eu acredito mais na atitude, no pegar e fazer, do que nos políticos. Se eu sou visto por algumas pessoas e posso influenciá-las a tomar uma boa atitude, eu acho ideal.