A batalha de ser puta no século XXI

O Beltrano conversou com a prostituta sueca Pye Jakobsson, presidenta da Rede Mundial de Projetos para Trabalhadores Sexuais, a historiadora americana Melinda Mindy, especializada em trabalhadoras do sexo, e a prostituta e escritora Monique Prada sobre a crescente onda de criminalização da prostituição


por Lucas Simões

Monique Prada- Foto – Mídia Ninja

A prostitua sueca Pye Jakobsson, 49 anos, presidenta da Rede Mundial de Projetos para Trabalhadores do Sexo (NSWP), é puta há 31 anos e mora no país mais conservador do mundo para a profissão. Ela trabalhou em 11 países desde que a Suécia se tornou pioneira em criminalizar a prostituição, ainda em 1999. De lá para cá, a medida impulsionou um lastro de proibicionismo com diferentes níveis de punição na Islândia, Noruega, Cingapura, Canadá, África do Sul, Coreia do Sul, Irlanda do Norte e, mais recentemente, na França. Lá, a prostituição foi proibida ano passado, acrescida de multa de € 3,700 (R$ 15 mil) para quem pagar por sexo, além de sanções às prostitutas. Uma decisão que voltou a incendiar o debate sobre prostituição no mundo inteiro.

Nesta quarta-feira (09/07), Pye esteve em Belo Horizonte, no Centro de Referência da Juventude (CRJ), como convidada do ciclo de debates “Um Século e Meio de Abolicionismo: Prostituição, Criminalização e Controle da Mulher”, promovido pelo Coletivo Davida e o Observatório da Prostituição da UFRJ, que acontece também em outras quatro cidades do país – Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e Florianópolis.

Monique Prada- Foto – Mídia Ninja

O ciclo de debates ainda contou com exposições da historiadora americana Melinda Mindy Chateauvert, especializada em trabalhadoras sexuais, e da intelectual, prostituta, ativista e escritora paulista Monique Prada. É o primeiro encontro no Brasil de caráter internacional organizado por putasfeministas para rebater a onda anti-prostituição cada vez mais expansiva e espelhada no chamado “modelo sueco”.

Na capital mineira, Pye soube que foi assiduamente atacada pelos portais de notícias da Suécia nesta semana, quase todos militantes radicais contra a prostituição. “Me chamam de ‘antifeminista’, de louca, de tudo. Fizeram uma matéria há três dias, eu acho, me atacando, defendendo os benefícios do fim da prostituição e deixaram o conteúdo 21 horas no ar. Depois, apagaram. Eles não queriam que eu estivesse aqui (no Brasil) para falar com vocês. Afinal, eles acham que proibir a prostituição resolve tudo. É um sintoma no mundo”, ela rebate.

No Brasil, o deputado federal e pastor evangélico João Campos (PRB-GO) ainda não desistiu de levar ao plenário o Projeto de Lei 377/2011 que criminaliza a prostituição no país – e tem forte apoio da maior parte dos 87 parlamentares da bancada evangélica. A proposta brasileira também é espelhada no modelo sueco e o deputado a justifica dizendo que “a maioria das pessoas que estão na prostituição, estão exatamente por falta de oportunidade no mercado de trabalho”. Um dos argumentos mais rechaçados pelas putasfeministas.

Cida Vieira, presidente da Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig), é uma das prostitutas que fazem coro contrário à vitimização da profissão. Filha de militares, ela desistiu da faculdade de direito para trabalhar com fetiches sexuais e “viver do que gosta”, como diz, há mais de duas décadas. Mas, longe de romantizar a prostituição, Cida batalha por uma regulamentação trabalhista da atividade.

Em Belo Horizonte, ela lida com um universo flutuante de 2 mil prostitutas por mês apenas na rua Guaicurus, espalhadas pelas esquinas e quartos dos atuais 32 hotéis que recebem as trabalhadoras sexuais. “A maioria das meninas vêm do interior e mudam com frequência, ficam 30 dias, fazem temporada no Rio e em São Paulo, voltam, mudam de novo. Querem fazer a vida, se estabelecer, mas essa migração dá a elas uma independência de não ser reconhecida por amigos ou familiares, já que ser puta é muito estigmatizado e, claro, não há segurança pela falta de regulamentação”, diz Cida.

“Agora, é claro que existe exploração, tráfico de pessoas, inclusive infantil, que é gravíssimo, e é crime. Mas colocar todas as putas como vítimas exploradas de tráfico ou de cafetões é não saber a realidade. Quem chama as putas de coitadinhas deveria saber quantas delas estão comprando casa, carro, pagando estudos. Eu, particularmente, gosto de ser prostituta. Faço porque gosto”, completa Cida.

Um dos principais argumentos do governo sueco para a proibição das prostituas é o combate ao tráfico humano. Essa também é uma das justificativas do deputado João Campos para aprovar a proibição da prostituição no Brasil – em 2013, ele distribuiu aos parlamentares cópias em DVD do filme “Nefarious – O Mercado de Almas”, sobre o tráfico internacional de mulheres para prostituição.

