Por que levar Bolsonaro a sério


Por João Gualberto Jr.

 

A sigla da organização criminosa que controla a massa carcerária de boa parte do Brasil deve ser evitada no noticiário? É melhor não se mencionar o nome daquele que é considerado o maior narcotraficante dos morros cariocas e alhures? Com que nível de profundidade nazismo e fascismo podem ser ensinados na escola? A omissão, nesses casos, resulta em demérito para os que não se deve denominar ou, ao contrário, rende curiosidade, interesse e até serve de propaganda?

Sim, precisamos falar sobre o Kevin. O inominável tem nome, sobrenome, história, cara, ideias, partido, mandato e milhões de apoiadores. Fingir que não existe, que não passa de doido ou fantasma, só o fortalece. Precisamos levar Jair Bolsonaro a sério. O deputado federal fluminense, que só perderia para o condenado Lula, como atestam as prematuras pesquisas de intenção de voto, não é um Enéas Carneiro e muito menos um Levy Fidélix, porque o país também não é o mesmo de vinte ou dez anos atrás.

Na terra arrasada em que se prostra a política partidária brasileira, qualquer tentativa de previsão do que serão as eleições do ano que vem não passará de tiro no escuro. Isso se houver mesmo eleições. São muitas e grandes as dúvidas.

Do pouco que se pode afirmar, na curta paisagem que a vista alcança, é que Bolsonaro tem condições a seu favor para um bom desempenho, de novo, se houver pleito. Menoscabá-lo, fazer chacota de sua pré-candidatura e ridicularizar o que ele vocifera não são mais táticas inteligentes, como já deveria ser percebido por quem tem juízo na cachola e na língua. Vivemos num tempo em que o ridículo e o absurdo rendem adesão. É, sim, um cenário plausível a eleição desse senhor, e é preciso considerar essa hipótese. O temor não é propriamente de que, se uma sinuca histórica desse tamanho ocorrer, o novo presidente instaure uma ditadura meio civil, meio militar. O medo é de um Collor reeditado, o que seria péssimo.

Bolsonaro, Ciro Gomes (PDT) e talvez Marina Silva (Rede) são os poucos presidenciáveis postos e que se encontram em campanha ativa. E por que, dentre esses três, o inominável tem vantagem? Menos por suas qualidades do que por todo o resto que nos rodeia. Pode estar se desenhando um alinhamento de astros que possibilite um raríssimo eclipse total ao meio-dia. As comparações com a ascensão e a vitória de Donald Trump já são feitas. Tudo bem que o militar brasileiro não tem as armas do magnata do partido republicano, entretanto, em 2016, o cenário nos Estados Unidos estava longe de ser tão nebuloso quanto o nosso de agora.

O terror

O pensador e escritor italiano Umberto Eco caracterizou sucintamente o fascismo, seu ideário e as práticas de seus líderes visando à escalada do poder. Uma delas é o terrorismo psicológico, a tentativa de construção de um clima de histeria coletiva, algo que a campanha de Trump explorou com muito sucesso perante o eleitorado médio norte-americano. Por quais meios? Pelas redes sociais, claro, o pulverizado arauto da contemporaneidade.

Nesse quesito, não há outro nome por aqui que disponha de um exército de voluntários que se equipare ao do capitão do Exército. Polarizando com petistas e outros usuários que se posicionam à esquerda, a estratégia do “quanto pior, melhor” é direcionada pelos agitadores das centenas de contas que trabalham em favor da pré-candidatura de Bolsonaro.

Twitter, Facebook, grupos de Whatsapp etc. foram inundados recentemente pelo catastrofismo baseado nas falsas notícias xenófobas de uma “invasão” de muçulmanos terroristas em fuga para cá. Os “riscos” da implantação do Foro de São Paulo e da “venezuelização do Brasil” também são outros temas recorrentes. Quem movimenta essas ondas?

O conservadorismo

Grande parte dos milhões de apoiadores não vê no deputado uma mera opção eleitoral: ele é ídolo, ou seria melhor acreditar que são coisa de militância paga as recepções calorosas nos aeroportos de Norte a Sul do país, a cada fim de semana, quando dezenas de homens saem carregando “o homem”?

Segundo o Datafolha, o perfil preponderante do eleitor de Bolsonaro é masculino, de até 34 anos, com nível superior de instrução e habitante do Sudeste. Por que um parlamentar fascista, que só conseguiu aprovar dois projetos em 26 anos na Câmara, mobiliza a mente e a alma de tantos brasileiros jovens e estudados?

Quando o marketing bem direcionado se alicerça em valores genuínos, ou seja, em ideias que o “produto” carrega de fato, o trabalho de venda fica mais fácil. A indisposição para o diálogo, a rejeição ao diferente, a intolerância para com quem não se enquadra a padrões, a intransigência perante o transgressor, todos esses são elementos da cartilha fascista no capítulo “interrelações”. Bolsonaro encarna o passado na perspectiva de direitos civis, emancipação de minorias e promoção de cidadania.

E não há combustível mais poderoso para alguém como ele do que jovens com cabeça velha. Podem ser pessoas que se afligem com as transformações graduais por que passa a sociedade e se veem ameaçados por elas, que temem perder a vez na repetição do ciclo de privilégios de que gozam seus genitores homens e que rejeitam a noção de igualdade de papéis, seja em casa ou na rua. Lembrou de alguém com esse feitio?

O mesmo Datafolha, em outro levantamento, demonstrou que, de 2014 a 2017, os brasileiros mostram-se mais afeitos a ideias liberais quanto a comportamento. Cresceu, por exemplo, a tolerância aos homossexuais e aos migrantes pobres e a rejeição à tese da pena de morte. Contudo, é justamente o compartilhamento de novos valores sociais que acabam amedrontando as mentes mais conservadoras e as obrigando a se arregimentarem. Os meios de comunicação computacional certamente têm participação para os fascistas: a) se reconhecerem; b) saírem do armário; c) se unirem em facho cada vez mais espesso; e d) conquistarem mais adeptos.

A hipótese dos papéis das redes sociais na radicalização de posturas sociopolíticas e na organização dos movimentos que delas advêm, em escala global, já é mobilizada pela CIA e pelas Forças Armadas dos Estados Unidos como ferramenta de contraguerrilha. O Brasil não passaria ileso à tendência colateral.

A insegurança

Umberto Eco também atestou que não há caso na história de prosperidade de movimentos fascistas fora de um cenário de crise. E, crises, temos para todos os gostos. A exploração do cenário negativo e do populismo salvacionista catapultou a ascensão de regimes ditatoriais (de todos os matizes). Devemos entender insegurança como sinônimo de incerteza, de imprevisibilidade: amanhã ou na semana que vem, terei emprego? Terei comida em casa? Teremos sequer casa? E, também, no que diz respeito à integridade, continuaremos seguros eu, minha família e meu patrimônio? “Bom era na ditadura! Bandido nenhum metia medo na polícia, que todo mundo respeitava. E quem não era gente de bem era bandido.” Quem nunca ouviu uma frase dessas, simples como um átomo de oxigênio ligado a dois de hidrogênio? Pesquisas acadêmicas de comportamento e cultura política geracional concluem que a população mais nova é mais permissiva a regimes de governo fechados, justamente por não ter vivido sob eles. Esse é um traço comum e atual a quase toda a América Latina.

O Brasil de Temer é um prato cheio para o aprofundamento de um quadro de insegurança. Imaginemos em um ano, quando partidos e candidaturas estiverem colocados para a disputa, como estarão os indicadores sociais. Desemprego, acesso e distribuição de renda, famílias abaixo da linha de pobreza, por exemplo, são variáveis sobre as quais há baixa expectativa de melhora. A degradação social, que já é visível, tende a piorar com o estrangulamento de políticas públicas e um horizonte de pessimismo que se autocontamina. Lembre-se sempre: o nome do meio do Jair é Messias.

O descrédito

A relação de Temer e seus comparsas com o Congresso Nacional, coroada com o livramento do presidente denunciado por corrupção, na última quarta-feira, alimenta a aversão do cidadão ao jogo político convencional. Essa atmosfera vem pesando desde os atos de junho de 2013 e se condensou em forma e conteúdo com o avanço da Lava Jato. A maior parte do eleitorado rejeita os partidos e sua militância, está à margem e desgosta da fictícia batalha de coxinhas contra petralhas e o mais grave: se o resultado da democracia é isso que aí está, roubalheira desenfreada em todas as instâncias de poder enquanto não há atendimento de qualidade no SUS, enquanto não há mais remédio de graça, enquanto a escola pública é um lixo pernicioso para as crianças, enquanto estou desempregado, enquanto posso tomar uma bala perdida nos cornos, enquanto pago um trilhão em impostos diretos e indiretos para sustentar esse jogo sujo, se isso é o que eu recebo de retorno da tal democracia, prefiro brincar de outra coisa.

Nada melhor do que o fascismo traduz a negação da política enquanto possível arena de resolução de problemas coletivos. Bolsonaro não se enquadra no tipo não-político, tão em voga, porque tem vários mandatos e fez do voto um negócio de família. Mas não podemos também dizer que não seja um outsider. Ele não tem relação com qualquer das grandes e desgastadas legendas, aliás, com nenhuma. Também por isso, não possui experiência de governo o próprio pré-candidato ou a bandeira que o abrigar. Assim, não oferece base de referência na chefia de Executivo, o que pode ser muito bom, pois governar é se tornar vitrine e vidraça ao mesmo tempo.

