Nus, porém vestidos

Estratégia legítima ou exibicionismo juvenil? A nudez nas manifestações divide opiniões, mesmo entre os setores progressistas


Por Leandro Lança

Desde de Pero Vaz Caminha, nunca antes em nossa história as vergonhas de fora parecem ter causado tanto espanto e burburinho. O debate ganhou corpo desde que a nudez começou a ser usada como estratégia nas manifestações políticas ­ seja em protestos feministas como a marcha das vadias, contra a corrupção, pelos direitos dos animais, pela mobilidade urbana (como a “pedalada pelada”), ou ainda naqueles (não menos políticos) pela liberdade do corpo e contra a proibição de topless na praia. E, independentemente da coloração política, há sempre aqueles que parecem não entender o que está em jogo ou o porquê daquela jogada.

Marcha das Vadias

Para muitos a nudez em protesto não passa de exibicionismo juvenil. Para outros, até mesmo dentro das fileiras engajadas, a nudez enfraquece o movimento sob o risco de passar uma impressão de coisa pouco ou nada séria. Ou, ainda pior, desviar o foco de atenção da causa para o corpo.

Fato é que não vem de hoje o uso da nudez como estratégia em protestos. Desde que a padroeira dos pelados em protesto, Lady Godyva, cavalgou nua pelas ruas de Coventry, na Inglaterra, para pressionar seu marido a baixar os impostos, no velho mundo a prática é comum como podemos ver em protestos constantes de ONGs como Peta, Femem e Greenpeace.

Nos EUA, sobretudo a partir do surgimento do movimento hippie, o uso da nudez se tornou tônica nas manifestações civis, principalmente durante a guerra do Vietnã. Há, ainda, os inúmeros protestos individuais que poderiam ser analisados caso a caso, haja vista as profundas e incontornáveis diferenças, por exemplo, entre a nudez da famosa blogueira egípcia Aliaa Elmahdy, que protestou contra a opressão impostas às mulheres em seu país, e a nudez da socialite Juliana Isen, na avenida Paulista, contra o governo de Dilma Rousseff. Enquanto o destino de uma lhe rendeu dezenas de ameaças de morte, a outra cavou uma capa na revista Sexy.

Que a nudez chama a atenção parece não haver nenhuma dúvida. O ato de se despojar da indumentária em público promove uma quebra (ainda que efêmera) no pacto civilizatório. Não só na cultura ocidental judaico-cristã, mas sobretudo nela, o uso de vestimenta é um marco central da suposta passagem da natureza para a cultura e civilização. Como qualquer transgressão desse nível, a nudez atrai olhares e não raramente reações de repúdio. Para o Estado e suas instituições aparelhadas no intuito de vigiar e punir, a infração ganha o nome no código penal de “ato obsceno”, artigo 233.

Obra do fotógrafo Spencer Tunick

Algo que desde sempre me chamou atenção na nudez pública, não apenas em protestos, mas aquela realizada também artisticamente em performances e espetáculos de dança ou teatro, é que ela nunca me pareceu nudez de fato. Sempre foi uma nudez diferente daquela que enxergo nos corpos dos amantes ou nos corpos mais obscenos da publicidade ou da pornografia. E foi a partir de um artigo do filósofo italiano Giorgio Aganbem, intitulado “Nudez”, que descobri a razão do meu sentimento.

Agamben nos conta e nos mostra, que, em suma, é possível estar sem roupa, porém vestido, ao passo que também é possível estar vestido, porém nu. Para isso nos leva à gênese (literalmente ao Gênesis da Bíblia) dessa história.

A narrativa diz que antes do pecado, Adão e Eva vivam completamente nus no paraíso. Porém, a nudez de seus corpos não era percebida por eles. Segundo alguns teólogos, isso acontecia não por uma ignorância que o pecado anulou depois, mas porque o primeiro casal, ainda que sem vestes humanas, estaria coberto pela graça divina ou glória de Deus. Uma versão judaica do texto fala que eles eram cobertos por uma “veste de luz”.

Assim, explica Agamben, “A nudez pressupõe a ausência de veste, mas não coincide com esta. A percepção da nudez está ligada ao ato espiritual que a Sagrada Escritura define como ‘abertura dos olhos’. A nudez é algo de que nos damos conta, enquanto a ausência de vestes passa inobservada”.

A partir da perspectiva de Agamben, um artista sem roupa em cena não estaria necessariamente nu para a plateia, mas vestido com uma veste de graça que a situação e principalmente seus movimentos lhe conferem. O filósofo faz uma interessante distinção entre carne e corpo. Para ele, o desejo sexual ou fetichista em qualquer nível é o desejo de encarnar o corpo do outro. O que impede essa encarnação não é tanto a roupa, mas sobretudo os movimentos. Nada é menos “em carne” que uma dançarina, por exemplo.

O corpo obsceno, segundo a leitura de Agamben, é um corpo que “assume algumas posições que o despem completamente dos seus atos e põem a nu a inércia da carne”. Para ser erotizado (no sentido mais rasteiro do termo) e objetificado, o corpo do outro precisa ser privado de seus movimentos naturais de alguma forma. As poses em revistas masculinas e closes dos filmes pornográficos são exemplares nesse sentido.

Curiosamente, na imagem com nu que se tornou um dos maiores símbolos de protesto do século XX, não se tratava de uma livre ausência de roupa, mas um despojamento causado pela guerra. Ainda assim, se trata de uma nudez tão vestida que, tal qual Adão e Eva no paraíso, nem nos damos conta se ela não for apontada. Me refiro à imagem de Kim Phúc, fotografada por Huynh Cong Ut. Na foto vemos Kim, aos 9 anos, correndo depois que uma bomba americana de napalm explodiu no vilarejo onde morava no Vietnã.

A foto recebeu o World Press Photo de 1972 e o Pulitzer de Reportagem Fotográfica de 1973. Desde então, foi e continua sendo utilizada em diversos protestos. O fogo havia consumido as roupas de Kim e nas imagens ela aparece nua próxima a outras crianças e soldados vestidos. Conseguimos ver muitas coisas nessa foto, menos a nudez da menina. Ela está tão terrivelmente em sua agonia vestida pelo horror da guerra que se torna impossível se dar conta de sua nudez. Não há ali “vergonha de fora” ou “peladice”, ou um corpo infantil passível de ser erotizado. “A nudez da carne está integralmente presente, mas não pode ser vista”.

A nudez em protesto é uma discussão que pode travada criticamente sob outra perspectiva de análise do corpo. Com exceção de alguns casos isolados, de flagrante exibicionismo vazio (movido por carências latentes, desejo de fama instantânea, dinheiro ou likes), todo corpo em protesto é corpo em situação, e não deveria ser equiparado a uma encarnação exposta ao obsceno ou meramente exibicionista.

Obra do fotógrafo Spencer Tunick

Referência:

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte. Autêntica Editora. 2014.

*Leandro Lança é sociólogo e mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais.