A busca de um novo local para chamar lar

Projeto de lei inclui mulheres vítimas de violência em programa municipal de habitação para aquelas que correm risco de morte na própria casa


Por Petra Fantini

Publicado em 25/07/2018

foto: Mídia Ninja

 

Após sofrer violência do próprio cônjuge, o lar pode se tornar território inimigo e muitas mulheres ficam sem ter para onde ir. Foi pensando nisso que as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella, do mandato coletivo psolista da Gabinetona, elaboraram o Projeto de Lei 533/2018 (https://goo.gl/4ihbFm) que propõe incluir mulheres vítimas de violência no Programa Municipal de Assentamento (Proas) de Belo Horizonte.

O Projeto, apresentado à Câmara Municipal em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, alteraria a Lei n° 7.597/1998, que atualmente atende famílias removidas de suas casas por causa de obras públicas, vítimas de calamidade, que residam em habitação precária situada em área de risco e as que habitam em ruas e viadutos. Segundo o texto do Projeto de Lei, a mesma situação emergencial é vivida por mulheres submetidas a contextos de grave violência familiar e social.

“A saída ou a retirada das mulheres do contexto violento é medida central para a preservação da vida dessas mulheres e de seus filhos/as, isto é, é fundamental para a vida da própria família”, argumenta o projeto. O objetivo do PL, portanto, é garantir que as mulheres em situação de violência que foram atendidas e encaminhadas por equipamentos públicos da cidade possam ser incluídas no Proas e, assim, ter o direito à moradia permanente assegurado.

Com 40 ocorrências de violência contra as mulheres por dia na capital, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Minas Gerais, a demanda é alta. Em 2015, o Ligue 180 divulgou que a Central de Atendimento à Mulher realizou 749.024 atendimentos naquele ano, isto é, 1 a cada 42 segundos. Por isso, o serviço público de abrigamento prestado pela Casa Sempre Viva e, mais informalmente, pela Casa de Referência da Mulher Tina Martins, não são o suficiente.

Além disso, estes serviços são temporários, oferecendo amparo por em média três meses. Depois deste período, a falta de moradia volta a ser um problema para essas mulheres. Outro complicador é o fato de que o Sempre Viva possui regras rígidas, separando mães dos filhos maiores de 16 anos de idade e mantendo essa mulher completamente isolada e impossibilitando emprego ou estudos.

Marlise Matos, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero (CIFG) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), destaca a qualidade do projeto e sua urgência em um país com indicadores absurdos de violência de gênero. “Estamos falando de um volume de violência que é muito intenso, muito frequente, muito rotineiro, e que por isso até é muito banalizado. A gente tem uma sociedade que tolera e banaliza essas formas de violência que são muito absurdas”, ressalta a psicóloga.

“Nós temos uma legislação que avançou muito, mas ela não tem sido suficiente. Esse é o ponto”, diz Marlise. A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006, prevê instrumentos que, caso implantadas em sua totalidade, poderiam proteger essas mulheres para que elas possam permanecer nos seus lares, retirando o agressor do domicílio. Entretanto, 12 anos depois esses dispositivos não estão concretos. Da mesma forma, as medidas protetivas são emitidas com lentidão e seu acompanhamento e cumprimento ainda são muito precários.

A pesquisadora avalia que o projeto estimularia o poder público a assumir um compromisso com essas mulheres ao invés de negligenciá-las, já que a demanda é muito alta e incompatível com o número de leitos disponíveis – “infelizmente, elas talvez até sejam em maior número do que os homens e mulheres que estão em risco por uma moradia precária”, avalia Marlise. “E o abrigamento precisa ser uma medida muito excepcional. Porque a pessoa tem sua convivência comunitária, os seus vizinhos, os filhos estão na escola. É verdadeiramente um desastre na vida da mulher, ela já está sofrendo a violência e precisa sair com seus filhos com risco de morrer”, explica.

