Viver o cárcere pelo olhar LGBT

Um relato contundente de como o sistema prisional trata grupos vulneráveis


Por Aline Ferreira e Luís Gustavo dos Santos

Vespasiano_MG, 30 de Marco de 2017A Estrela – Ala LGBT Imagem: A Estrela

O governo de Minas Gerais foi o primeiro no Brasil a criar alas LGBT dentro de suas unidades prisionais. A pioneira foi inaugurada em 2009, na Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas. Além de garantir proteção à integridade física dos apenados, os espaços devem, de acordo com as regras oficiais, respeitar as identidades de gênero – o que inclui permitir cuidados com a aparência, como cabelos longos e unhas pintadas.

A iniciativa, tardia, se deu pela constatação de que, no sistema prisional, homossexuais, bissexuais e travestis compõem o grupo mais vulnerável, submetidos recorrentemente a torturas, estupros e agressões. Mas o que as pessoas que cumprem pena em alas LGBT pensam sobre isso?

Vespasiano_MG, 30 de Marco de 2017
A Estrela – Ala LGBT
Imagem: A Estrela

Algumas respostas estão na revista ‘A Estrela’, produzida em uma dessas alas LGBT, no Presídio de Vespasiano, que chegou a sua terceira edição. A revista, inteiramente produzida por pessoas privadas de liberdade, é parte do Projeto VOZ, conjunto de iniciativas na área de comunicação realizadas em unidades prisionais.

Luís Gustavo dos Santos foi um dos participantes que mais se entusiasmou com as aulas de jornalismo e fotografia. No texto a seguir, ele narra a experiência de quem viveu o cárcere em unidades prisionais que não toleram a homossexualidade.

Atuar para sobreviver

Por Luís Gustavo dos Santos

Era 17 de dezembro do ano 2000. Precisando ajudar a minha família, caí na tentação e fui assaltar o caixa de uma metalúrgica com a segunda parcela do 13º salário dos funcionários. Eu tinha apenas 18 anos e morava em São Paulo. Na fuga, tivemos que abandonar o veículo e uma das vítimas, de dentro da viatura, me reconheceu. Fui preso.

Vespasiano_MG, 29 de Marco de 2017
A Estrela – Ala LGBT
Imagem: A Estrela

Quando entrei naquele lugar escuro, vi no fundo da cela, ao lado do banheiro, um vão. Eles chamavam o espaço de “veaduto”. E dois homossexuais dormiam lá. Percebi que, depois do jantar, um deles entrou no banheiro e os presos fizeram uma fila. Um após o outro entrava para se saciar. Um senhor mais velho, que já estava preso há 19 anos, me explicou que os homossexuais tinham que servir a todos que quisessem. Sem camisinha.

Também eram os únicos que não tinham copos e precisavam beber água em uma garrafa descartável cortada, porque os outros presos tinham nojo deles. Eu já era homossexual, mas não tinha trejeitos. Me lembrei de uma frase de impacto que alguém já tinha me dito: “Na guerra, nunca entre em pânico”. Então, tracei um plano de sobrevivência e comecei a negar minha sexualidade. Naquele lugar, onde as celas tinham formato de caixão, aprendi a ser ator. Eu via mortes o tempo todo, corpos sendo levados em bacias para o IML.

Sabia que era preciso cautela para não ser o próximo. Uma vez, um rapaz da minha idade, até bem parecido comigo, chegou lá e disse que não sabia por que estava preso. Ele cantava lindamente. Músicas clássicas em inglês. No dia seguinte, chegou a informação de que ele era estuprador. Aí ele foi assassinado, massacrado com a tampa de concreto do esgoto durante o banho de sol. Depois, o verdadeiro estuprador foi encontrado. Tinham confundido o rapaz por causa de um retrato falado.

Vespasiano_MG, 30 de Marco de 2017A Estrela – Ala LGBT Imagem: A Estrela

Essa memória ficou gravada em mim, não me esqueço nunca do canto daquele rapaz. Depois de um tempo, fui convidado para entrar em uma facção. Aceitei e recebi o Estatuto. O item 6 dizia que a facção não admitia homossexuais e que a pena para a infração era a morte. Já era tarde demais. Por ali fiquei alguns meses até conseguir fugir.

Acabei em Minas Gerais e, foragido, fui preso de novo depois de alguns anos. Como antes, a homossexualidade precisava ser escondida. Mas tinha uma coisa pior: a “ciranda da morte”. A cada dia, um preso de uma cela era sorteado para morrer. Os candidatos estavam entre aqueles que não eram considerados “bandidos”, ou seja, não cumpriam os códigos de conduta do crime.

Após anos de carnificina, em 2006 essa cadeia foi fechada. Mas até isso acontecer, tive que criar um personagem para sobreviver. Por isso, criar alas homossexuais em presídios é tão importante. É pela sobrevivência.