Um olhar estrangeiro sobre Tom Zé

O americano Christopher Dunn, estudioso do Tropicalismo, prepara 'biografia' do ícone da contracultura brasileira


Por Clarissa Carvalhaes

Correspondente de O Beltrano em Nova York

Arquivo pessoal Christopher Dunn

Era junho de 1992 quando Christopher Dunn conversou pela primeira vez com Tom Zé. Naquele encontro, em um prédio da rua Dr. Homem de Melo, em Perdizes, região nobre de São Paulo, o jovem pesquisador norte-americano começaria a decifrar o Tropicalismo e tudo mais que surgiu a partir do movimento.

Passados 26 anos, Dunn é hoje uma das referências no assunto nos Estados Unidos.

Professor de Estudos Literários e Culturais Brasileiros da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, Louisiana, já publicou dois livros sobre a Tropicália: “Contracultura: Artes Alternativas e Transformação Social no Brasil Autoritário” e “Jardim da Brutalidade: Tropicália e Emergência da Contracultura Brasileira”. Agora, faz planos para lançar até 2020 o que ele chama de “um estudo aprofundado” sobre Tom Zé. “Porque, particularmente, não gosto do termo biografia”, explica o americano de 52 anos.

Ser extraordinário

“Na primeira vez que o vi, uma das coisas que me impressionou foi a maneira como fui recebido. Quando bati na porta, ele abriu, disse ‘querido!’ e me abraçou forte. Ele tinha me pedido que levasse um disco dele próprio, um CD que havia sido lançado aqui (nos Estados Unidos) e que ele ainda não tinha visto. Quando entreguei, foi engraçado porque ele me pediu para fazer uma dedicatória no álbum, porque era um presente meu. Mas, o melhor dessa história toda é ter atestado, em um curto espaço de tempo, que Tom Zé é exatamente assim: um homem acolhedor, carinhoso, que claramente tem prazer em contar histórias, conversar. E eu estou certo de que sua genuinidade é extraordinária, porque Tom é um homem, um artista, extraordinário”.

Arquivo pessoal Christopher Dunn

Uma afirmativa que Dunn não faz levianamente. Afinal, aos 81 anos, Tom Zé produz trabalhos de puro vigor artístico, compõe coisas geniais, o que é impressionante para artistas na sua idade. “Definitivamente, ele não faz canções em vão ou de qualidade superficial. O último disco (“Sem você não A”) é excelente. São canções que tanto eu quanto meus filhos (de 5, 12 e 17 anos) adoramos. Eles estão até aprendendo a falar português por causa do disco”, brinca.

Mesmo após quase três décadas ouvindo e pesquisando Tom Zé, Dunn ainda se impressiona com a capacidade autofágica que o músico imprime em sua obra. “Ele reinventa coisas que ele mesmo fez no passado. E faz com que elas fiquem melhores, ou pelo menos bastante diferentes de como eram, tornando-as novas aos nossos ouvidos”.

Entre os tropicalistas

Nascido em Nova York e criado em Chicago, Dunn confessa que tem resistência a narrativas de americanos que chegam para salvar o mundo, “mas não tenho dúvida de que David Byrne usou o poder dele para fazer algo muito bom”, referindo-se ao lançamento de Tom Zé nos Estados Unidos, patrocinado pelo produtor e ex-líder da banda Talking Heads.

Quando foi procurado por Byrne, Tom Zé estava em completo ostracismo, fazendo planos para voltar para Irará (BA) e trabalhar no posto de gasolina de um primo. “Claro que ele (Byrne) se beneficiou da parceria, mas, na minha opinião, o mais importante foi ter permitido que Tom fosse relançado no Brasil. De repente ele começou a fazer shows, voltou a viajar pelo país e ganhou o público jovem outra vez. Ele passou a ser conhecido pelo mundo e foi redescoberto pelos brasileiros”, destaca Dunn, que já esteve no Brasil algumas vezes, a primeira delas aos 20 anos de idade quando dava início à pesquisa sobre o Tropicalismo.

“E há até quem diga que Tom Zé não é um tropicalista. Eu discordo disso. Se hoje estamos habituados a pensar em Tom Zé totalmente experimentalista, devemos lembrar que uma boa parte das músicas dos seus primeiros discos foi criada para tocar nas rádios, como “Jeitinho dela”, por exemplo. Ao mesmo tempo, Gil e Caetano também fizeram canções experimentais. É por isso que o Tropicalismo é tão fantástico, porque ele comporta o pop e o experimental”.

Tom Zé e Tortoise –
Arquivo pessoal Christopher Dunn

Apesar disso, Dunn concorda que em determinados momentos as escolhas de criação artística de Tom desentoaram daquelas dos demais tropicalistas. “As diferenças entre eles, na verdade, é que, Caetano e Gil fizeram de sua obra um lugar para a alegria, para uma experiência essencialmente positiva e necessária. Já Tom Zé, que nunca morou no Rio, imprime um olhar cético e crítico em relação a experiência da migração. Ele desconstrói a ideologia, mantém sua conexão com o sertanejo e escancara a violência social que encontrou em São Paulo. Se, de um lado, Caetano e Gil frequentavam a praia de Ipanema, Tom Zé nesse sentido é um peixe fora d’agua”.

Homem de família

O espírito leve e brincalhão do artista Tom Zé é inspirado, segundo ele próprio, no estilo de performance do chamado “homem da mala” (artista de rua itinerante do Nordeste, que abre a mala com vários objetos e faz shows improvisados).

Mas se nos acostumamos a enxergá-lo como um artista vanguardista é, no mínimo, curioso descobrir que este homem tão a frente do seu tempo segue uma rotina de legítimo vovô saudável: há anos parou de beber e fumar, preocupa-se com a saúde, faz terapias, come pouco e evita comidas pesadas – está sempre às voltas com frutas, legumes e arroz integral.

Tom Zé e Tortoise –
Arquivo pessoal Christopher Dunn

“E é nesse contexto cotidiano que está a Neusa (Martins), esposa de Tom há quase 50 anos, o que é impressionante no mundo artístico. E é muito bonito o relacionamento deles, é muito especial e muito próximo”, comenta Dunn. Desde quando foi “relançado” por Byrne, no início dos anos 1990, Neusa assumiu o posto de produtora do Tom Zé.

“E ela tem um dom e uma memória fantásticos. Tanto ele quanto ela são devoradores de literatura, música, ideias, história, filosofia… E é muito engraçado às vezes porque, quando você faz uma pergunta pra ele e ele se esquece de, por exemplo, alguma referência, é ela quem está sempre ali ao lado para lembrá-lo. Eles têm um casamento muito especial, de muito carinho, respeito, sintonia. E todo esse mundo que o cerca, seu cotidiano de amor, leituras e busca pela harmonia, tudo isso é que o municia para produzir e criar. A inspiração de Tom Zé vem da vida que ele procura, encontra e compartilha”, diz Dunn.