A nossa sorte é ter coragem
‘Viagem ao Coração do Sol", novo disco do Cordel do Fogo Encantado, é música popular progressiva brazuca real de raiz. Por Luiz Gabriel Lopes
Por Luiz Gabriel Lopes (https://facebook.com/lglopesbr)
Publicado em 13/04/2018
Por algum tempo hesitei em fazer uma audição detida e atenta do novo disco do Cordel do Fogo Encantado, ainda que o gesto de renascimento da banda, por si só, já tenha me causado singular interesse, em meio ao nauseabundo cenário que escorre pelas nossas telas e janelas, nesses tempos sombrios.
Não fui um ouvinte profundo da primeira fase da banda, apesar de, sim, ter feito parte da grande onda que se moveu a partir dela, do “brotamento de nicho”, em nível nacional, de uma estética poética-libertária-telúrica-regionalista & independentista, filha dos saraus e irmã bastarda de histórias que, por caminhos distintos, foram desaguar em grupos como Nação Zumbi e Mestre Ambrósio, em sua sagaz releitura das cosmovisões locais do nordeste brasileiro, já em profundo contato com a urbe global.
O Cordel me arrebatou quando vivi em Belo Horizonte, recém chegado de Entre Rios, e a eles fui apresentado pela Flora, minha irmã, que na época se antenava aos movimentos batuqueiros tão férteis de BH, cavucando novidades pelos matagais da ainda baldia internet. Após encontrar no SoulSeek (a rede de compartilhamento de arquivos criada em 2002) o primeiro disco homônimo da banda, curiosamente produzido pelo hoje amigo e parceiro Kiko Klaus, cheguei a presenciar um show épico deles na Praça da Estação, e ali pude perceber a real encantaria que falava através daquele incêndio sonoro.
O novo disco, ‘Viagem ao Coração do Sol’, segue o mergulho fundo na trilha intensa, romântica e lírica que foi sua marca, de “olhos fundos como as minas”, inserindo, porém, a banda numa nova configuração sonora: esse espírito telúrico e tosco, punk e profético, que se organiza sob a batuta do maestro Fernando Catatau, que realiza uma produção de alto nível. Guitarras e sintetizadores adentram ao universo rústico da fogueira, preservando e potencializando a energia do feitiço dos tambores. É música popular progressiva brazuca real de raiz, com partes instrumentais, poesia falada, refrões heróicos.
Munido das labaredas que emanam do grupo, Catatau azeita as engrenagens com sua alquimia elegante, consciente do parentesco musical do Cordel com Metallica e Black Sabath: há uma violência em pauta, violência de rompimento, transposição. “Um tambor que se chama esperança”. Aquela intensidade agreste, da qual tanto precisamos nos alimentar hoje, nesses dias onde os sonhos humanos parecem estacionados, preguiçosamente amedrontados.
Não é por acaso que, ainda que numa citação discreta, o disco louve Naná Vasconcelos, pajé maior das encantarias sonoras de Pernambuco, traçando assim um novo panorama na genealogia alucinógena do sertão brasileiro. A visão fantástica dos mistérios entre o céu e a terra.
Como naquela tirinha do Rafael Corrêa (“- O que vamos fazer?” / “- Poesia. eles não suportam poesia.”), ‘Viagem ao Coração do Sol’ é um disco-manifesto, pertinente e agudo, quase quixotesco em seu ímpeto romântico de alimentar-se do caos para fecundar novamente a terra, encenar a redenção nas águas do mar, colocar-se em diálogo com a memória mágica dos rincões áridos desse país e seus insondáveis mistérios. Por isso mesmo, é daquelas obras necessárias para uma reestruturação energética no momento histórico atual: “O sonho acabou”, e, no entanto, renasce com a fúria de um furacão. “A nossa sorte é ter coragem”.
Para ouvir: https://cordeldofogoencantado.com.br/albuns/viagem-ao-coracao-do-sol/