A morte dos super-heróis


por Fabiano Azevedo

Quando a Time Magazine publicou um listão (quem nunca?) com os 100 mais importantes romances de língua inglesa desde 1923, Watchmen foi a única história em quadrinhos a figurar entre as obras escolhidas (embora achemos que ao menos mais uma ou duas pudessem constar na lista – Love & Rockets, por exemplo, mas isso é outra história).

Escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons – ambos britânicos – Watchmen foi lançada pela DC Comics a partir de junho de 1986, em doze capítulos mensais, na forma de gibis de banca.

Quais teriam sido, entretanto, os motivos que levariam a Time a inserir Watchmen – e somente esta HQ – em sua lista?

As histórias em quadrinhos nunca mais foram as mesmas. Os super-herois nunca mais foram os mesmos. E os leitores, sobretudo eles, nunca mais seriam os mesmos depois do lançamento de Watchmen.

Páginas 3 e 26 de "Terrível Simetria", de Watchmen. A diagramação das páginas de todo esse capítulo é espelhada: a primeira página é igual à última, a segunda igual à penúltima, e assim por diante. Mais uma dentre as tantas sutilezas do roteiro de Alan Moore.

Junto com O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, que saiu com algumas semanas de diferença, Watchmen inaugura o conceito das HQs de super-heróis cujos personagens tenham dramaticidade e relevo psicológico. Os dilemas, os anseios e as vicissitudes que carregamos em nossas existências, no aqui e no agora do mundo de verdade, são enfim levadas para o até então limitado e monocromático ambiente dos quadrinhos de super-heróis.

Sobre o relevo e a abertura que Watchmen deu a novas possibilidades formais no gênero, diz Carlos Patati, roteirista e pesquisador de quadrinhos: “A gente tem que pensar as coisas no contexto do momento em que [Watchmen] foi feito: naquela época, nas HQs de superseres, as coisas nunca chegavam a se desdobrar com consequência e radicalidade. Embora ameaçassem, ensaiassem, não realizavam suas ousadias até o fim. Watchmen trouxe a complexidade humana pro mundo dos superseres.”

Moore, àquela altura já reconhecido no mercado norteamericano por seu inovador trabalho em “Monstro do Pântano”, ganhou, em meados de 1985, o aval da DC Comics para reestruturar os personagens da extinta Charlton Comics, recém-adquiridos pela editora. O artista pensa, então, em criar uma obra definitiva sobre os super-heróis: mais que um tributo, algo que pudesse, ao mesmo tempo, sintetizar e fazer uma releitura crítica acerca do gênero. O editor da DC, Dick Giordano, o aconselha a preservar os personagens da Charlton e criar novos heróis, ainda que inspirados naqueles da velha editora. Ao contrário do que se possa imaginar, a recomendação não incomodou Moore. “Eventualmente, percebi que se eu escrevesse os personagens substitutos bem o bastante, para que então eles pudessem ser de alguma forma familiares, certos aspectos deles poderiam trazer ao leitor uma espécie de ressonância ou familiaridade de um super-herói genérico, então podia dar certo.”

Alan Moore em uma convenção de quadrinhos em 2006

A história se passa nos Estados Unidos, no auge da Guerra Fria, em uma realidade similar à nossa – salvo pelo fato de que há justiceiros mascarados (os vigilantes, ou ‘watchmen’) nas ruas, à procura de malfeitores e tentando garantir o bem-estar dos cidadãos. Já há, aí, uma discussão acerca do conceito de “super-heróis” enraizado na cultura americana e, de resto, no imaginário dos consumidores de cultura pop ao redor do mundo. Os justiceiros (que jamais são chamados de “super-heróis”) carregam vaidades e falhas, se emocionam e não estão de acordo nem mesmo quanto ao conceito de justiça que alardeiam. “Superpoderes pareceram sempre tornar superseres bidimensionais… Moore investe em mostrar como as coisas aconteceriam se as pessoas fossem, no mundo dos supeseres, sutis como somos de fato!”, diz Carlos Patati.

Há, também, a presença de um – e apenas um – “super-homem”, no sentido nietzcheano da palavra, e ele é decisivo para o desenrolar da trama. O Dr. Manhattan, antes Jon Osterman, é um físico que, ao sofrer um acidente nuclear, torna-se capaz de controlar as estruturas atômicas, transmutar a matéria e viajar pelo espaço e pelo tempo. Diferentemente da banalidade intrínseca aos “superpoderes” constantes nas histórias tradicionais, sua existência faz o mundo rever as formas de utilização de energia, e transforma os EUA em uma potência ainda maior do que realmente é. Além disso, o Dr. Manhattan acaba por inibir os justiceiros – afinal, para que se fantasiar e ir atrás de bandidos, se um simples estalar de dedos de um semideus pode resolver tudo?

Os outros protagonistas da história são Ozymandias, o homem mais inteligente do mundo, que, ao se aposentar, passa a explorar comercialmente o fato de um dia ter sido um vigilante, o Comediante, um sujeito machista, tosco e cínico, mas que assume o papel do bobo da corte, mostrando constantemente à plateia que “o rei está nu”, Rorschach, um anti-heroi de hábitos e conceitos conservadores e nada humanistas, Nite Owl, um cerebral homem comum que usa a própria herança para aparelhar tecnicamente a si próprio e à sua “fortaleza”, e Silk Spectre, a garota que, ainda que contra a própria vontade, herdou a fantasia e a função de vigilante da mãe quando esta se aposentara. Além da latente humanidade desses personagens, todos eles, cada um a seu modo, assumem certas características comuns a um ou a mais de um super-herói tradicional – são, por assim dizer, estereótipos. E são, também, arquétipos, segundo a visão clássica junguiana – e não é coincidência, já que Moore é um assumido seguidor do psicanalista suíço. Rafael Senra, no artigo “Motivação e Organização em Watchmen”, situa cada um dos personagens dentro de uma função psíquica descrita por Jung – Pensamento, Sentimento, Sensação, Intuição, Anima e Animus. 