O principal estudo elaborado sobre o tema, “A Legalização da Prostituição Aumenta o Tráfico de Pessoas?”, publicado na revista científica “World Development”, em janeiro de 2013, analisou a prostituição em 150 países e concluiu que “onde a prostituição é legal têm uma quantidade maior de tráfico humano reportada”.

Apesar disso, Simon Hedlin, ex-conselheiro de igualdade de gênero do primeiro ministro da Suécia, rebateu a precisão da pesquisa em artigo publicado na revista Forbes, ano passado, dizendo que “os dados sobre tráfico humano no mundo inteiro são muito ruins e, fazer pesquisas sobre esse tópico é, sabidamente, difícil” .

A partir de uma série de estudos realizados na UFRJ ao longo dos últimos 15 anos com trabalhadoras sexuais, o antropólogo americano Thaddeus Gregory Blanchette, do Instituto Davida, com sede no Rio de Janeiro, defende que o discurso de combate ao tráfico humano é falaciosamente distorcido para justificar o cerceamento da prostituição no mundo. E esse é um dos principais imbróglios da discussão, segundo ele.

“É um assunto extremamente complexo que não pode ser reducionista ou proibicionista, simplesmente. Eu entrevistei um universo de mais ou menos 3 mil prostitutas no Brasil e nenhuma delas passou por situações de tráfico. Nenhuma, eu repito. Isso não significa que o tráfico humano não exista. É claro que mulheres são traficadas para serem prostitutas, crianças são exploradas, mas generalizar a prostituição como tráfico humano é uma das grandes desonestidades políticas e sociais do governo sueco e de quem o acompanha nessa onda. E, pior, não resolve o problema do tráfico com a simples proibição da prostituição”, avalia Thaddeus.

Pye Jakobsson – foto – Mídia ninja

Modelo sueco

Apesar de estar há 18 anos em vigor, a lei sueca que criminaliza a prostituição conseguiu reduzir em apenas 50% a atividade das trabalhadoras sexuais no país, segundo o próprio governo. Além disso, a Associação Sueca para Educação em Sexualidade (RFSU, na sigla em inglês) elaborou um estudo em 2015 atestando que a “lei está obrigando as mulheres que vendem sexo a viver situações perigosas, uma vez que as transações tornaram-se mais rápidas e furtivas, porque os homens têm medo da polícia, levando mulheres a saltar para dentro de carros sem antes verificar se o motorista está bêbado, drogado ou representa alguma ameaça”, diz o documento.

Fora essa denúncia, Pye também alerta que a lei penaliza arbitrariamente as trabalhadoras do sexo em três pontos considerados abusivos, apesar de o governo sueco enfatizar punições apenas aos que pagam pelo sexo, e não às prostitutas. Hoje, quem for flagrado pagando por sexo na Suécia está sujeito a multas que variam de € 350 (R$ 1.312) para uma pessoa desempregada, até 150 dias de salário para cidadãos com carteira assinada.

“Na realidade, a punição não é só para os que pagam por sexo. A primeira arbitrariedade da lei é a lei dos cafetões. Ela estabelece que o dono da casa não pode permitir a prostituição. Mas é muito mais do que isso. Se alguém faz sexo numa festa, cobra por isso, e eu sou a dona da festa, logo, sou penalizada. A mesma coisa se eu estiver no mesmo quarto que uma mulher que está cobrando por sexo com um cliente: eu viro cafetina por isso. A segunda é a lei dos aluguéis. Se eu exercer a prostituição na Suécia e tiver casa própria, a lei diz que eu perco a minha casa para o governo. E a terceira é de lei dos imigrantes. Ela diz que estrangeiros devem ser deportados por ganharem dinheiro de ‘forma desonesta’, caso sejam flagrados no exercício da prostituição. É esse o valor que o governo sueco carrega: a moralidade de achar uma puta desonesta por ganhar dinheiro fazendo sexo com quem ela quiser”, completa Pye.

A ativista sueca também faz um paralelo histórico com os dogmas e conceitos morais que pautaram a sociedade da Suécia ao longo das últimas décadas e que, para ela, foram fundamentais para que a criminalização da prostituição recebesse o apoio da esmagadora maioria do país – 85% das mulheres aprovam a proibição da prostituição e 60% dos homens.

“Desde a década de 1970, já havia um pensamento de que putas não são normais. Foram feitos estudos científicos para tentar ‘provar’ anormalidades no comportamento de prostitutas, minorias, gays. E assim foi construida da identidade sueca, pautada em valores tradicionais de ‘normalidade’, onde todo mundo é parecido, tem o mesmo carro, o mesmo emprego, o mesmo salário e o mesmo alto ou médio padrão de vida e é feliz. Vocês que acham a Suécia incrível com seus padrões humanos talvez não saibam, mas o primeiro centro de racismo científico do mundo foi na Suécia”, diz, em referência ao centro de pesquisa eugenista instalado na cidade de Upsalla, nos anos 1970, onde nasceu a ideia de esterilização forçada para doentes mentais, deficientes físicos, gays, prostitutas e minorias étnicas.