Reprodução Facebook/ Casa de Referência das Mulheres Tina Martins

Casa Tina Martins

Em 8 de março de 2016, o Movimento de Mulheres Olga Benário fez a ocupação do edifício onde ficava a antiga Faculdade de Engenharia da UFMG, na rua Guaicurus. As mulheres ativistas reivindicavam mais creches, delegacias especializadas em mulheres que funcionem 24 horas e casas-abrigo para mulheres vítimas de violência.

Após o pedido de reintegração de posse e a negociação com a Superintendência de Patrimônio da União e o Governo Estadual, o movimento conseguiu transferir a ocupação. Denominada Casa de Referência da Mulher Tina Martins – homenagem à militante anarquista que, durante a greve operária de 1917 em Porto Alegre, jogou uma bomba escondida dentro de um buquê de flores contra as tropas militares, obrigando-as a recuar –, o centro está localizada em uma casa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) na rua Paraíba, 641, bairro Santa Efigênia.

“A gente não tinha necessariamente a pretensão de se tornar uma casa, mas quando a ocupação surgiu e as mulheres foram chegando e sendo abrigadas, a gente percebeu que era uma pauta que não tinha como não mais tocá-la”, conta Indira Xavier, uma das cerca de 20 coordenadoras voluntárias da Casa. Hoje o local acolhe mulheres vítimas de violências diversas, não apenas doméstica como também vítimas de LGBTfobia, mulheres em situação de rua, abandono, que são atendidas por advogadas, psicólogas, assistentes sociais e uma série de outros serviços voltados ao fortalecimento das mulheres.

O local não serve apenas para moradia, mas principalmente procura oferecer um espaço seguro onde mulheres possam participar de oficinas e cursos, discutir violências no trabalho, maternidade. Um caso especial, se lembra Indira, exemplifica como um casamento pode ser violento sem agressão física. “É a violência da solidão. É entender que você viveu a vida inteira em função de outras pessoas e que não foi para compartilhar uma vida, um relacionamento. E quando essas pessoas saíram, você se reduziu a que? A empregada doméstica. Isso é uma violência também, reduzir o trabalho de 25 anos a nada”, diz

“Nós temos mulheres morando aqui por necessidade, mas nosso maior objetivo é que esse seja um espaço de fomento, de discussão sobre essa pauta da violência e sobre outras pautas que também dizem respeito às mulheres”, define Indira. Ao longo de dois anos, as voluntárias contabilizaram o atendimento a mais de 280 mulheres, contando com a passagem de mais de 10 mil pessoas em eventos como o brechó que ocorre mensalmente. Feito de forma autônoma e autogestionada, o trabalho da Casa conta com o apoio do governo estadual apenas no pagamento de contas de água, luz, impostos territoriais e pequenos reparos.

Até mesmo os quatro porteiros que se revezavam na vigia da entrada foram retirados pela Fapemig. A Casa firmou um Termo de Cessão do espaço que ocupam com duração de dois anos, tendo sido encerrado, portanto, em junho deste ano. Questionada, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) informou que encaminhou à Fapemig a demanda de renovação do Termo de Cessão. Por enquanto, a organização e o governo do estado têm um “acordo de cavalheiros” que permite a continuidade do projeto por tempo indeterminado – tecnicamente, elas podem ser retiradas a qualquer momento.

“Infelizmente é nessa política que está aí que a gente tem visto nenhum investimento em políticas para mulheres, em que mais de 433 mulheres foram assassinadas (dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) apontam o número em 2017), em que agentes da polícia foram os principais responsáveis por feminicídios. É um estado que não tem assegurado políticas para mulheres”, lamenta a coordenadora.

A Tina Martins também cobre a demanda de mulheres que não são naturais de Belo Horizonte, atendendo as nascidas no interior de Minas Gerais, em outros estados e até migrantes – muitas encaminhadas pelos próprios consulados. Além do Consórcio de Promoção da Cidadania Mulheres das Gerais, que abrange apenas oito municípios da região metropolitana, os instrumentos de enfrentamento à violência contra a mulher são municipais, portanto as cidades que não possuem a estrutura necessária ou mulheres sem residência fixa nestes locais acabam ficando desamparadas pelos governos.