“Caravanas” é um título menor de Chico

Disco é orlado por uma produção refinada, mas que parece parada no tempo


Por Homero Gottardello

Biscoito Fino/DIVULGAÇÃO
– Capa de “Caravanas”, 23º disco de estúdio de Chico Buarque de Hollanda: nada que justifique sua canonização

Foi-se o tempo em que o lançamento de um disco de Chico Buarque de Hollanda inspirava resenhas, suscitava análises e até mesmo insuflava discussões entre “MPBistas”. Hoje, são poucos os jovens interessados naquilo que Chico tem para dizer e a própria a crítica cultural é tão pobre que precisa, literalmente, de uma carta náutica da assessoria do artista para conseguir entender a obra e ter assunto para seus textos. O leitor sabe como é: falar de música sem saber a diferença entre um si e um dó, um lá e um ré, uma semínima e uma colcheia, entre ritmo e andamento, harmonia e composição, é difícil – até porque a coisa, inevitavelmente, vai cair no “gostei” ou “não gostei”.

No caso de “Caravanas”, a tarefa foi facilitada não só pelo guia entregue pela produção, mas também pelo fato de Chico Buarque ser uma espécie de Virgem Maria da cultura nacional. Em outras palavras, até os mais tolinhos de qualquer redação sabem que, para o bem de sua própria reputação, o melhor é seguir a receita de fazer um apanhado de elogios e salpicá-los com o repertório do CD e referências do compositor. Pronto! Acaba de nascer um jornalista que fala bem do Chico Buarque e, por isso mesmo, preenche os requisitos para fazer carreira na “Ilustrada” ou no “2º Caderno”.

O problema é que as poucas pessoas que ainda leem não são tão bobas. Elas já perceberam que há uma consonância difusa naquilo que a grande mídia publica e que este consenso não vem, propriamente, das avaliações de cada crítico, mas, sim, das assessorias de imprensa. São elas que – textualmente – ditam tudo o que é reportado. E com “Caravanas” não é diferente. Nossa reportagem escutou o CD quatro vezes, nos últimos três dias, e não vimos no lançamento absolutamente nada que justifique sua canonização. Pelo contrário, trata-se de um título menor dentro da discografia de Chico Buarque, muito abaixo da sua própria média.

É por isso que vamos não só listar, mas pormenorizar cada faixa do álbum, muito provavelmente antecipando as impressões que o próprio leitor terá, ao final de sua audição.

Bom, já foi noticiado exaustivamente que “Caravanas” traz nove faixas, sete inéditas e duas regravações, mas aqui cabem duas observações: primeira, o álbum inteiro tem apenas 27 minutos de duração que, graças a Deus, passam rápido; e segunda, a única faixa que tem lugar no panteão da glória da artista é “A Moça do Sonho”, uma parceria com Edu Lobo de 16 anos atrás. Não é, nem de longe, um disco conceitual – como “Construção” foi, em 71, e segue sendo ainda hoje. Na verdade, trata-se de um CD burocrático, com pouquíssimos lampejos de grande inspiração.

 

 

Inteligente que é, Chico escolhe temas atuais para exsudar sua poesia e não soar ultrapassado. Orlado por uma produção refinada, belos arranjos e orquestrações, “Caravanas” tem uma qualidade de áudio rara na obra do compositor. Mas a temática factual não dialoga com a estrutura musical das canções e, apesar do bom gosto e da sofisticação do conjunto, é como se O Rappa lançasse um disco de serestas. Daí, fica evidente, em cada faixa, que Chico Buarque se descolou daquilo que, no passado, fez dele uma unanimidade: uma erudição abrangente, que não só alcançava um público enorme, como também o qualificava.

O Chico Buarque de hoje compõe para si mesmo – ou, meramente, para cumprir contratos com a indústria fonográfica. Ao renegar “A Banda”, ao relegar sua verve mais popular a um segundo plano, sua veia política perdeu circulação, sua crítica social perdeu a força de “Deus Lhe Pague” e o poder de “Apesar de Você”. Seu caráter romântico perdeu a amplitude – não fala mais aos enamorados, mas apenas e tão somente à namoradinha – e seus versos, a magia. Infelizmente, Chico ficou “batido”, parado no tempo.