“Em 1990, a Suécia aprovou uma lei que tirava os filhos das prostitutas, alegando que elas não eram capazes de cuidar de seus bebês. E, por fim, tivemos a proibição da atividade de prostituição em 1999. Mas todo esse cenário que estamos falando vem de longo tempo”, contextualiza Pye.

Debate

Enquanto mais de dez países no mundo já adotam as chamadas práticas de abolicionismo, que punem clientes, prostitutas e pessoas associadas à prostituição a partir da interpretação de que prostitutas são vítimas exploradas por sistemas opressores, apenas Alemanha, Dinamarca e Holanda regulamentaram a prostituição como profissão por lei. Ainda assim, esses modelos também recebem críticas das putasfeministas.

Na Holanda, por exemplo, onde a prostituição é regulamentada há 17 anos, está instalado o primeiro Museu Mundial da Prostituição – uma tentativa do governo de arrancar o estigma negativo das trabalhadoras do sexo. Mas, ao mesmo tempo em que o país criou um seletivo controle governamental para o exercício da profissão, nem todos os direitos foram assegurados às trabalhadoras, segundo a historiadora Melinda Mindy Chateauvert.

“A Holanda é um caso curioso porque poucas pessoas podem exercer a profissão. É bastante rígido. Além disso, muitas trabalhadoras do sexo têm dificuldade de encontrar uma casa, abrir uma conta no banco, ter crédito na praça porque consta a profissão de prostituta no documento trabalhista. Ou seja, a sociedade holandesa não perdeu o estigma contra prostitutas, mesmo elas sendo reconhecidas pelo governo legalmente”, diz Melinda.

Por isso, a historiadora americana defende a descriminalização da prostituição, ao invés dos modelos de regulamentação excludentes. Com pesquisa centrada em trabalhadoras sexuais, principalmente de Nova Orleans, nos EUA, país onde é proibida a prostituição, com exceção do estado de Nevada, Melinda avalia que proibir a prostituição com penas criminais contribui principalmente para criminalizar a pobreza.

“Estamos falando de pessoas, muitas que têm opção e muitas que não têm, algumas que são exploradas e outras que estão tentando sobreviver. Então, não é simples. Em Nova Orleans, uma cidade extremamente pobre, como acontece em outras partes dos EUA, mulheres solteiras, muitas com filhos, negras, que recorrem à prostituição para sobreviver, refutando empregos que pagam menos, por exemplo, foram criminalizadas. Ficaram ainda mais à margem da sociedade. Não é uma solução proibir”, diz Melinda.

Brasil

A tentativa de regulamentar a prostituição no Brasil aconteceu em 2013, quando o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) resgatou um projeto repaginado do ex-deputado federal Fernando Gabeira (à época, PV-RJ), mas o texto foi rechaçado em plenário. Nomeado de PL Gabriela Leite, em homenagem à principal ativista das prostitutas no país, o documento propunha alterações no Código Penal para distinguir claramente a prostituição da exploração sexual e do rufianismo ou cafetinagem. Além de permitir as casas de prostituição, hoje, ilegais no país, apesar de funcionarem a pleno vapor sem qualquer repressão ou fiscalização dos governos.

Prevendo aposentadoria especial com contribuição pelo INSS, após 25 anos de trabalho, outro destaque do PL é classificar exploração sexual para quem se apropriar de mais de 50% da renda da prostituta ou obrigar alguém a se prostituir por ameaça ou violência. A ativista Monique Prada, presidenta da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS) e integrante da ONU Mulheres, diz que, mesmo com boas intenções, o PL ainda não é um mecanismo ideal. “O texto tem apenas cinco pontos e, certamente, é necessário mais elementos para garantir os direitos trabalhistas das putas. É um passo, foi um debate interessante. Mas, precisamos de uma mobilização e instrumentalização maior”, diz.

Apesar disso, na recente reforma do artigo 187 do Código Penal, o Partido Popular (PP) introduziu uma emenda, a ser votada, que favorece o lenocínio, ou seja, a exploração sexual sem consentimento. Segundo a emenda, para que haja crime na prostituição, seria necessário flagrante de “condições vexatórias, desproporcionais ou abusivas” ou “uma situação de vulnerabilidade pessoal ou econômica”. Além disso, a emenda reduz de 14 para 12 anos a idade considerada para estupro de vulnerável.

“Não existe nenhum mecanismo judicial ou de governos para combater a exploração sexual, eles não querem isso. O que nós estamos vendo são tentativas de cercear a prostituição e, ao mesmo tempo, facilitar a exploração, inclusive a infantil. São movimentos que estão sendo feitos no Congresso, e, nós, prostitutas que queremos trabalhar honestamente, estamos sendo criminalizadas”, rebate Cida Vieira, presidente da Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig).