Recuerdos #15M

Quatro relatos de um dia histórico


Por Rafael Mendonça,  Jô Hallack, José Antônio Bicalho e Silvana Mascagna

Foto: Rafael Mendonça

Foi lindo e só os jornalões não viram. O 15 de março ficará para a história com suas paralisação e passeatas por todo o país contra a reforma da Previdência e contra o governo Temer. O Beltrano traz quatro relatos do movimento em três cidades: Belo Horizonte, Rio e São Paulo. No último, o emocionante discurso de Lula.

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BELO HORIZONTE, 15 DE MARÇO

Serpente de gente

Por Rafael Mendonça

Foto: Rafael Mendonça

10h de uma ensolarada e quentíssima manhã. Cheguei na Praça da Estação em cima do laço e alí já estavam umas cinco ou seis mil pessoas. Havia algo de diferente nessa manifestação para as outras: a diversidade. Não estavam presentes apenas “as esquerdas”. Eram maioria? Sim, mas grupos de toda sorte, cor e ideologia estavam lá e sem vergonha alguma de se mostrarem. O que a gente aprende disso? Quando aperta no bolso e no futuro a coisa ganha uma tonalidade diferente, uma mistura de cores. Até a Força Sindical apareceu…

Na concentração foi mais fácil reparar isso, essa diversidade. E as pessoas pareciam não se incomodar. Era Levante da Juventude ao lado de cara pintada, pulando junto, e enquanto uns mandavam um “empurra o Temer que ele cai”, os outros soltavam o tenebroso “brasileiro com orgulho, com amor”. Foi uma cena engraçada.

Foto: Rafael Mendonça

E muita juventude. Diferente das passeatas contra o golpe. Adolescentes mesmo, jovens de 14 a 19 anos, milhares deles encarando talvez a sua primeira manifestação, cheios de adesivos e ideias, talvez alguns sonhos.

Perguntados sobre o que estavam fazendo alí, todos se posicionaram muito afirmativamente que estavam defendendo seus direitos. Perguntei isso para uns 10.

Por volta das 11 horas, a massa de gente que já ocupava uns quatro quarteirões chegou a Praça 7, onde se encontrou com as passeatas de sindicatos que haviam marcado suas concentrações em outros pontos do centro da cidade. Aí a coisa engrossou de vez. Com uns cinco carros de som e um número seguro de pelo menos 50 mil pessoas, apesar do carro da CUT falar em 150 mil. A caminhada seguia tranquila e animada até seu destino que seria na Assembleia Legislativa, onde um ato público aconteceria às 14h. Dirigentes sindicais se revezavam ao microfone nos carros de som. Muito incisivos nas críticas contra a reforma, mas muito e principalmente contra o governo Temer.

O Governo Temer é odiado pelo sindicatos, com toda a razão. Promove o desmanche e com sua agenda neoliberal radical tenta transformar direitos históricos em pudim. Quer moer a constituição cidadã de 1988 e transformar o país em algo que já era velho na década de 80. Os presidentes dos sindicatos estavam espumando. “Golpista” foi a coisa mais gentil pelas quais Temer foi chamado. Impossível discordar.

Uma avenida Amazonas tomada pelas pessoas que pacificamente criaram uma serpente pelo centro da cidade. Quando a frente da manifestação estava no Condomínio JK, prédio icônico da cidade, pessoas ainda saiam da Praça 7.

Foto: Rafael Mendonça

E ao chegar na Praça da Assembleia foram quase uma hora de gente chegando. Recado dado e bem dado pela população de Belo Horizonte.

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RIO DE JANEIRO, 15 DE MARÇO

Dormi de conchinha com a esperança

Por Jô Hallack

Isadora Freixo / Mídia NINJA

“Isso aqui tá diferente.”

Esse foi o primeiro pensamento que passou pela minha cabeça quando eu cheguei na Candelária, no centro do Rio. É que, depois de mais de um ano, você já sabe como é. Quem vai estar. São sempre as mesmas pessoas. Você já conhece todas as faixas, os estandartes, a dinâmica. Canta todas as musiquinhas e entoa todos os gritos de guerra.

E quando cheguei e vi tantas novas bandeiras, os sindicatos em massa, os jovens estudantes de escolas públicas e privadas, veio uma certeza: existe uma nova força de resistência. Não importa se isso vai dar certo ou errado. Talvez, em um mês, todo mundo volte pro sofazão da indiferença. Mas ontem, no Rio de Janeiro, tinha algo de diferente.

