A cidade é dos loucos
Dia Nacional da Luta Antimanicomial é comemorado com festa em Belo Horizonte, tradicional desfila toma conta das ruas da cidade
Por Petra Fantini
Publicado em 18/05/2018
Em um cenário de retrocessos e sucateamento de políticas públicas, a luta pelos direitos dos usuários do sistema de saúde mental desfila mais uma manifestação cultural política nas ruas de Belo Horizonte. A Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam Tam se concentra na Praça da Liberdade às 13h30 desta sexta-feira (18/05) em comemoração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Ouça o samba-enredo deste ano:
Com o tema “Atentas e fortes: tantãs sem temer os golpes!”, que destaca a mulher na utilização do adjetivo feminino, o ato alerta para as ameaças que pairam sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) desde o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e prestará homenagem à vereadora carioca Marielle Franco (Psol), assassinada em 14 de março. O desfile, organizado há 23 anos pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental, surge a partir da reforma psiquiátrica brasileira e junto com os serviços substitutivos de Belo Horizonte, numa perspectiva libertária em relação ao tratamento dos usuários da saúde mental.
Neste ano, a Escola desfila com as seguintes alas: Em nossa História de Luta, montados num carvalho azul, não temeremos mal nenhum; Loucura Ambulante contra os arrogantes; Que Tiro foi esse que feriu o futuro; Álcool e Outras Drogas: Comunidade terapêuticas e outras prisões violam, redução de danos é da hora; Golpe/Manipulação: Malditos Marionetes e bate-panela, chega de tanto horror em nossa goela; Movimentos Sociais: Nada por nós, sem nós. O samba-enredo pode ser ouvido abaixo e a letra você acesse neste link.
O movimento antimanicomial belo-horizontino é referência nacional, tendo surgido através de trabalhadores, gestores, familiares e usuários e conquistado o fechamento de todos os hospitais psiquiátricos da cidade, os chamados manicômios. “A partir do final da década de 1980 Belo Horizonte mudou a utopia do tratamento da loucura, que antes era feita de uma forma fechada”, conta o coordenador municipal de Saúde Mental Fernando Siqueira. A luta antimanicomial é contra o encarceramento indiscriminado da loucura, isto é, dos sujeitos com transtornos mentais, e o consequente desrespeito aos direitos humanos daqueles considerados diferentes ou “disfuncionais”.
Fernando explica que a política de saúde mental em BH foi sendo construída seguindo os princípios do tratamento em liberdade e do SUS, que já indicava a criação dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. “A cidade é reconhecida pelo movimento dos trabalhadores de saúde mental, pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental, pela Associação do Usuários da Saúde Mental (ASUSSAM). Existe uma potência política que na verdade vem desde os tempos de Patrus (Ananias, que foi prefeito de Belo Horizonte de 1993 a 1996)”, diz Fernando. Os atores da saúde mental da capital possuem uma formação política não psiquiatra centrada, “uma lógica em que existe um saber que é compartilhado por todos”.
A política de saúde mental da cidade é focada nos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams), que oferecem tratamento territorizado, próximo à família, individualizado, com o mínimo de medicação possível e sem contenções desnecessárias. Os centros são divididos também em especializações em álcool e drogas e infantil. Outro mecanismo municipal são os Consultórios de Rua, equipes ambulantes que atendem usuários em situação de rua e vulnerabilidade, como uso de drogas. Os Centros de Convivência, por sua vez, fazem a reabilitação com oficinas de mosaico, bordado, pintura, entre outras atividades. A rede se envolve até reabilitação psicossocial do sujeito e sua inserção no mercado de trabalho.
