A Serviço de quê?

Professores e estudantes de jornalismo refletem sobre o impasse que vive a profissão


Por Silvana Mascagna

O mercado de trabalho restrito e o descrédito da grande mídia levam a uma indagação: o que jornalistas prestes a se formar esperam da profissão?

A resposta carrega mais esperança do que se poderia imaginar. Se ainda há nas faculdades estudantes que miram a grande imprensa, existem também os que enxergam novas possibilidades, que não passam, nem de longe, pela mídia tradicional. Isso graças a educadores que, mais do que profissionais para o mercado, querem formar cidadãos.

“Para mim, ensinar é uma militância”, afirma Tatiana Carvalho Costa, professora de jornalismo do Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte. “Acredito numa formação em que a estética não esteja separada da ética. Se é preciso ensinar, por exemplo, como se usa uma câmera, entender como funciona um equipamento, para que o aluno tenha autonomia para usar a tecnologia, e instruir para o rigor na apuração, na investigação, na narrativa, é necessário, mais do que nunca, uma educação que se paute pela diversidade”, afirma a professora.

Tatiana Carvalho Costa, Professora da UNA – BH
foto – projeto Pretança

Tatiana cita os projetos de extensão universitária da UNA, como o Pretança e o Una-se Contra a LGBTfobia, como alternativas para prestar uma formação mais humanista. A ideia do primeiro é ampliar os espaços de discussão sobre questões raciais, representação e interseções com questões de gênero e orientação sexual. O Una-se Contra a LGBTfobia tem como objetivo incentivar uma cultura de respeito aos direitos humanos e à diversidade sexual no ambiente universitário com foco em uma formação cidadã dos futuros profissionais. “Nosso objetivo é provocar o estudante a ir para frente. Apresentar outras possibilidades para que ele crie alternativas”, explica.

OLHAR PRÓPRIO

Bruno Souza Leal, professor do Departamento de Comunicação e do programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a preocupação no ensino público é também a formação humanista. “Nosso objetivo é que eles saiam a campo para ver o outro e desenvolvam um olhar próprio. O cenário é de transformação e é preciso que os estudantes saibam que o mundo é mais do que eles veem e pensam”, afirma o professor.

Para ele, diferentemente da época em que se formou jornalista, no final dos anos 80, hoje os estudantes não necessariamente visam o mercado de trabalho. “Para mim, existem três aspectos. O primeiro é ‘para que serve o curso superior?’ Não necessariamente para preparar o aluno para a profissão. A experiência, a vivência universitária hoje, cada vez mais diversa e heterogênea, transcende essa questão. Eu me sinto um professor de jornalismo para pessoas que não necessariamente serão jornalistas”, afirma.

O segundo ponto destacado por Leal é a própria profissão. “Hoje, existem novas possibilidades de trabalho que são incompatíveis com a visão que a minha geração e as anteriores a ela tinham da profissão. Os estudantes, atualmente, estão buscando novas atividades, alternativas, diante da desilusão com a mídia tradicional. E o mundo, para eles, é muito maior do que era para gente, por causa da internet”, diz o professor.

E o terceiro ponto, segundo Leal, diz respeito a regulamentação da profissão. “Os processos de regulamentação não se efetuarão nos canais de sempre. Tem um desencanto geracional com o jornalismo nos moldes em que é feito hoje. Um desencanto que nasce quando os alunos experimentam a vida nas redações, como estagiários. E o lado bom é a possibilidade de se reinventar a profissão. À medida em que eles se abrem para novas formas, vem a renovação”.  

Para Roberto Reis, que leciona a disciplina Observatório de Ética da Una-BH, o papel do professor de jornalismo hoje é fazer o aluno não perder a esperança. E, para isso, segundo ele, é importante formá-lo pela pluralidade, pela diversidade, pela cidadania e pela democracia. “O jornalista é democrático por definição, afinal, a democracia é a pluralidade de vozes. A violência está fora desse jogo. Sempre digo que nós temos um horizonte normativo, que é o código de ética da profissão. Se ele está sendo violado, não pode ser naturalizado. Nós temos um direcionamento”, afirma.

Coordenador do projeto de extensão Una-se contra a LGBTfobia, na faculdade, Reis destaca a importância de mostrar para o aluno que ele tem a responsabilidade de mudar. “Ele tem que buscar novos espaços, pensar em fazer um outro tipo de jornalismo, talvez por meio do empreendedorismo e de lugares que possibilitem isso, como ONGs, por exemplo”.

Como escreveu Elis Monteiro, em seu artigo “Crise no jornalismo: estudar é preciso”, no site Observatório da Imprensa, mais do que um jornalista, o profissional precisa, agora, se perceber como um comunicador. “É preciso que fique claro: mais do que conhecer e dominar as ferramentas, o profissional de comunicação da era digital precisa conhecer os novos influenciadores, as novas oportunidades de exploração de viabilidade para seus clientes e um novo contexto no qual um jornalista formado e com mente apurada pode fazer diferença”, escreveu ela.

DIVERSIDADE

Gael Benitez, 21 anos, sabe bem da importância de criar novos espaços. Estudante de jornalismo, ele tem a consciência do momento que vive a profissão que escolheu. “O jornalismo está em transição. É necessário estar antenado sobre as novas mídias, saber lidar com as novas ferramentas. A informação nunca esteve tão democrática e a grande mídia não é hoje o único meio de se informar”, afirma o estudante.

