O retrocesso do medo


Por João Gualberto Jr.

Desenho de Pollyanna Dias

Tem horas que, na boa, o medo supera a esperança. Temos a consciência do nevoeiro em que estamos metidos e do quão espesso ele se mostra. Sobretudo, admitimos nossa cegueira. Quanto tempo vai durar? Até onde a bruma se estende? Um passo adiante, onde me levará? Para o nada? Para o buraco? Para uma pedra na qual meu pé ou joelho dará uma topada doída?

Desde junho de 2013 (é um marco questionável, mas é uma marca indiscutível), a atmosfera política vem se adensando gradualmente. É um gás tóxico, pestilento, virulento, com altos teores de combustibilidade e eletricidade. Uma faísca e…

A execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson, na região central da Cidade Maravilhosa, na noite do dia 14, foi mais uma injeção letal à base de querosene lançada ao vento. Mulher, negra, favelada, uma das mais votadas em 2016. Corajosa, audaciosa. Cinco tiros. Silenciada a bala, a sangue frio. Grita a falência moral do Estado, apartado, alienado de seu povo. Neste ano, teremos eleições. E o ambiente é esse, oco ocupado por esse gás. O medo será a vaca prenhe de três chifres a tocar a campanha, e ela, por sua natureza, não tem como parir crias boas e belas.

A execução de Marielle vai render, vai crescer, vai se desdobrar. Apesar de ser “só mais uma mulher-negra-favelada-assassinada” e “a carne mais barata do mercado”, como canta Elza Soares, o transbordamento do crime é coisa certa. Não obstante sua origem ordinária e desvalida, ela ousou outro fado que não os açougues das misérias sub-humanas suburbanas. Esse foi seu “crime”, chegar onde não era para ela e portando em sua voz a turba de representados da qual emergiu sem jamais se distinguir. E, por isso, seu assassinato ecoa e ecoará, para o bem e para o mal, e saturado por medo.

Medo não da morte de uma cidadã, de qualquer cidadã, mas exatamente do que desta específica já exala. Medo do ato de se acusar a vereadora de ser responsável pela própria execução, sendo “defensora de bandido” e merecendo, assim, aquele desfecho “justo”. No mesmo dia que Marielle, Stephen Hawking fechou os olhos em definitivo. O notório físico inglês também foi condenado pelos “cristãos de bem” por ser declaradamente ateu: arderia no fogo do inferno. Origem e saberes tão distintos, ela e ele foram unidos, para além da fatídica data, pela ignorância alheia, perversa e desbragada. A desumanidade é de dar medo, em qualquer tempo. Numerosa, então…

Mas o que o caso de Marielle acarreta de temível é o contexto, mais do que propriamente a vilania dos comentaristas de Facebook, que são apenas um sintoma do cagaço-mor. A vereadora pelo PSOL denunciou e denunciava abusos policiais nas favelas, especialmente no complexo da Maré, de onde era. Fez isso pelas redes sociais poucos dias antes de ser executada. Além disso, por vários anos, foi assessora do deputado Marcelo Freixo, ameaçado de morte por milicianos numa história contada até pelo cinema. Acabou nomeada para presidir a comissão especial na Câmara carioca que irá acompanhar a intervenção militar na cidade. O caldo entornou.

O Rio, feito em símbolo do Brasil, hoje simboliza a decrepitude da administração pública brasileira. Corroídos por cobiça, corrupção, egoísmo e incompetência, municípios e estados e seus respectivos Legislativos vivem a bancarrota fiscal e a moral. Só não ocorreu ainda o mesmo com a União em razão de sua acumulação tributária frente aos outros entes da federação. Mas é fato que o autointeresse desmedido e a indiferença ao serviço de caráter público estão demolindo o Estado brasileiro.

Marielle morreu disso. Anderson também, assim como milhares, milhões de brasileiros. É uma guerra civil difusa, camuflada em balas perdidas, perseguições discriminatórias, viadutos, muros e rodovias que desabam, hospitais lotados que não atendem os doentes etc. Atenção: este não é um discurso liberal, pelo contrário. Não é porque nosso poder público quebrou que sonhamos desmantelá-lo. Como nação, dependemos muito dele, que exige reformas e novos crivos de acesso. É empreitada longa e complexa, mas não se deve trocá-la em nome do fim do Estado, como não se devem tomar as instituições mal geridas por seus gestores defeituosos.

A intervenção de Temer no Rio, que levou de novo a patriotada dos quartéis para as ruas, foi atentada de tabela com o duplo homicídio. Como o Exército ocupando o espaço público municipal não evitou a execução de uma autoridade investida no cargo pelo voto popular em pleno centro da cidade? Pois, se se ensaiou a promoção de mandados coletivos nas favelas, o achaque a moradores de comunidades e outras inconstitucionalidades civis, o que não virá agora? O que os militares terão carta branca para fazer com o fim de sustentar alguma honradez dessa “marquetagem” perigosa do golpista em um estado quebrado e mendicante? Mais gente tende a padecer desse mal público.

Pois enquanto a PM bate em professores na cara a mando de um “prefake” e juízes ameaçam greve pela manutenção de seu auxílio-moradia, comparando-se a escravos se perderem o privilégio, nós iremos votar. Nos três Poderes, no município, no estado e no governo federal, os servidores perderam a noção do serviço. A impressão é que cagam e andam para quem os sustenta pagando impostos, por sua vez injustos e abusivos, fator de concentração de renda quando deveria ser o inverso.

Iremos votar numa situação em que 48% de nós não têm preferência por qualquer partido e em que 72% dizem que votam no candidato sem se importar com a legenda dele (CNI/Ibope). Revoltados com o descaso das instituições públicas imposto pelas mazelas morais de seus chefes, desesperançados e com medo, vamos às urnas. Medo motivado por insegurança, esta, dimensão que se traduz pela falta de clareza sobre o futuro no que diz respeito a tudo: integridade física e patrimonial, provisão financeira, preservação de emprego e bem-estar e acesso à educação, cultura etc. É o tal do nevoeiro no qual estamos metidos.

Falsos messias se aproveitarão dessa cegueira ocasional. Medo não dá boas crias nem bons eleitos. Marielle é vítima, e todos nós somos em alguma medida. Seremos. De fato, o cenário está lembrando o de 1989: indefinição a respeito das regras do jogo, muitos aventureiros com candidaturas avulsas, uma sede raivosa por mudança e o país na bagunça, com suas instituições no descrédito. Ai que medo!

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.