Mesmo construída de forma potente, Fernando alerta que a rede municipal também é falha e frágil ao descaso público. Soraia Marcos, do Fórum Mineiro de Saúde Mental, observa que a saúde mental “vem sofrendo os impactos (do golpe) como todos os outros setores de direito, nos níveis federal, estadual e municipal. Quando a gente tem o não investimento no serviço substitutivo, falta de medicação, de vestuário para os usuários, deixa de contratar e substituir profissionais. O retrocesso está posto, a partir de 2016 ele está autorizado”. Os golpes que a saúde mental pode sofrer estão ligados à desarticulação do SUS e o direcionamento dos investimentos a hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Em 2017 o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 3.588 (https://goo.gl/5Gna2S), que altera a Política Nacional de Saúde Mental. Movimentos antimanicomiais e o próprio Conselho Nacional de Saúde (CNS) denunciaram que as alterações incentivam a volta dos hospitais psiquiátricos, contrariando a Lei da Reforma Psiquiátrica (https://goo.gl/imSuFz), que recomenda o fechamento progressivo dessas insituições. A nova norma aumenta o valor da diária de internação paga aos hospitais psiquiátricos e amplia de 15% para 20% o número de leitos psiquiátricos nessas unidades, entre outras mudanças.
Instituições privadas sem fins lucrativos e financiadas, em parte, pelo poder público, as comunidades terapêuticas geralmente possuem um viés religioso no tratamento do vício em álcool e outras drogas. Recentemente, tanto o governo estadual quanto o federal anunciaram aumento de investimento para essas instituições de abrigamento temporário: o primeiro abriu um edital em 2017 que subiu de 23 para 53 o número de parcerias e o segundo, por meio dos Ministérios da Justiça, Saúde e Desenvolvimento Social, divulgou em abril um edital que destina R$ 87 milhões a novas contratações em todo o país.
Em 2016, porém, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) de Minas Gerais divulgou um relatório de vistorias realizadas nas comunidades mineiras em que 42 instituições, das 74 do programa Aliança Pela Vida, apresentaram desvios às indicações do SUS e da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Segundo Soraia, nas avaliações foram encontradas desde violações mais simples como não ter acesso para cadeirantes chegando a situações graves como uso de medicação de forma indiscriminada e até tortura. “São entidades violadoras de direitos e que têm conseguido investimentos públicos muito pesados”, denuncia.
Estas políticas, segundo Fernando, são indícios do retorno do biopoder, da biopolítica, “o poder psiquiátrico querendo novamente assumir as rédeas dos tratamentos”. “O tratamento moral, que nos séculos XIX e XX estava imposto aos loucos, àqueles que não têm a razão. Nesse momento do Brasil pós golpe ele está com risco de retornar”, teme o coordenador. “Nós sabemos que nesses tempos sombrios em que a gente vive nós temos que defender o SUS e a reforma psiquiátrica antimanicomial. E é também uma luta em defesa da democracia. Nós tiramos o sujeito dos porões da loucura e colocamos esse sujeito na rua, em liberdade”.
SAIA CANTANDO JUNTO:
JAMAIS APRISIONAR O NOSSO SONHO
(Produção Coletiva do CCSP)
REFRÃO
Vem K, Vem K
Vem pra rua, vem Maluco
LGBTQ sofre
Vem o Negro, vem o
Marielle(s) em cada morte
Atentas e fortes
Tantãs sem temer a sorte
Pois o nosso norte
É voto de contragolpe
Nossa ala da criança
Canta em voz surreal
Já são vinte e cinco anos
De um grande sonho real
A liberdade é antimanicomial
Aqui nesta capital
Jamais aprisionar o nosso sonho
Isto é imortal
REFRÃO
Que volte para os trilhos
O rumo do Brasil
Que com golpe atrás de golpe
Foi pra ponte que partiu
E o trem caiu
Foi manicômio fascista que pariu
Mas, tantã, nossa luta dá um jeito
Liberdade sempre é nosso “defeito”
REFRÃO
Toda hora, Toda hora, Temer, um golpe:
A mídia só quer ibope
Comunidade terapêutica?
Receita de Calote!
No retrocesso já se vê indício:
Um SUS sucateado, e o indivíduo?
Reforma que inventa o egoísmo
E o Direito? Ah! KKKsuísmo !
REFRÃO