Fica, Temer


Por João Gualberto Jr.

Reprodução/ Twitter

Um golpe de Estado é uma caixa de Pandora aberta. Essa analogia vem sendo feita desde que o Congresso derrubou Dilma por pretextos menores, o que demanda retóricas maiores. O ambiente político-institucional, como gente de juízo alertou, enturveceu-se. Se tivermos eleições gerais em 2018 já será motivo de alívio a se festejar. Porque, o que faltava, não falta mais.

A ameaça das casernas voltou, ao eco dos clamores por intervenção militar feitos já sem embargo e timidez pela turma da extrema direita. A uma plateia seleta, um general que responde por funções administrativas de importância no Exército Brasileiro, fala em tomada de poder pelas Forças Armadas da forma mais natural, caso a Justiça não dê jeito na corrupção sistêmica da política. Seu superior, o comandante-geral, não o repreende e ainda reinterpreta a Constituição, em seu Artigo 142, no que expressa o papel de garantia da lei e da ordem. Não por ignorância, evidentemente, mas pela velha e simples luta por poder escamoteada em um discurso mais limpinho em nome do povo.

O fantasma golpista dos quartéis não morre, posto que é fantasma. Hibernava, mas despertou com o alarido das ruas canarinhas. Um sono leve, fácil de interromper. Umas cornetas e um carro de som tocando o hino nacional já o despertam. Para um general dizer o que disse, e outro emendar como o fez, não há dúvida de que a defesa da intervenção flui bem e bastante à boca miúda dos comandantes, nos grupos de Whatsapp das altas patentes, e esteja escorrendo pela pirâmide hierárquica das Forças Armadas, encharcando-a por fora e por dentro como calda derramada no alto do bolo.

Qual a força institucional que Exército, Marinha e Aeronáutica dispõem para derrubar os chefes civis dos Poderes? Certamente, menor do que em 1964. O ponto, porém, não é a aferição do poder absoluto, mas do relativo: um governo em frangalhos, ilegítimo, amargando uma rejeição recorde, resistiria a um movimento minimamente coeso e orquestrado dos comandos militares? Especialmente encorajados e legitimados por uma parcela não desprezível da população que torce o nariz para a política? Se um aríete sequer arranha o muro do castelo, um salto agulha rompe a fina camada de gelo sobre o lago.

Vivemos uma situação política no Brasil para a qual fundo do poço é uma dimensão otimista. Se chegamos até ele e estamos nele, que bom. Só que não é assim, não se pode afirmar que já tenhamos batido lá. Nas Forças Armadas, hoje nós sabemos, há quem esteja disposto e pronto para roubar a cena se o pior ocorrer. Piorar? Sim, é possível. O que pode ser pior? Se Temer e sua quadrilha forem cassados ou renunciarem, o que pode acontecer?

Assim como há um pessoal que gozava de boa reputação discursando pela plausibilidade de um governo de quepe verde-oliva, outro idem defende o “Fica, Temer”. A ideia é a seguinte: o golpe consumou-se, o governo assentou-se e deve-se olhar para frente, fazendo oposição dura, sim, mas que permita levar o governo até dezembro de 2018 respirando por aparelhos. Essa estratégia de quem se opõe a Temer e cia., dentro e fora do Congresso, não representa legitimação tardia de uma administração sem voto, impopular e elitista, mas visa a algo maior, que é a manutenção do que sobrou de garantia democrática. Se o golpe foi institucional, trabalhar e urdir pela destituição do grupo substituto seria, em boa medida, sanar um golpe com outro, e, de golpe em golpe, ninguém encheria o papo (ou muito poucos). E o fantasma despertou. Há boato de que até nomes estariam definidos para uma cabeça de gestão provisória “mezzo civil, mezzo militar”.

Teria sido essa a tática da oposição, que preferiu votar pela aceitação da primeira denúncia contra o presidente, no começo de agosto, apesar da derrota certa, em vez de sair do plenário da Câmara para fazer cair o quórum? Talvez o PT já tivesse definido internamente que o melhor caminho é segurar o governo fraco e rejeitado na esperança de Lula se candidatar e vencer. Enquanto isso, o “Fora, Temer” seria só jogo de cena para a galera.

Não se pretende, com este texto, fazer defesa desse raciocínio. O “Fica, Temer”, contudo, deve-se reconhecer, não é execrável. A preservação da quadrilha por mais um ano e três meses na Esplanada custará caro ao país, como já vem custando. Serão tantos outros bilhões em emendas para enterrar uma nova denúncia e o risco de mais medidas para favorecer a camada de cima da luta de classes. Mas o que sairia mais caro? Leis podem ser revistas e prosperidade se reconstrói. Agora, outro golpe militar a prometer uma transição segura e breve e acabar ficando por duas décadas?

Do ponto em que chegamos, a garantia de eleições em 2018 seria o possível ótimo. Qualquer arranjo diferente, qualquer destino alternativo, resultaria em perdas para muitos para custear o benefício restrito. Uma ruptura militar, sustentada pelas bênçãos dos EUA, nós sabemos, não se nortearia por políticas de emancipação popular. Em suma, seria a repetição cíclica da roda de nossa história.

A adesão brasileira a valores democráticos é tradicionalmente baixa, como em toda a América Latina, conforme atestam bancos de dados de painéis internacionais, como o Latinobarómetro. A compreensão de que persistir num regramento que não resulte em segurança material e física para o indivíduo sugere (e logicamente justifica) a aceitação da troca da estabilidade institucional em favor da esperança de uma vida melhor. Contudo, o voto direto e universal e o respeito de todos à sua soberania decisória (quando aprenderemos?) são pilares importantes de uma sociedade democrática. O anseio do “Fica, Temer” se sustentaria neles. Melhor preservá-los ou tacar o pau para ver no que dá?

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.