Além disso, para ele, os meios de comunicação tradicionais não dão conta da diversidade de temas que a sociedade exige atualmente. Um deles diz respeito diretamente a Benitez. Homem trans, o estudante quer criar um jornal no Youtube para divulgar notícias sobre transgêneros. “Isso não existe na mídia tradicional porque não interessa a ela”, diz.

A ideia, com o Transtorna (nome do seu projeto), é fugir do relato pessoal e trazer informações relevantes para quem está buscando entender seus processos. “Quando comecei minha transformação, tentei pesquisar e não obtive respostas oficiais, médicas, legais sobre meus questionamentos. Só encontrava depoimentos de pessoas falando de suas experiências. Senti falta de informações que viessem de fontes confiáveis. E quero, com o Transtorna, ajudar pessoas que estão começando a transição a ter um norte”, conta ele, que afirma não ter tido problemas com seus familiares e amigos durante sua recente transição, mas sabe que é exceção.

Hormonização, retificação do nome social, representatividade, questões legais e muitas outras são pautas já pensadas por Benitez. “São assuntos que fazem parte da nossa vida”, diz. Por ora, ele tem um piloto gravado com entrevistas com nomes de pessoas trans que são referências desse universo.

“Embora esteja fora da mídia, esse assunto tem interessado a algumas empresas, que pensam os trans de forma capitalista, como consumidores. E isso é importante”, diz ele, que tem planos ainda mais ambiciosos sobre o assunto. “Quero criar uma agência de comunicação específica sobre a comunidade LGBT”.

STARTUP

Outro estudante que partiu de um interesse particular para criar uma nova atividade dentro do jornalismo é Gabriel Peixoto, 20 anos. Seu projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na UNA, é uma startup de compartilhamento de música independente, o Indicaí, que existe há quase dois anos na internet. Surgiu “como grupo, de grupo foi para página e de página, para site”, como ele explica no Facebook do projeto.

Agora, o Indicaí se prepara para se transformar numa startup e é essa transformação que será tema do seu TCC. “Isso é possível graças ao curso de Jornalismo Experimental, Empreendedorismo e Diversidade, em que há um diálogo dos estudantes de jornalismo com os alunos de gestão empresarial para viabilizar projetos. Isso sem cair no empreendedorismo liberal”, explica a professora Tatiana Carvalho Costa. Mais de acordo com o que pretende Peixoto com sua startup.

“A ideia é ter uma relação horizontal com o ‘indicante’. O site é totalmente colaborativo e a equipe de colaboradores muda o tempo todo. Nunca gastei um centavo com o site”, diz.

“O Indicaí funciona assim: uma pessoa indica uma música e, a partir daí, por meio de um trabalho de avaliação, do entendimento dessa música, encontramos uma informação para compartilhar. Pode ser de uma simples legenda até uma resenha. Mas pode ser uma foto, uma informação sobre o autor, uma entrevista”, explica.

Gabriel parte do projeto, já que o Indicaí é muito mais do que isso. Ele quer funcionar como um intermediário entre público, artistas, produtoras, gravadoras, casas de show, por meio de promoção de eventos, gravação de clipes e o que mais der na telha de seus colaboradores. O Indicaí já promoveu, por exemplo, o Reverberar – 1º Festival de Música Colaborativa, com shows e mesas de debates, em parceria com a casa de shows Autêntica, em agosto passado.

Gabriel afirma que fazer do Indicaí uma atividade profissional veio da decepção com a profissão. Como citou o professor Bruno Leal, sua experiência como estagiário mostrou que a grande imprensa não era o lugar que ele gostaria de estar. “Hoje, o jornalista não é apenas repórter, é designer, videomaker, gestor de mídia, mas o mercado não paga por isso”, diz. “Eu sempre quis fazer jornalismo, mas a faculdade fez com que eu me decepcionasse com a profissão. O jornalismo mudou muito, os meios de comunicação estão perdidos com a chegada das novas tecnologias. Ele precisa se adaptar”.

É por isso, segundo ele, que se faz necessário “sair da bolha”. “Eu sempre sonhei em trabalhar na TV, falando sobre cultura. Mas tem muita gente fazendo a mesma coisa. O jornalismo cultural hoje é pautado pela agenda. Está viciado. O Indicaí vem dessa necessidade de fazer algo diferente”, afirma o estudante.

A estudante Yueh Fernandes, 23 anos, também se encaixa no perfil de estudantes de jornalismo citado pelo professor Bruno Leal, da UFMG, mas por outra razão. Aluna do último ano de jornalismo, ela quer mesmo é ser escritora. “Fiz o curso porque sou curiosa e gosto de escrever”, conta. Ela participou da série de reportagens “Transgêneros”, da Rede Minas, como repórter, mas nem isso a fez querer seguir carreira na área.

“Foi uma experiência ótima porque, além das entrevistas, ajudei na concepção do programa, mas meu projeto de vida é escrever” afirma Yueh, que tem um canal no Youtube, o Girlgeist, falando sobre sua experiência como mulher trans. “Fiz o canal graças ao incentivo de um amigo, que me acha carismática e acha que tenho potencial. Mas é mais diversão. Pode até ser que invista nele também, no futuro, porque não sei fazer uma coisa só”, afirma ela, que está escrevendo um romance, a ser publicado pela Amazon.