É preciso falar de crack

Uma mãe guerreira, quatro filhos homens, dois na droga


Por Ana d´Angelo e Eliana Gomes

 

Era para ser uma matéria sobre “as mães do crack”. Título sensacionalista, para os editores do O Beltrano comprarem a pauta. Ideia que tive depois da conversa que me derrubou a mil de metros da minha ligeira órbita da razão, com uma mãe de quatro filhos homens, dois deles usuários de crack, um deles preso.

O clima geral no país, quando do nosso papo, era ditado pela brutal desocupação da cracolândia em São Paulo, e pela decisão daquele prefeito de garantir na Justiça o direito do poder público de internar compulsoriamente os dependentes químicos.

E aqui, no Rio, Eliana Gomes, Dona Eli para nós – seus patrões duas vezes por semana -, sofrendo com as idas e vindas de Alexandre à cracolândia carioca, e com Artur, o caçula, preso em Bangu. Os dois filhos mais novos de Dona Eli.

Ela fala do ciclo do vício como especialista. Para o meu ‘jornalismo indoor’, ela conta de sua primeira vez em Bangu. Das horas na fila para entrar no presídio, do constrangimento da revista, de como teve que deixar sua bolsa no meio do mato para poder entrar, de como só abanou a mão de longe pro filho nessa primeira vez.

Conta também de como desmaiou porque “a pressão subiu ou desceu, não me lembro”, tamanha expectativa, tamanha decepção. “Você pensa que isso é pra bandido, não para o seu filho. Nunca”.

Do Alexandre, o mais velho dos dois menores, ela fala com mais esperança. “Todo mundo gosta dele no bairro… tem tantos amigos. Conseguimos uma internação em um sítio de religiosos. Então começou a postar no face, ‘um dia sem’, ‘dois dias sem’, até o sexto dia. Os amigos torcendo. E parou. Então eu liguei pra Angélica, mulher dele: cadê Alexandre? ‘Ah, não dormiu aqui hoje, não’. Pronto, acabou.”

“Comecei a perceber quando foi para oitava série. Todas as professoras faziam queixas dele. Não era malcriado, era agitado. Saía da sala e ia bater tambor num latão de lixo. Um professor disse que precisava de ajuda porque comparavam ele sempre com o irmão. Então, fazia coisas pra chamar a atenção. Mas, a gente pobre, vai fazer o que? Hoje eu sei que psicólogo é importante, mas com um monte de filhos, sem dinheiro, sem tempo… o tempo vai passando e, quando você vê, deu no que deu”.

A matéria que pensei primeiro, aquela ideal, descobri que não se sustentaria. Não vale, acima de tudo, porque é preciso dar voz a Dona Eli. É preciso falar de crack, mas também da mulher negra, da relação de patrões com empregadas domésticas, de racismo, de maternidade, de como as drogas chegam, do desmonte da saúde pública, da reforma trabalhista, da descriminalização da maconha. A vida de um dependente de crack e de sua família estão contaminados por esse turbilhão.

“No nascimento você já vê que vai ter dificuldades. Eu amamentava e descobri outra gravidez quatro meses depois. Eles tem a diferença de um ano e (o mais novo) acabou ficando de lado. Sempre no segundo plano. Vai crescendo assim. Fica com a vizinha, enquanto eu fico com o outro que anda. É difícil amar um que está no berço e o outro andando, quebrando tudo. Chegando na adolescência, você vê que tá desviando. E a mentira é o primeiro sintoma da droga”.

Relato de mãe. Porque só mãe para abraçar todos os problemas de um filho e achar que são, de alguma maneira, fruto da sua ausência ou do seu erro.

“Na escola, no mesmo horário, na mesma série: Alexandre e Ancelmo. O primeiro é Alan e o caçula é Artur. Primeiro é Alan, depois Ancelmo, Alexandre e Artur”.

