A produtora

Raquel Hallak, que está à frente dos três principais festivais de cinema de Minas, conversou com O Beltrano durante o CineOP


Por Rafael Mendonça

Raquel Hallak Foto: Nereu Jr./Universo Produção

Responsável pelos três principais festivais de cinema de Minas Gerais (Belo Horizonte, Tiradentes e Ouro Preto), a produtora Rachel Hallak conversou com O Beltrano durante a última mostra do CineOP, em Ouro Preto. Nessa entrevista, ela relembra sua trajetória de 20 anos na área, desde a primeira Mostra de Tiradentes. E fala de política cultural, do papel do Estado na promoção da cultura e, é claro, da qualidade do cinema produzido em Minas Gerais e no país.

Você começou a produzir eventos de cinema em 98, com a primeira mostra em Tiradentes. Lá se vão quase 20 anos…

É uma aventura. Começamos como que por acaso, percebendo um vazio. Minas é um estado de festivais: tem o Festival de Inverno, que é uma referência, o Festival da Canção, mas não tinha um festival de cinema representativo. A gente começou em torno do Centro Cultural Yves Alves, que hoje é a sede do evento, pelo fato de eu ser de São João Del Rey. É uma história que não foi planejada.

Como foi o começo dessa história?

No começo pensamos que seria uma mostra regionalizada, para dar uma ocupação para o centro cultural idealizado pelo Yves, que era diretor da Globo (já falecido). Tive oportunidade de conviver com ele, uma pessoa que incentivava muito as artes, a banda de música, o grupo de teatro… Quando vi o centro cultural parado, pensei que o Yves devia estar se revirando lá em cima! E vi que devia fazer alguma coisa. Fui conversar com a fundação Roberto Marinho e eles disseram que eu tinha que pensar em uma destinação. Que não poderiam inaugurar, administrar, porque não era o negócio deles. A ideia era de abrir uma sala de cinema, tanto que resgatamos um projetor em Montes Claros. Estavam acabando os cinemas no interior e adquirimos o projetor para doarmos para o centro cultural. Então, montamos uma sala que deveria ser aberta com uma mostra.

E a ideia foi bem recebida?

Quando a gente começou a fazer a produção, todo mundo falou “até que enfim, um festival de cinema em Minas”. Os festivais começavam a pipocar no Brasil inteiro porque a produção nacional começava a ser retomada. A lei do audiovisual começou em 95. E vimos que ia ter um movimento crescente nesse sentido. Eu acho que o diferencial foi sabermos o que eram os circuitos mais antigos, de Gramado, Brasília. Não existia o do Rio. Eram vários festivais pequenininhos e tinham alguns que começaram antes de nós: Vitoria, Curitiba, Recife. Eu trouxe a experiência do SESI e da Ação Global (da Rede Globo), uma forma de pensar a formação, em todos os públicos, em como unir todas as artes, todas idades num evento só. O cinema sempre foi o carro chefe, mas dialogando com outras artes.

Mas existe uma segmentação interessante que da ‘cara’ para cada uma das três mostras. Foi pensado de propósito?

Isso veio da experiência de Tiradentes. Quando começamos, em 98, dissemos que seria um festival aliado do cinema brasileiro, do cinema atual, do que estivesse sendo produzido. Na época, disseram que não havia produção para sustentar um festival de cinema brasileiro, e que, por isso, o Festival de Gramado tinha acabado de se tornar latino. Mas insistimos que ele seria um festival brasileiro, e se faltasse (produção) em um ano, a gente não faria.

E as homenagens?

Até a 10ª edição, a gente homenageava cineastas que já tinham trajetória e conceitos que dialogassem com a proposta do evento, de contemporaneidade. Na 3ª Mostra, na virada do milênio, tive a ideia de fazer uma enquete com críticos e escolher os três filmes do século para exibir. Uma inocência! Os filmes foram escolhidos e eu não conseguia achar cópias. Dois eram do Glauber, mas com quem estavam as cópias? A família não estava organizada e tivemos de procurar com todos os herdeiros. A cada ano era um homenageado, e sempre enfrentávamos o problema das cópias. Eles não sabiam aonde estavam os filmes, nem o estado dos filmes. Esses filmes estavam sempre nas mãos dos produtores, já que os diretores eram contratados para dirigir. Isso é algo que precisa ser discutido.

Essa discussão sobre preservação é exclusiva aqui, da mostra de Ouro Preto, né?

Eu vi que não poderia ser em Tiradentes, porque o evento já estava muito redondo, e colocar um assunto tão sério lá ia acabar dispersando, sem aprofundar a reflexão. Então pensei em criar numa cidade patrimônio, porque temos que tornar o cinema em patrimônio. É muito importante tratar da preservação. Não temos um de banco de dados, não sabemos sobre o estado dos filmes. Hoje, temos uma consciência da preservação, mas não muito se avançou no sentido de políticas públicas para preservação. E surge a ideia de fazer Ouro Preto. Na época, o Angelo Oswaldo, que acompanhou o nascimento do festival de Tiradentes, incentivou essa mostra, que era mais do que só uma mostra.