Isso fica evidente na sua desmitificação junto aos jovens. Ele já não inspira a esquerda, apesar da atitude corajosa de se colocar ao lado da ex-presidente Dilma Rousseff no momento mais difícil do processo de impeachment, nem arranca suspiros. Chico Buarque perdeu a capacidade de nos fazer sonhar e é por isso que o leitor não deve se espantar se a música – não a obra, que é imortal – de Chico Buarque morrer antes dele. “Caravanas” evidencia um esgotamento criativo e uma incapacidade de ser reinventar que, em última análise, segregam o reinado de Chico a algum lugar no passado.

Ouvindo faixa a faixa

1. “Tua Cantiga” (Chico Buarque e Cristóvão Bastos) – O primeiro single de “Caravanas” é descrito como um lundu (que é uma dança de origem africana) influenciado por Bach. Bom, o sujeito copiar isso do press release, colar no texto e, ainda por cima, assinar o texto, é passar recibo de vigarice. Batuque que não se dança?!? Nunca vi… Já sobre Bach, se este Bach for o Johann Sebastian, é melhor parar a audição por aqui, mesmo, antes que ele revire no caixão e venha assombrar seu sono.

2. “Blues Pra Bia” (Chico Buarque) – Fico me perguntando o que um homem de 73 anos de idade não faz para pegar uma moça 40 anos mais jovem… Neste caso, fez uma musiquinha mequetrefe com um arranjo jazzístico para fingir que é um blues – achei a fórmula, no mínimo, contraditória, mas tudo bem. Espero que tenha dado certo, na conquista, porque no meu ouvido foi uma decepção danada.

3. “A Moça do Sonho” (Chico Buarque e Edu Lobo) – Esta canção é uma coisa linda! Composta em 2001 para a peça “Cambaio”, de João e Adriana Falcão, dá uma clara ideia da precarização da obra do compositor, nos últimos 16 anos. Basta compará-la com qualquer uma das faixas inéditas para ver que aquele Chico não existe mais…

4. “Jogo de Bola” (Chico Buarque) – Sambinha meia-boca, que tem um jogo palavras até interessante: “Outrora, quando em priscas era, um Púskas era, a fera das feras da esfera”. Mas não passa disso…

5. “Massarandupió” (Chico Buarque e Chico Brown) – O leitor já deve saber que Chico Brown é neto do compositor. O Chico vem do avô e o Brown, do pai (Carlinhos Brown). Bom, esta é a faixa mais conectada à modernidade de “Caravanas”, uma baladinha sofrível que também ganha uma roupagem jazzística para disfarça a infelicidade melódica e temática. Em um disco ruim, ser a pior música não é fácil, mas “Massarandupió” deu conta!

6. “Dueto” (Chico Buarque) – Nesta faixa, quem dá o ar da graça é Clara Buarque, irmã de Chico Brown. Ela aparece supreendentemente bem nesta valsinha, desbancando a versão com Paula Toller, mas ainda anos-luz atrás das com Nara Leão e Zizi Possi.

7. “Casualmente” (Chico Buarque e Jorge Helder) – O bolero foi feito para a primeira-dama do Buena Vista Social Club, Omara Portuondo, que não chegou a gravá-lo. Ouça e você entenderá por quê…

8. “Desaforos” (Chico Buarque) – Uma canção romântica, bem ao estilo dos sucessos de outrora do artista. Por mais que a mesmíssima fórmula tenha dado certo, em pelo menos uma dezena de outras composições, aqui ela cheira a mofo – a combinação de vibrafone, trompete com surdina e gaita, do arranjo, também não podia soar mais estranha…

9. “As Caravanas” (Chico Buarque) – Acho que pouquíssima gente, em sã consciência, misturaria referências do batidão à MPB ortodoxa de Chico Buarque. Mas como ele assina esta faixa, sozinho, é de se imaginar que a ideia tenha partido de sua própria cabeça ou da de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho – peço desculpa aos meus amigos por estar escrevendo isto – que “abrilhanta” a gravação. O melhor desta música, sem sombra de dúvida, é que ela é a última do álbum. E creia-me: quando os metais anunciarem seu fim, você vai sentir um alívio…