A revolução


Por Altino Filho

‘Chão de caça’, obra de Cinthia Marcelle na Bienal de Veneza – Marilia Rubio

Depois que o Joesley Batista entregou Aécio Neves feito um patinho (esqueça a Fiesp), minha vida deu uma volta de 360 graus. “Você voltou para o mesmo lugar”, apressaram-se em dizer alguns amigos mais chegados. É fato. De onde estou, vislumbro os mesmos estádios superfaturados, as mesmas mochilas abarrotadas de grana, a mesma desfaçatez do Temer e, quando volto o nariz um pouquinho para a direita, posso sentir também o cheiro forte de carne pobre que exala da biografia do Padilha.

Agora estudo atentamente o modo menos dolorido para se tirar um vice que virou presidente. E vejo como se dá o rito na Câmara. E de que forma funciona o processo no Senado. E investigo até onde o Supremo pode ou não intervir, e chego mesmo a devanear sobre o comportamento do câmbio ou o sobe e desce das Bolsas no caso de o bicho realmente pegar.

Quando estou munido de um bom copo de uísque, fico propenso a generalizar. E disparo aos quatro ventos, e com ar de Aristóteles: “Gente, estamos vivendo uma revolução que não conseguimos aferir”. As pessoas estão tão perdidas que tendem logo a concordar. São tantas questões colocadas nas redes sociais, nas relações interpessoais, no modus vivendi da sociedade, nas novidades sobre o emprego, nas posturas comportamentais, no desgaste dos modelos político e econômico que tudo parece convergir para um mesmo evento: uma grande e mal acabada revolução.

Já que me proponho a dizer isso, como se uma tese fosse, me sinto impelido a dizer o porquê. E é como se eu tentasse arrancar de alguma forma a venda que este século XXI nos colocou. Mas com cuidado. Observem, por exemplo, a pedagogia. Você quer seu filho numa escola conteudista ou construtivista? O mais importante agora é passar no Enem ou descobrir o ofício que faria seu rebento integralmente feliz?

Na Dinamarca, sem qualquer saudosismo colonial, não há mais as clássicas matérias de imersão. Geografia, história, matemática, biologia, química ou línguas estrangeiras já estão fora da grade curricular. O que os jovens dinamarqueses estão estudando são cases. Os professores elegem um grande tema, a Segunda Grande Guerra, por exemplo, e através desse assunto matricial provocam os alunos a usarem seus conhecimentos de física, geografia, matemática etc. etc. Isso demonstra que a velocidade das informações, o advento da internet – e o consequente dinamismo dos processos – requerem respostas mais imediatas. E talvez menos reflexões claudicantes.

Mas, voltando a outros ingredientes revolucionários, pergunto: qual seria o “novo” feminismo? Como naturalizar a transexualidade? Que tipo de transformação trariam à Europa as novas migrações? Qual é o papel do jornal impresso (se ele continuar a existir)? Que legado foi herdado das gerações que viveram os movimentos beatnik, hippie, punk e outros? Que modelo econômico poderia ser adotado hoje quando o topo da pirâmide controla 95% da riqueza produzida no mundo e o capitalismo se mostra cheio de falhas?

Outro dia um colega de trabalho me perguntou se eu já estive em Los Angeles. Respondi que sim, “e também em São Francisco”, acrescentei, já que falávamos da ensolarada Califórnia. E qual a diferença entre as duas cidades?, perguntou. Eu, na verdade, nunca penso em diferenças entre duas coisas. Nunca entendi comparar Chico e Caetano, ou feijoada e cassoulet. Mas uma resposta me surgiu rápida. “Acredito que São Francisco fabrica a realidade”, murmurei, pensando em como a cidade ao norte do estado funcionou no último século – uma espécie de laboratório para muitas experiências de vanguarda. “Já Los Angeles funciona ainda como uma indústria do sonho”, terminei, na toada do velho clichê que compara cinema a sonho.

Lembro da conversa para afirmar que talvez estejamos vivendo um momento bem São Francisco. Uma era de experiências novas e de histórias inusitadas. Vide as operações da Polícia Federal que, na semana passada, prendeu até mesmo uma vistosa filha da oligarquia política brasileira. Quando tudo parece confuso, nos voltamos para as artes. Apesar de tanta tecnologia, uma outra instância para a poesia parece também estar sendo criada.

Na abertura da 57ª Bienal Internacional de Arte de Veneza, a curadora francesa Christine Macel, do Centro Pompidou, disse algo que lembra a tal da revolução que pretendo desenhar. “Numa época de desordem global, a arte envolve a vida, mesmo com as inevitáveis dúvidas que vão surgir. O papel, a voz e a responsabilidade dos artistas são mais cruciais que nunca, em meio aos debates contemporâneos. É através dessas iniciativas individuais que o futuro do mundo toma forma, e, embora incerto, é muitas vezes mais bem intuído pelos artistas que por outras pessoas”.

Acho que é por aí. Mesmo que não consiga mostrar de forma clara e pertinente todo o processo que, aos poucos, nos revolve por completo. Ainda não bebi meu uisque hoje. Mas queridos, acreditem, estamos vivendo uma revolução que não conseguimos aferir.