O curador de Tarsila

O Beltrano conversou com Luis Pérez-Oramas, organizador da exposição de Tarsila do Amaral, uma das fundadoras do modernismo brasileiro, que acontece no MoMA, em Nova York


Por Clarissa Carvalhaes

Correspondente de O Beltrano em Nova York

Publicado em 02/04/2018

Foto: Austin Donohue/cortesia The Museum of Modern Art

Aos 10 anos de idade, o pai incentivou-o a comprar o primeiro trabalho. Também na infância, entendeu sua vocação para a literatura e a escrita – o que lhe permitiria, no futuro, definir-se profissionalmente pela reflexão filosófica da estética e das artes.

Nascido e criado na Venezuela da década de 1960, Luis Pérez-Oramas é hoje um dos curadores mais influentes e respeitados da arte Latino-Americana no mundo. Publicou mais de 20 livros sobre questões sociais, poética e crítica política, além de catálogos de exposição.

No Brasil, assinou a curadoria da Bienal de São Paulo (2012). Na França e Venezuela, foi professor de artes em escolas e universidades. Em Nova York, foi curador no MoMA (The Museum of Modern Art) por mais de uma década até decidir, no ano passado, libertar-se dos compromissos institucionais e trabalhar de forma independente.

Gostaria de dizer que meus projetos são escrever, ler, aprender. Publicar os oito livros que tenho em processo e minha Poesia Reunida (1983-2018). Mas às vezes a vida leva você a outras urgências. Devemos saber como preservar os espaços de silêncio, de lentidão e de alegria”, afirma.

Em exibição no MoMA, em Nova York, até 3 de junho, “Tarsila do Amaral: Inventado a Arte Moderna no Brasil” é uma das mostras mais ambiciosas nas quais Oramas já assinou curadoria. Essa é a segunda vez que o venezuelano se dedica a organizar uma mostra de uma artista brasileira. A primeira foi Lygia Clark, em 2014. “Elas são duas grandes mulheres da arte moderna no Brasil. Tarsila é a artista fundacional do Modernismo, enquanto Lygia é o nome que encerra essa história. Elas reiventaram outra forma da modernidade. Tarsila, na reivenção da figuração da natureza, da paisagem brasileira e a invenção da iconografia antropofágica; Lygia, nos mostrando que a arte tem um limite e depois dela existe outra coisa, que ainda não tem um nome”.

Em entrevista ao O Beltrano, Oramas falou sobre censura, liberdade de expressão, crítica, política, Inhotim, o papel da arte no mundo e a profissionalização do artista. “Estou mais interessado em “efeitos” modernos, do que em “programas” modernos. Leia seguir a entrevista.

O Brasil vive um crescente movimento de tentativa de censura às artes. A mostra “Queermuseu” foi encerrada um mês antes do previsto. Pouco depois, a perfomance “La Bête”, inspirada em um trabalho de Lygia Clark, foi acusada de incentivar a pedofilia. E em Belo Horizonte, a exposição Faça Você Mesmo sua Capela Sistina, de Pedro Moraleida, também foi alvo de ataques de grupos de extrema direita e religiosos fundamentalistas. Pensando nisso, é possível limitar até onde o artista deve ou pode ir?

O puritanismo e a inquisição estão escondidos hoje em fantasias muito variadas e coloridas: há um “progressismo” moral que é inquisitorial, e também há um “niilismo” estético incapaz de lidar com isso. A liberdade é total ou não é. Seu limite é o outro, mas qualquer proibição baseada em princípios morais ou sentimentais é perigosa. A lei não deve limitar nenhuma forma de expressão, nenhuma. Fingindo legislar tudo, tentando impor lei para um mundo ideal, apenas construímos o caminho para o inferno.

Brasil, Venezuela e Estados Unidos atravessam crises políticas bastante graves. Qual o papel que artistas e intelectuais devem desempenhar em momentos como esses?

Obviamente, os três exemplos citados referem-se a uma profunda crise de natureza social, que se manifesta de forma dupla: crise do sistema de representação política e falência na confiança dos cidadãos nas suas instituições. Como foi o caso na Venezuela, sem dúvida, o mais grave e trágico dos três, o pior que pode acontecer é tentar substituir a própria idéia de representação política por um sistema de empatia carismática, populista e autoritária que se esconde atrás da falácia do protagonismo direto; o pior que pode acontecer é tentar terminar definitivamente com as instituições.

O maximalismo do “bem-benefício” e o puritano é uma doença assustadora que afeta as elites do mundo contemporâneo: impor a cidade ideal é impor o inferno. No campo da arte, sempre fui contra o imperativo que dita ao artista a obrigação de “responder” à realidade sociopolítica: o artista só deve responder à sua poesia, à sua necessidade poética. Se isso é realmente relevante, ele incluirá a realidade política. O pior da arte é reduzir o mundo a um tema.

Em 2012, durante a Bienal de São Paulo, você lamentou a ineficiência e desinteresse do artista pelo conhecimento geral. Era um tempo que o artista estava optando pela profissionalização da arte. A situação mudou?

Nada mudou, pelo contrário. A “disciplina” da arte contemporânea vai de mãos dadas com a sua submissão à comercialização do mundo global. Se trata, para muitos artistas, de produzir trabalhos “vendáveis”, mesmo através de simulação de uma radicalidade política ou diferencial que é puramente da ordem do simulacro. Muitos artistas aspiram apenas serem membros de uma tribo de fachada, “especialistas” ou “experts” da sua própria contemporaneidade. Os espaços de incerteza e ambiguidade, de incerteza e dúvida, as áreas cinzentas do mundo, as bordas frágeis e porosas entre as coisas e as idéias com as quais a sabedoria geral e a poesia sempre ocuparam são cada vez mais abandonadas.

Na construção da construção dos grandes acervos, sejam eles privados ou públicos, muitas vezes a aquisição das obras se dão por meios nem sempre legais ou éticos. O proprietário e idealizador de Inhotim, recentemente foi denunciado por lavagem de dinheiro e corrupção. É possível separar Inhotim desse escândalo?

Você deve saber distinguir entre responsabilidade pessoal e responsabilidade institucional. Inhotim, uma iniciativa para a qual sempre expressei reservas críticas, está em crise e eu não serei aquele que “dispara na ambulância”. Inhotim existe e o trabalho deve continuar porque ele segue existindo.

Você está ligado a arte desde a infância. Posso afirmar que literatura e modernismo são suas grandes paixões?

Na verdade, estou interessado em pensar sobre o assunto da modernidade em geral, mas, especificamente, estou interessado na idéia de modernidades diferidas, involuntárias, alternativas e alter-modernas. Estou interessado em gravar fractalidade da modernidade como um projeto estrutural e programaticamente inacabado. Estou interessado em “efeitos” modernos, mais do que “programas” modernos.

Quais são os artistas latino-americanos que mais chamam sua atenção hoje?

Nunca tive uma abordagem biográfica, genealógica ou individual no espaço da arte. Não me interessa os artistas, mas as relações entre artistas, links, links, constelações de artistas. E eu não acho que eu possa fazer justiça a eles aqui, porque eles são múltiplos.

* Luis Pérez-Oramas é autor, entre outros, de ‘Olvidar la muerte. Pensamiento del toreo desde América’, de 2016

* Tarsila do Amaral: Inventing Modern Arte in Brazil fica aberta para visitação até 3 de junho, no MoMA (11 West 5 Street, Manhattan)