Eu garanto.

Eu sei do que eu estou falando.

Gente! Isso é praticamente o meu segundo emprego! (com o detalhe de que não tem salário e que também não tenho um primeiro).

Essas manifestações são um liquidificador emocional, onde raiva e alegrias se misturam. “Lembra da gente junto comemorando a eleição?”, que foda tá esse entardecer, “estou tendo um ataque de pânico, me dá a mão”, “olha que lindo os passarinhos do Campo de Santana”, os meninos do ensino médio cantando fora temer em remix freestyle de funk, “me encontra ali perto do feminismo”, “me encontra ali no MST”, “me encontra ali no pipoqueiro no cruzamento da biblioteca”. E assim, de batucada em batucada, de ala em ala, quando eu vi já estava na Central do Brasil.

Foi lindo.

 Foi lindo mas anoiteceu.

E aí vieram as bombas. Do nada.

E aí o feminismo, os sindicatos, os meninos do ensino médio, os velhos, os jovens, a batucada, os trabalhadores, os bambolês, o pipoqueiro, tudo isso se se transformou em uma multidão a um minuto de uma confusão bem grande.

Uns pedem calma. Outros passam mal.

Há quem taque pedras.

E o choque deixa claro que quem ficar, vai apanhar. 

Descendo o metrô, ela sussurra no meio ouvido: “amanhã vai ser maior”. Termino a noite dormindo de conchinha com a esperança. 

Quando eu acordo de manhã, ela já foi embora. 

Mas deixou o café passado e um bilhete com o telefone.

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Belo Horizonte, 15 de março

Luta de classe em frente ao Diamond Mall

Por José Antônio Bicalho

Foto: José Antônio Bicalho

 

Foto: José Antônio Bicalho

“Tá duro, hein meu irmão!”, disse eu para o soldado N., que tomava conta do cruzamento da avenida Olegário Maciel com rua Gonçalves Dias, em frente ao Diamond Mall, na última quarta-feira, 15, bem no momento da passeata gigante contra Temer e a reforma da Previdência. Suado, sob a canícula do meio dia e com um uniforme incompatível com o calor, o soldado N. desabafou: “Tomar no rabo pra essas madames e pra esses burgueses!”

A estória é a seguinte: a passeata serpenteava Olegário Maciel acima, vinda da praça da Estação. Já tinha passado pela praça Raul Soares e, naquele momento, se encaminhava para a praça da Assembleia, onde aconteceria a concentração final e o ato principal. Uma passeata alegre, vibrante e… lenta. Cento e cinquenta mil pessoas caminhando em meia pista leva um tempo bom para passar. Foram mais de duas horas de uma massa humana compacta interrompendo o tráfego.

Acontece que coube ao soldado N. a ingrata tarefa de fechar o cruzamento da Gonçalves Dias com Olegário Maciel. Essa passagem é utilizada pelos moradores das redondezas do Diamond, no bairro Lourdes, de classe média-alta. Se estiver fechada, a volta é grande, mas não enorme. Tem que descer até a Raul Soares e de lá retornar por um caminho alternativo por dentro do bairro.

Pois bem, acontece que uma boa parcela dos motoristas não recebeu bem a notícia de que o cruzamento estava fechado e que teriam que se virar para chegar em casa. Então, os pedidos para que o soldado N. tirasse um dos cones e abrisse uma passagem na multidão eram recorrentes. “Mas eu moro naquele quarteirão alí!” “Sinto muito, senhora”, “Sinto muito, senhor”, respondia o soldado N. de minuto em minuto.

Os motoristas saiam revoltados, muitos cantando os pneus de suas Mercedes, Audis, Toyotas e Land Rovers. Não vou dizer que eram só carrões. Enquanto estive ali, uns quarenta minutos (confesso que estava divertidíssimo e eu e meu amigo Gustavo morremos de rir) também pararam alguns Palios e Gols pedindo passagem, mas eram minoria absoluta. Conferidos de poder pelo porte e preço de seus carros, eram os motoristas dos automóveis chiques que despejavam sua indignação sobre o soldado N. Não chegaram a tanto, mas era como se dissessem: “quem é você para impedir que eu e meu carrão atravessemos a passeata?”