Em que sentido?

Estava nascendo uma mostra com conceito complementar ao que estávamos fazendo. O escopo das mostras é muito parecido. Tem abertura, encerramento, oficina, debate, atração artística, lançamento de livro, mas o conceito e o enfoque são complementares. Em 2006, nasce cineOP já falando a que veio e pegando a questão da preservação, da memória, da história. Dois anos depois vem a questão da educação, e a mesma coisa com BH, um ano depois. Nos tornamos referência no Estado para o audiovisual, e as pessoas nos procuravam para ver se estreavam o filme em BH. Cada filme saía no máximo com duas películas, e era Rio e São Paulo e acabou. Achávamos que não teria a mostra, agora não tem nem espaço!

São mostras grandes e caras. Como é a batalha para conseguir dinheiro?

É uma montanha russa. Lembro que a mostra que tivemos mais recurso foi a 5ª de Tiradentes, quando fizemos uma edição em BH. Temos a preocupação de aplicabilidade de recurso e de termos uma programação gratuita. Nossa empresa não sobrevive só das mostras e precisamos fazer outros eventos para mantê-la. Às vezes elas (as mostras) dão prejuízo, outras, empata, em termos de captação e produto. Mas a gente tem que sobreviver com o que tem, por que ninguém está aqui para ser herói. Este ano, o governo de Minas tem sido parceiro fundamental. E como a gente já está há 20 anos, temos o BNDES como patrocinador, que assegura Tiradentes, BH e Ouro Preto. A gente dá o start e o resto é batalhar. O meu modelo de luta é tornar bi-anual esse modelo de patrocínio, porque grupos como o Corpo e o Galpão tem patrocínio de vários anos. Como eles vão planejar, produzir e se manter sem recurso? Os festivais não são diferentes.

Dá para falar em sustentabilidade?

Em termos de futuro, eu acho que precisávamos de uma proteção, uma blindagem, dentro de um contexto de política pública. Porque a cultura não é auto-sustentável, não tem a menor chance de ser no Brasil. O estado sempre foi, e tem que ser, um ator fundamental para garantir a sobrevivência dela. Fico pensando quando vou fazer com mais tranquilidade ou menos apavorada. Tenho comprometimento e a gente sempre está no risco. Mas tem hora que não tem como recuar. Estávamos na mostra de 20 anos, com problemas na lei estadual, e a solução de diminuir de nove para cinco dias não representava quase nada nos custos. Como eu recuo?

Como você vê a produção mineira atual? E como você enxerga o papel das mostras no fomento para a produção?

Baronesa acabou de ser lançada para o Brasil Cinemundi. Eu vejo a produção num momento efervescente. Profissionais muito talentosos. Aquela coisa mineira, de você dar tudo que tem em prol de uma causa. Nesses profissionais que se reuniram e foram se formando, muitos deles que estabeleceram uma rede de contatos a partir de Tiradentes, você reconhecer uma causa, que é a produção. O cinema mineiro está ganhando o mundo e os profissionais de Minas estão atentos à coprodução internacional, que é a saída para manutenção do cinema. Acho que está sendo colocado dinheiro para o audiovisual em Minas, ainda que precise de ajustes, mas os editais vão possibilitar isso. Tanto é que a gente está vendo as inscrições de Tiradentes e do Cinemundi, que são projetos na parte do argumento, do roteiro, e a gente tem que estar atento para que esse incentivo não seja interrompido. E que a gente tenha espaço para continuar fazendo, porque é um cinema diferenciado.

Outro diferencial do CineOP é a valorização dos profissionais de todas as áreas da produção, né?

Eu sou uma pessoa dos bastidores, tímida, e acho que quem trabalha como formiguinha é que garante o resultado. A cadeia produtiva do audiovisual é muito grande. Temos que parar com essa coisa de achar que o ator e o diretor são as estrelas do audiovisual. Para um filme acontecer precisa de trabalho coletivo. O trabalho de um montador, da Cristina, uma montadora mulher, pode fazer um filme ser bom ou ruim. Boas histórias fazem toda a diferença, e nisso um pesquisador também é fundamental. Essas pessoas não tem voz nem vez, e esse é o objetivo do festival. São pessoas que nunca esperavam reconhecimento, e tê-lo é uma coisa muito boa. Dá uma injeção de ânimo. O trabalho que a gente faz é coletivo, desde quem pensa, a quem divulga, a quem assiste. A gente tem que entender essa cadeia de compartilhamento.

A política de fomento ao cinema em Minas andou tomando sustos. Kalil quase fechou o MIS. Tem muita gente reclamando que o edital do Filmes Minas sumiu. Como você vê isso?

O político, o governante, que não incentiva a cultura, mata seu próprio governo. Até o que não vai sobreviver vai ser retratado pela cultura. Acho que é fundamental, um bom negócio, a formação de opinião. Até a nomeação do Juca não veio pelo acaso. Acho que se a cultura ganha, quem ganha é a cidade. E a cultura tem todos os predicados para ser instrumento dos governantes. Se um governo não reconhece isso está fadado ao fracasso.