A urgência de Eduardo Escorel

Uma conversa com Eduardo Escorel e Nuno Leal Maia sobre o filme 'Ato de Violência', sobre o Brasil, cinema e muito mais


Por Lucas Simões

Nuno Leal Maia e Eduardo Escorel – Foto: Val Wander Fotografia

Não é por acaso que o cineasta Eduardo Escorel conserva pausas de quase dez segundos entre suas falas. Aos 72 anos, o homem que assina parcerias com Glauber Rocha, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles valoriza a “característica talvez mais estranha para os dias de hoje (a reflexão)”, como ele elabora com o olhar direcionado para frente.

“Quando comecei, na década de 1960, não havia uma separação tão rígida entre fazer cinema e refletir sobre cinema. Mas, a impressão é que perdeu-se essa tradição. Um pouco por isso, o que vejo é que o cinema brasileiro documental não tem acompanhado a realidade catastrófica que passamos. Pararam de pensar perante a violência diária que vivemos? De onde vem a inércia que não permite um minuto de reflexão e uma ação em seguida?”, ele questiona com uma indignação firme, ainda que a paciência permaneça estampada em seu semblante durante toda a entrevista concedida a O Beltrano, no Palácio das Artes.

Em Belo Horizonte, na última semana, como homenageado do projeto Curta Circuito, no Cine Humberto Mauro, a missão do paulistano Eduardo Escorel foi rever seu impactante longa “Ato de Violência” (1980). Um filme pouco repercutido até hoje, ainda que tenha Nuno Leal Maia como protagonista e traga debates fortes sobre o precário sistema carcerário, impunidade, violência familiar e contra a mulher. O roteiro é inspirado em Chico Picadinho, assassino responsável por esquartejar duas mulheres em um intervalo de uma década (1966 e 1976), e que hoje, aos 80 anos, cumpre pena em um hospital psiquiátrico do interior paulista.

Relembrar “Ato de Violência” como um fracasso de bilheteria e a ausência de debates públicos sobre desigualdade social e de gênero, ainda faz Escorel refletir acerca do que ele chama de “boicote ao cinema de profundidade” no Brasil. “Na época em que gravamos, o Nuno já era um ator conhecido, os presos assediavam ele nas três penitenciárias que filmamos, tinha uma pré-expectativa. Mas será que o tema não era tão interessante?”, provoca Escorel. Algo que o próprio Nuno também confirma. “Além de uma história brilhante que poderia ter jogado luz em um debate importante, achei que por já ser conhecido poderia fazer o filme decolar”, confessa o ator.

“Mas ‘Ato de Violência’ não foi capaz de criar um debate com chances de se enraizar no dia a dia das pessoas porque as questões postas ali, o sistema carcerário, a violência familiar e contra a mulher, não se encaixava no que podemos chamar de urgências de uma sociedade nos anos 1980, infelizmente. Não tão distante do que vivemos hoje, apesar de avanços claros”, opina o cineasta.

Ainda que os silêncios pacientes persistam em suas reflexões, Eduardo Escorel aponta sem titubear a necessidade de reparar com agilidade o que ele chama de urgências da sociedade brasileira. Principalmente quando as histórias são contadas por câmeras de cinema documental. Para quem tem na bagagem produções de documentários como “Vocação do Poder” (2005) e o recente “No Intenso Agora” (2017), ele enxerga uma lentidão do cinema documental em pisar em terrenos espinhosos como o impeachment de Dilma Rousseff, a nuvem antidemocrática do governo Michel Temer, os aprofundamentos da desigualdade e os caminhos retrógrados para o futuro.

Eduardo Escorel – Foto: Val Wander Fotografia

A única película com caráter de documentário a abordar o cenário político contemporâneo até agora foi “O Processo”, idealizado por Maria Augusta Ramos e apresentado mês passado no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim — dois anos após o impeachment. Além deste, as cineastas Anna Muylaert e Petra Costa prometem, para este ano, dois documentários com foco nas últimas semanas de Dilma Rousseff como presidenta.