Dona Eli defende a descriminalização da maconha como forma de substituir gradualmente o uso do crack por uma droga menos nefasta. O sistema público de saúde não pode dar remédio nem internar, somente em caso de surto psicótico. E nunca tem ‘o psicólogo’ prometido para apoiar as famílias. Nessa história, os pobres são vítimas.Só nessa?

Como Dona Eli consegue fazer nossa comida, limpar nosso apartamento e ainda brincar com nosso filho, as brincadeiras mais legais, enquanto não sabe o paradeiro do Alexandre?

Durante a Marcha das Mulheres Negras no Rio, uma foto de uma empregada na janela daqueles apezões da Avenida Atlântica é tocante. Aquela mulher negra vestida de branco parece bater palma para as colegas no asfalto.

Mulheres negras vestidas de branco, servindo as brancas. Até quando vamos perpetuar essa relação? Um sopro de debate se deu quando alunos da arquitetura da UFMG se recusaram a projetar uma casa com dependências para oito empregados em uma disciplina chamada “Casa Grande”.

A última edição da FLIP também deu algum alento. Antes feita da elite para a elite, a festa da literatura deste ano foi invadida por negros e outras minorias. Até quando vamos negar e resistir a discutir nosso racismo e nossa sinhazice? Eu me sinto a patroa constrangida, mas isso não é o bastante.

Na Internet, os grupos de apoio aos familiares de dependentes químicos são um festival de frases afirmativas e de auto-ajuda para quem não pode contar com nada, nem ninguém. Não há como barrar a disseminação de uma droga tão barata e tão imediatamente viciante. Alguns me prometeram depoimentos, mas acabaram desistindo. O sentimento é de pouca esperança. Para a matéria e para essas pessoas.

A nota em resposta a nosso pedido do Ministério da Saúde é protocolar. “O CAPS Ad, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, é quem faz o atendimento dos casos de dependência do crack. A população de 15 estados passa a contar, a partir de agora, com um incremento de R$ 26,2 milhões para a assistência aos dependentes de crack”, diz a nota de outubro de 2015, do governo federal. Nenhuma novidade desde então, pelo contrário, sabemos da penúria da saúde e educação.

“Quem é que vai curar esse povo? Não tem remédio que cura o crack… então é uma decepção. Ele voltou muito bem. Estava entregando currículo. Aí começam as mentiras. Ele tem três filhos, Vitor, com 9, Mateus, com 4 e a neném de 6 meses. A mulher dele trabalha no posto de gasolina. O bebê vai com ela pro trabalho. Mas quem abre a porta de casa quando Alexandre volta dos dias de crack é a mãe”, diz Dona Eli.

Então, que o texto se transforme, ao menos, numa matéria-manifesto. Por que cargas d´agua não damos conta de arrumar nossas casas, fazer nossas comidas, cuidar de nossos filhos? Ah, nossos trabalhos! Que diacho de trabalho nos impede de fazer isso? Que a coisa vai ladeira abaixo, nem resta dúvida. Somos escravagistas, e alguém ainda acredita na livre negociação patrão e empregado?

Eu só posso desejar que os filhos e netos de Dona Eli tenham escolhas a fazer num futuro próximo, porque haverá políticas públicas de inclusão social e educação. Que a maconha seja descriminalizada. Que o apoio aos familiares de dependentes químicos venha verdadeiramente do poder público e não de religiões ou picaretas da psicologia.

Dona Eli me ensinou a brincar com meu filho, experiente que é, mãe de quatro homens. Dá uma lata com colher de pau e ele fica superfeliz, enquanto eu muitas vezes corria atrás de algum livro de pediatra espanhol.

Na colonial São João Del Rei, onde nasci, acontecia de ser confundida com a empregada da casa. Eu de cabelo sarará e pele morena. A Zilma, loura de olho verde. Mas quem dormia do lado de fora de casa era ela, numa casinha com banheiro ao lado.