Acreditavam piamente que o agente público deveria estar ali para resguardar seus privilégios de classe. “Tomar no rabo!”, disse o guarda N. enxugando o suor do bigode.

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SÃO PAULO, 15 DE MARÇO

Lula fala para 200 mil na Paulista

Por Silvana Mascagna

Ricardo Stuckert / Instituto Lula

A manifestação estava marcada para as 16h na Paulista, mas às 15h30 a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) já começava a bloquear o trânsito na avenida mais importante da cidade. Carros de som, sindicalistas de várias categorias, aposentados, estudantes e até crianças chegaram bem antes disso. E, aos poucos, moradores de várias regiões da capital paulista, da Grande SP e de outras cidades do Estado foram tomando a via. Quando anunciaram a chegada da principal estrela do ato histórico em São Paulo, já eram 200 mil pessoas a ocupar os vários quarteirões da avenida.

 

Foto: Silvana Mascagna

Luiz Inácio Lula da Silva foi ovacionado assim que seu nome foi anunciado. Ele fez, como era de se esperar, um discurso duro. “Eu queria que vocês levassem pra casa uma certeza. Está ficando cada vez mais claro que o golpe dado neste país não foi apenas contra a Dilma, não foi apenas contra os partidos de esquerda. O golpe dado nesse país foi pra colocar um cidadão sem nenhuma legitimidade pra acabar com as conquistas da classe trabalhadora, ao longo de anos e anos, com a reforma trabalhista e com a reforma da Previdência.”

Em sua fala, Lula ecoou o discurso de quem estava nas ruas. “O que está por trás disso é que, embora o governo seja fraco, não tenha representatividade, ele conseguiu botar dentro do Congresso uma força política que quase nenhum presidente eleito conseguiu. E toda essa força está predestinada a tentar impor goela abaixo da sociedade brasileira uma reforma da aposentadoria que vai praticamente proibir que milhões de brasileiros consigam se aposentar, que vai fazer com que os trabalhadores rurais desse país, sobretudo os trabalhadores rurais do nordeste, passem a receber metade de um salário mínimo, sem ter noção do que esses trabalhadores representam na economia das pequenas cidades desse país”.

Ele lembrou ainda dos números da Previdência durante seu governo e da ex-presidente Dilma Rousseff. “O problema não é de dinheiro. Eu gostaria que o [Henrique] Meirelles e o [Michel] Temer estivessem me ouvindo, para eles perceberem que um dia nós resolvemos o problema da Previdência dizendo uma coisa: a política de geração de emprego e renda, de formalização das empresas e das relações de trabalho proporcionaram um crescimento inédito das receitas da Previdência e da Seguridade Social entre 2004 e 2014. Apenas entre 2008 e 2014 houve um aumento de 54,6% da receita da Seguridade Social, com a queda continuada do desemprego e da informalidade, pela primeira vez na história do Brasil. Em 2011, a receita da Previdência correspondia a 5,9% do PIB. Mesmo no período de 2012 a 2014, quando a economia começou a cair, a Previdência tinha superávit”.

Lula mandou um recado ao atual governo. “A Previdência tem problemas? Têm. Quer resolver? Sim. Ao invés de fazer uma reforma para retirar o direito, faça a economia voltar a crescer, gere emprego, aumente o salário”, disse o presidente.

E destacou que “o governo tem que governar para o povo mais pobre desse país. É preciso parar com essa bobagem de cortar, de vender nossas empresas (…) porque quem não sabe governar, só sabe vender (…) O Temer poderia ser presidente de uma associação comercial, pra vender o que é dele, não o que é do povo brasileiro.”

Lula ainda mencionou o fato de Temer pouco aparecer em em eventos públicos aqui e lá fora. “Esse país era respeitado no exterior e hoje temos um presidente que não tem coragem de ir nem a Bolívia.”

E finalizou: ”Somente quando a gente tiver um presidente legitimamente eleito, com credibilidade e confiança da sociedade, é que a gente vai conseguir fazer esse país voltar a crescer, gerar emprego e recuperar a confiança que esse povo já teve. Quem pensa que o povo está contente, esse povo só vai parar quando tiverem um governo democraticamente eleito.”

Foto: Ricardo Stuckert/ Instituto Lula

Depois da fala de Lula, o vereador Eduardo Suplicy discursou. E o ato, que contou com discursos de líderes sindicais de várias categorias e de movimentos sociais, foi encerrado.