“É difícil opinar porque há aí uns quatro ou cinco filmes lidando com a questão do impeachment, e que estão para sair em breve. Mas, já se passaram dois anos, ninguém está pensando mais nisso — o que quero dizer: para as pessoas, passou. Esses filmes tinham que ter saído antes. Um certo tipo de cinema, o cinema documental especialmente, precisa ser feito com mais agilidade quando ele tem a intenção de responder a situações como 2016. Essa resposta não aconteceu no Brasil. Não, pelo menos através do cinema”, diz Escorel.

Uma resposta que o próprio cineasta vem tentando dar, mesmo que parcialmente. Desde o ano passado, ele trabalha para desenvolver um documentário a ser gravado no segundo semestre deste ano, durante a campanha presidencial que, “caso ocorra de fato”, como o próprio Escorel grifa com ressalva, tende a injetar mais pólvora no barril político do país. Apesar disso, sua intenção não é fazer um filme sobre as eleições.

“Não é sobre a campanha presidencial. A campanha seria o pano de fundo do projeto para um documentário cujo o tema seria a incerteza. A incerteza em vários campos e setores, incluindo o político, o pessoal, o traumático. É um trabalho denso, mas que esbarra na burocratização que o cinema vive ainda hoje. Uma burocratização que penaliza filmes que provocam grande inquietação e valoriza os que ficam na superfície, sem profundidade”, diz o cineasta.

Para o próprio Escorel, talvez o exemplo mais cristalino dessa burocratização aliada à superficialidade da reflexão seja o badalado filme “Polícia Federal: A Lei é Para Todos”, lançado em agosto do ano passado, seis meses antes da novelesca condenação do ex-presidente Lula por Sérgio Moro. Escorel lembra que na pré-estreia do filme, o juiz de Curitiba foi fotografado aos risos após apreciar a imitação do sotaque de Lula interpretado pelo ator Ary Fontoura. Um símbolo, no mínimo, emblemático.

Eduardo Escorel – Foto: Val Wander Fotografia

“Existe uma diferença entre fazer comédia e banalizar temas sérios. Comédia pode ser contundente também. Mas, esses temas, filmes sobre a Polícia Federal, Lava Jato, isso está sendo feito sem qualquer rigor ou vitalidade — e foi lançado de maneira bem veloz, diferente daqueles que precisavam dessa agilidade. É uma chapa branca política, apenas. E com forte apoio empresarial. Neste caso, o riso e a pipoca figuram como preenchimento de um ego. Não é cinema”, crava o cineasta.

Apesar de não prometer um registro documental durante as eleições deste ano, Eduardo Escorel colhe neste mês os frutos de outra película política, o documentário “Imagens do Estado Novo (1937-45)”. Com estreia no próximo dia 15 de março em São Paulo e no Rio de Janeiro, o filme tem quatro horas de duração e faz parte de uma espécie de coletânea cinematográfica, que pretende percorrer desde Getúlio Vargas, a partir de 1930, até o fim da ditadura civil-militar, em 1985. Muito além de captar o passado através de ricas e inéditas imagens de acervo dos períodos históricos, o projeto também pretende traçar paralelos com o presente o futuro político do país. Como aulas de história as quais muitos brasileiros foram e ainda são privados.

“É deliberadamente um filme de caráter histórico, feito com muito material de arquivo, e é um esforço de compreender o passado. É um tipo de cinema que me interessa muito. Mas que não deve, a meu ver, excluir o compromisso de contextos, de tratar do presente e das perspectivas que se abrem para o futuro. Não são questões excludentes. Até porque, o Brasil é repleto de lacunas propositais no caminho de sua história, lacunas inseridas e mantidas por quem detém diretamente e simbolicamente o poder. O cinema sobre o qual estou falando olha para essas lacunas, essas falhas e engôdos e os questiona, nunca simplesmente aceita”, arremata Escorel, com o ânimo de quem não desistiu de filmar, dirigir e montar ideias para provocar as iminências do país.

 Na próxima segunda, dia 19 de março, o Curta Circuito exibirá o clássico “A lei do cão”, que permaneceu esquecido por cinco décadas e é o terceiro trabalho como cineasta do também ator Jece Valadão, falecido em 2006.