A arte de Dave Gibbons não tem nada de essencialmente novo ou surpreendente – ao contrário, é correta e conservadora, dentro dos limites estéticos impostos pelo universo dos super-heróis. Mas é amparada pela intrincada composição de página de Moore, formada por grades simétricas que ditam, de forma tão precisa quanto um relógio suíço, o ritmo e a cadência da história. A propósito, nunca a passagem do tempo foi tão importante em uma história em quadrinhos, e não somente por causa das habilidades espaço-temporais do Dr. Manhattan. Os flashbacks não são gratuitos, como, de resto, nada é na obra. A trama passeia entre o passado, o presente e a fantasia. Uma história em quadrinhos completa (a tétrica “Contos do Cargueiro Negro) é lida por um garoto, na íntegra, dentro da própria história. Há, ainda, os “anexos” ao fim de cada capítulo – documentos, trechos de livros, matérias de jornal, propagandas – que servem para nortear o leitor acerca das origens e do destino de cada personagem. O todo transforma Watchmen em uma história densa, repleta de citações e informações escondidas nas entrelinhas, e que provavelmente você precisa ler duas ou três vezes para assimilar. O que não chega a ser novidade na complexa obra do britânico Alan Moore – que, por sinal, acaba de anunciar aposentadoria.

Moore tem 63 anos. É o que se poderia chamar de uma figura excêntrica, tanto visualmente, com sua eterna e druídica barba, quanto conceitualmente – certa vez, declarou nunca (mas nunca mesmo) ter criado absolutamente nada que não fosse sob o efeito de drogas, especialmente o haxixe. Além disso, é iniciado nas artes ocultas da magia, cultua deusas e deuses do mundo antigo e praticamente nunca se afasta dos arredores de sua terra natal, em Northampton, na Inglaterra. Evidentemente não foi seu singular visual, ou tampouco suas declarações bicho grilo, que o tornaram conhecido. Alan Moore se transformou em um dos mais respeitados autores modernos de histórias em quadrinhos por escrever obras como V de Vingança, Monstro do Pântano, Liga Extraordinária, Lost Girls e Do Inferno, dentre outras. E não só: suas incursões na literatura propriamente dita também têm sido muito bem recebidas por público e crítica, em livros como A Voz do Fogo e Jerusalem.

Após o lançamento de Watchmen e seu retumbante sucesso, Moore brigou com a DC e saiu da editora, para onde nunca mais retornaria. Em 1999, fundou o próprio selo – “America’s Best Comics”, onde criou mais algumas séries de super-heróis, com destaque para Liga Extraordinária e Promethea. A própria Best Comics se tornaria, posteriormente, um braço da DC, em mais um emblemático sinal de autofagia da indústria, mas Alan Moore resistiria em ceder seus personagens – não conseguiu, no entanto, impedir que, em 2003, A Liga Extraordinária se tornasse um blockbuster com Sean Connery no papel principal.

Ao longo desse tempo, ele criticou de forma severa e repetidas vezes não somente a DC e a Marvel, mas a indústria dos quadrinhos de super-heróis de um modo geral, tanto pela relações profissionais desumanas entre diretores e artistas, quanto pela falta de criatividade e de inovação das histórias.

“No passado, quando escrevi Watchmen, eu ainda acreditava nas víboras bastardas [da indústria]. Tinha uma idéia diferente sobre os quadrinhos de super-herói americanos e o que eles significavam. Recentemente cheguei à conclusão de que que a maior parte dos quadrinhos de super-herói americanos, e isto é provavelmente uma ampla generalização, são todos como a política externa americana. (…) Eles preferem não se envolver em uma luta se não têm poder de fogo superior, ou se não são invulneráveis porque vieram do planeta Kripton quando bebês. Eu realmente acho que é esta coisa nauseante que está por trás do mito do super-herói americano.”

Quando o longa-metragem Watchmen, com direção de Zack Snider, foi lançado, em 2009, Moore, que já não tinha mais direitos sobre a obra e recusou até mesmo que seu nome aparecesse nos créditos, disparou de novo: “A principal razão do porquê dos quadrinhos não funcionarem como filmes é que todo mundo que realmente controla a indústria de filmes é contador. Estas pessoas podem ser boas em manter livros e deles fazer balanços, mas em qualquer outra área são estúpidos e incompetentes e não têm qualquer talento.”

Para além da discussão criada pelo próprio Moore quanto a essas questões, fato é que, trinta anos depois, Watchmen permanece à frente de toda e qualquer obra do gênero, quiçá dos quadrinhos como um todo. Ainda que outros trabalhos posteriormente tenham tentado, como consequência da simples existência de Watchmen, rever criticamente a mitologia dos super-heróis, nada conseguiu superar, nem formal e nem conceitualmente, a obra-prima de Alan Moore e Dave Gibbons, que ultrapassou os limites dos quadrinhos, instalando-se convenientemente entre os grandes romances do século XX.