Entre o torresmo e a microfonia


Por Rafael Mendonça

Foto: Rafael Mendonça

Uma sensação, um sentimento. Um misto de incômodo e paz. Meio que estar em paz vivendo dentro de um relógio de igreja antigo. Onde todas aquelas peças funcionam como deveriam e foram concebidas. Só que isso é um cara, um cara tocando guitarra. E de improviso. Nesta manhã de 21 de novembro em Belo Horizonte, cerca de 50 pessoas e umas 20 crianças tiveram o privilégio de passar uma hora, um pouco menos, ouvindo Otomo Yoshihide.

Otomo é nascido em Yokohama, em 1959, mas cresceu em Fukushima. Informação essa que recebi hoje em uma conversa com ele que antecedeu o concerto. Óbvio que uma coisa não tem a ver com outra, mas é o tipo de negócio que impressiona. Nessa conversa, ele contava que aos 14 para 15 anos começou a tocar guitarra. No intuito de arrumar uma namorada, não deu certo. Mas a música experimental, o noise, e o pensamento de vanguarda na música ganharam um de seus maiores expoentes.

Filho de engenheiro, começou a remexer nas rebimbocas de seu pai e a construir equipamentos como um oscilador. Na escola começa a mexer com fitas, montagem e colagem. Mas aí, lá pelos 17, 18 anos, em um concerto do saxofonista Kaoru Abe, a sua cabeça “deu uma revirada” e o caminho começou a ficar mais claro para ele. Descobre o guitarrista Masayuki Takayanagi, e com isso ele tem a certeza do que quer trilhar.

No fim dos anos 70 vai para Tóquio estudar. Segundo ele não ia muitos as aulas, mas um professor que tinha uma enorme coleção de discos passou a receber suas visitas frequentes. Tão frequentes que ele chegou a morar três anos com esse professor.

Foto: Rafael Mendonça

Otomo cai no mundo. Toca com músicos japoneses. Forma bandas, toca em outras e forma o “Ground Zero”. Já reconhecido na cena experimental e noise do Japão começa a viajar o mundo. Toca com todo mundo que importa e com quem ninguém conhece. Faz projetos com crianças. Toca em Fukushima com elas e não músicos. O cara é uma máquina de produzir.

Sua discografia é gigantesca. Mesmo nessa era de”fácil acesso”, não devo conhecer 1/3 dela, metade dela. Gosto muito do que conheço e aí começa o relato de hoje.

9:30 (nove horas e trinta minutos)

Um concerto de um dos maiores nomes mundias da música experimental esteve em BH nesta terça-feira. Para mim, era como se o Coldplay dos “cabeçudos” desembarcasse na cidade para uma apresentação quase vip numa manhã chuvosa, lá nos confins do campus da Pampulha. Uma conversa, que já falei acima, e depois um intervalo para passagem de som, que já deu para aproveitar, a coisa começa.

O entendimento da grandeza do cara que a gente estava vendo aparece com menos de 4, 5 minutos de espetáculo. É muita criatividade na coisa. E era ele ainda só no palco. Um Gibson semi acústica com cara de velha mas com um timbre perfeito. E como o Otomo sabe tirar som dela. Uma relação de amor. Uma coisa de casal. Por ser tudo de improviso você descobre / vê que ali está um negócio antigo. Uma coisa de quem sabe onde está passando a mão e o que vai resultar deste carinho.

Matthias Koole, Marco Scarassatti, Otomo Yoshihide e Henrique Iwao Foto: Dorothé Depeauw

Aos poucos Matthias Koole, Henrique Iwao e Marco Scarassatti foram entrando no palco. Matias e Henrique velhos conhecidos das noites de improviso no Luthier bar. Marco é professor da UFMG e um dos grandes na arte do improviso do Brasil. E cada qual com seu instrumento foram se assentando. Um grupo de umas vinte crianças estavam vendo o concerto. Durante um tempo elas pareciam um quinto elemento com seu constante burburinho. Mas não duraram muito lá.

Mais uma guitarra com Matthias, barulhos e percussões eletrônicas com Henrique, viola de cocho e um instrumento construído pelo Marco mesmo que eu não sei como chama.

E assim foram se entrosando, se achando e a coisa começou a fluir. Logo na entrada do Matthias, Otomo faz uma base para o companheiro ir se encaixando. Coisas que só uma “roda” de improviso permitem. Um mestre gentil.

Foto: Rafael Mendonça

Foram variadas reviravoltas de extrema criatividade. Os riffs de guitarra que Yoshihide faz são dignos de grandes guitarristas e me trouxe muitas boas lembranças. Ele diz que escuta muita música. Durante a conversa perguntei se quando ao gravar algumas coisas de outros artistas ele tinha a intenção de desconstruir ou reconstruir o som, ele, genialmente, me responde que apenas tocava aquelas coisas porque era fã. Melhor resposta impossível.

Depois de arrebatado pelo som, saímos da UFMG e fomos ao Mercado Central almoçar. Era maravilhoso ver como além de mestre, era bom de prato. Provava de tudo que a rechonchuda culinária mineira oferecia e lambia os beiços. Trocamos palavras bem agradáveis entre um torresmo de barriga e um fígado com jiló. Ele disse que os shows por Santiago e Buenos Aires foram joia, que antes, da América Latina só tinha vindo ao México e estava adorando tudo. Um cara muito gente boa. Tomamos um café. Trocamos mais algumas ideias sobre o café daqui e o de lá. Nos despedimos. Não resisti e dei um abraço, ele retribuiu. Não é todo dia que passamos um tempo com um gênio tão generoso.

Cultura e outras coisas

Rafael Mendonça

Jornalista, editor do site O Beltrano, editor da extinta revista ‘Graffiti 76% quadrinhos’, editor do Baderna Notícias e cuidador da própria vida.