Marielle virou semente

Execução de vereadora carioca deu origem ao coletivo Somos Todas Marielle


Por Petra Fantini

Foto: Pedro Martins

Um clima pesado desceu sobre o país como uma manta espessa. A execução da vereadora carioca Marielle Franco deixou em todos o sentimento de choque e desamparo. A partir de agora, a sensação é a de que qualquer coisa pode acontecer. Uma barreira foi rompida e a violência chegou a outro patamar.

Estão nos matando sem qualquer pudor, nas ruas do centro de uma das maiores metrópoles do país. Uma membra do legislativo foi morta a tiros por fazer seu trabalho, por denunciar a violência policial. A comparação com o estudante Edson Luís, assassinado pela ditadura civil-militar também no mês de março, há exatos 50 anos, é inevitável.

Ontem, dia 15, coletivos, entidades e instituições de defesa das mulheres se reuniram na Casa do Jornalista, em Belo Horizonte. Uma mesa composta quase que exclusivamente por mulheres negras anunciou a criação do coletivo Somos Todas Marielle, que acompanhará as investigações do assassinato da vereadora e promoverá discussões sobre a agenda das mulheres, tema que norteou a atuação política da vereadora. A princípio, as reuniões estão marcadas para o dia 14 de todos os meses, data em que ocorreu a execução. Junto com a vontade de lutar, a tristeza marcou presença: “quando uma mulher negra de luta morre, todas nós morremos um pouco”.

O entendimento do coletivo é o de que esse crime é uma continuação do golpe de 2016, que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder. Nos últimos quatro anos, pelo menos 24 lideranças comunitárias foram assassinadas no país, segundo levantamento do Opera Mundi (https://goo.gl/n8Jnyo). “A cada dia o golpe se recrudesce e chega mais perto da gente”, declarou uma das participantes.

A percepção é a de que os executores, sejam eles milicianos, membros de organizações criminosas ou até mesmo das forças policiais denunciadas por Marielle (https://goo.gl/xH4Mhg) não têm mais vergonha. Eles não esconderam o crime; pelo contrário, fizeram questão de mandar uma mensagem. Aqui, mulher de luta não tem vez.

Em 2008, Marielle atuou como assessora do deputado Marcelo Freixo, também do PSOL, na CPI das Milícias que indiciou 226 pessoas. A partir daquele período, ele ganhou proteção, e até hoje só se desloca com seguranças. Ela, não. Ela fez suas denúncias com a cara limpa, sem braços armados a sua disposição.

Foto: Petra Fantini

O racismo é um elemento marcante na morte da militante, mulher periférica nascida e criada na Maré. Ela fugiu das estatísticas até certo ponto. Era formada, pós-graduada e mestra em administração pública. E mesmo assim, a tragédia a alcançou. “Até hoje a gente tem que lutar pela lei do ventre livre”, disse Viviane Coelho, umas das lideranças presentes no encontro.

Ao sair da Casa, participar do ato realizado na Praça da Estação e, na manhã seguinte, ver fotos das mobilizações ao redor do país, o sentimento ainda é de melancolia. As pessoas mais velhas achavam que nunca mais presenciariam execuções sumárias novamente. Estamos assustados.

Todos com quem conversei ontem, até os mais fechados dos homens, chorou por Marielle. Nos preocupamos com outras lideranças comunitárias, com nossa família, com nós mesmos. O Brasil nos preocupa. Talvez essa seja a gota d’água para que nos levantemos; afinal, como disseram na Casa do Jornalista, “nas noites mais escuras é que enxergamos as estrelas”.