O deputado encarnaria o novo. Traduzidos em aposta ou protesto, como um Cacareco, um Tiririca ou um Trump, o cansaço e o desalento do eleitor brasileiro tendem a render muitos votos. Isso sem considerar os apoiadores convictos.

O moralismo

Por mais que a contrapropaganda de esquerda se empenhe, por meio de blogs e redes sociais, a corrupção ainda não colou no capitão. Seu nome estaria na famosa Lista de Furnas, apontando repasse de R$ 50 mil na eleição de 2002. Sobre sua antiga sigla, o PP, ter recebido propina de empreiteiras condenadas na Lava Jato, Bolsonaro admitiu em maio: “qual partido não recebe propina?” Seu silêncio diante das tramoias do governo também pode estranhar. Seu PSC não só é da base aliada como é o partido do líder de Temer no Congresso, André Moura (SE), condenado por desvio de dinheiro e processado no STF por tentativa de homicídio.

Tanto o presidenciável como os filhos adotaram a limpeza de conduta como tópico-alicerce de marketing – além de outras, como o antipetismo, o patriotismo e o conservadorismo. O falso moralismo-cristão – ou “só eu tenho olho numa terra de cegos” – tem cheiro de mote de campanha desse quase real Porfirio Diaz. O caminho é esse: há informação de que, no fim de semana passado, fiéis de uma importante igreja neopentecostal saíram à periferia de Belo Horizonte para apresentar o nome do pré-candidato à população.

E o que pesa contra Jair Bolsonaro em 2018? Primeiro, a própria língua. Se não mensurar bem o comprimento certo para cada momento, vai acabar tropeçando nela. A considerar todo o preparo de assessoria que trabalha em equipe há meses, com muito “media training” no pacote, qualquer arroubo em discurso será mais fruto de cálculo. Mas o homem é irascível, tem seus calcanhares de porcelana, e o povão torce o nariz para a destemperança sem propósito e prefere a postura equilibrada.

A relação de Bolsonaro com os mercados, seja o produtivo ou o rentista, é uma incógnita, e esta dúvida pesa desfavoravelmente a ele. A elite financeira do país prefere o nome que o PSDB paulista lançar, seja Alckmin ou Doria. O discurso liberal, mel para os ouvidos de quem paga a fatura, não combina com patriotadas, pelo contrário. Então, o militar terá que sair do muro. A depender do quanto ele transigir em suas reais pretensões a favor da livre iniciativa privada e a depender do quanto a imagem do tucanato sairá chamuscada da crise política, Bolsonaro pode ser encarado como dama a ser cobiçada. Seu dote são mais de dois dígitos de partida na corrida presidencial.

A manobra partidária que está em curso é igualmente arriscada, mas talvez necessária para seu projeto de poder. Bolsonaro está trocando o PSC pelo PEN, um partido inexpressivo. A ideia dele é controlar a sigla, que, como a atual, também tem imbricações com denominações evangélicas, mas, assim, evitaria os entraves impostos pelos líderes da Assembleia de Deus, que controlam o PSC. O deputado se desentendeu com Pastor Everaldo, presidente social-cristão e candidato ao Planalto em 2014, que se opõe ao lançamento do militar pela sigla no ano que vem.

O capitão reservista pretende levar para o PEN, além dos três filhos parlamentares, outros 15 deputados federais. Com isso, quer fortalecer a sigla institucionalmente como também junto ao segmento evangélico. Ainda assim, a legenda dificilmente crescerá substancialmente em um ano. Em que pese a hipótese de uma vitória apartidária, as relações com o Congresso são pra lá de partidárias. E aí, como se daria uma coalizão para atender a um chefe de Executivo com o perfil em questão? Eis o temor de repetição de um fenômeno Collor. Conhecemos o desfecho.

Na onda dos “rebatismos” partidários, o PEN também está mudando de nome para acolher com novidade o filiado ilustre, que já está “99%” lá. Enquete no site da sigla aponta vitória parcial da opção Patriotas, um lance de marketing bem a caráter.

Desde que a atual crise começou, muitas foram os ensejos para se buscar um pacto de reconstrução institucional da política brasileira. Mas a necessidade de salvação dos próprios pescoços e a sede por poder não deram trégua para tamanha renúncia. Uma falinha de Lula sobre o PSOL, por exemplo, rendeu dias e dias de bate-boca. Se nem a ala canhota consegue se entender para se encorpar e, quem sabe, fechar questão sobre uma candidatura única (vai sonhando!) que dirá a tentativa de uma pactuação suprapartidária.

Das ruínas do sistema emerge o inominável messiânico. Teria virtude a rama que brota do medo, do ódio, da insegurança e da desesperança? Para quem prefere sua supressão, uma estratégia ampla e eficaz, mais do que necessária, é urgente. E omissão não ajuda.

Política

João Gualberto Jr. 

Jornalista, economista e cientista político.