A vida franciscana do rio

Último texto da série Expedição à Transposição do São Francisco


25/05/2017

Por Bruno Moreno

O Beltrano publicou nos últimos dias o diário de viagem da expedição à transposição do São Francisco. Este último texto encerra a série, mostrando a degradação e os desafios para a recuperação do Velho Chico.

A transposição das águas do rio São Francisco, com os eixos leste (já inaugurado) e norte (ainda em obras), ressignificou por completo o terceiro maior curso d’água do país. Enquanto o rio passa por uma das mais sérias crises hídricas de sua história, a obra quase dobrou o número de pessoas que utilizarão as águas que nascem na serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais. O cobertor é curto, mas o santo reparte sua água.

Atualmente, segundo a Ministério da Integração, há 16,5 milhões de pessoas vivendo na bacia do São Francisco. Com a chamada integração das bacias hidrográficas, outros 12 milhões de brasileiros terão acesso às águas do Velho Chico. No entanto, a prometida revitalização que deveria acompanhar a transposição, apesar das ações pontuais implementadas nos últimos anos, não se reverteu no aumento da vazão das águas do rio, nem mesmo na manutenção, como veremos a seguir. Atualmente, a captação do eixo leste, no lago de Itaparica (PE), é de 12 m³/s em média. Mas no açude Boqueirão, na região de Campina Grande, está chegando pouco mais de 5 m³/s.

Ao longo do eixo leste, com 217 quilômetros de extensão, há 4,5 milhões de pessoas, distribuídas em 168 municípios em Pernambuco e na Paraíba. Já no eixo norte são 260 quilômetros, atendendo a pouco mais de 7 milhões de pessoas, em 223 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Atualmente, as águas do São Francisco já abastecem um município em Pernambuco e 19 na Paraíba, segundo o Ministério da Integração.

A escassez hídrica no Nordeste, que atravessa a maior seca dos últimos 100 anos, fez com que a transposição do rio São Francisco fosse vista quase como um milagre. No tempo certo, ou quase no tempo certo, chegou a água. A falta d’água limita a vida das pessoas, impede que consigam desenvolver suas potencialidades, diminui horizontes. No sertão, com os rios secos, a água vinha principalmente da chuva, que não aparece há mais de seis ou sete anos. A chegada das águas do São Francisco é a redenção dessas pessoas, esquecidas à própria sorte. Renovaram-se as esperanças, acabaram alguns problemas e começaram outros.

Vazão mínima

Se os usos e abusos do rio São Francisco se mantiverem, e não aumentarem as chuvas, principalmente nos cursos alto e médio, o rio se degradará de maneira alarmante, principalmente na foz. Para se ter ideia de como a vazão do rio tem diminuído, desde 2013 a Agência Nacional de Águas (ANA) autorizou ou prorrogou 33 pedidos para que as usinas de Sobradinho e Xingó reduzissem as vazões mínimas dos reservatórios.

Os pedidos foram feitos pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), que explora as usinas. No entanto, há quatro anos a empresa solicitava que pudesse reduzir a vazão em 200 m³/s, saindo dos estabelecidos 1.300 m³/s para 1.100 m³s. Ao longo dos anos, a vazão foi diminuindo e, agora, no último 24 de abril, o pedido foi para que a Chesf pudesse reduzir a vazão mínima de 1.300 m³/s para uma média diária de 600 m³/s e instantânea de até 570 m³/s.

Isso quer dizer que no médio e baixo São Francisco, atualmente, as represas devem liberar, no mínimo, pouco menos da metade do que liberavam há quatro anos. O pedido da Chesf foi feito porque na região do alto São Francisco, nesse período, as chuvas também não foram suficientes para recarregar minimamente os reservatórios e manter a quantidade necessária de água para gerar energia.

Outro exemplo de como o São Francisco está em situação precária pode ser verificado no boletim da Agência Nacional de Águas (ANA), publicado no último dia 18 de maio. “O volume útil do Reservatório Equivalente da Bacia do Rio São Francisco era 9.460 m³, o que equivale a 19,92% do seu volume útil total. Na mesma data do ano passado, o armazenamento era de 31,24% do volume útil”, informa o boletim.

A consequência direta da redução do volume d’água do rio, causada pela devastação das matas ciliares e por fatores climáticos, como a redução das chuvas pelo fenômeno El Ninho, é a diminuição da força com que o rio encontra o mar. Segundo o engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna, em Piaçabuçu (AL), cidade ribeirinha distante sete quilômetros da foz, as águas do rio já estão misturadas às do mar, prejudicando a captação e a pesca.

Alternativa

A polêmica em torno da transposição teve um dos episódios mais marcantes em 2007, quando no dia 22 de fevereiro o bispo de Barra (Bahia), dom Luiz Flávio Cappio, protocolou uma carta ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pedindo que o projeto não fosse adiante. Sem obter resposta, Cappio chegou a fazer greve de fome, sem resultado. Um dos argumento do bispo é que um relatório da ANA dizia que, com R$ 3,3 bilhões, seria possível implementar ações que teriam tanta eficácia quanto a transposição. O valor era metade do que estava previsto inicialmente para a transposição (R$ 6,6 bilhões),

Para o especialista em recursos hídricos e engenheiro civil Francisco Sarmento, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que acompanha de perto o projeto da transposição desde a década de 1990, e trabalhou nos estudos da obra, defende a ação como solução para o semiárido brasileiro.

“É uma obra que tem uma serventia indubitável para que o Nordeste possa se desenvolver. As medidas que a ANA sugeriu são complementares à transposição. Quanto à questão da vazão, foi feito um estudo muito completo, e o Ibama conclui pela viabilidade da obra”, argumenta.

Revitalização

Apesar do alerta de ambientalistas de que a retirada de águas do São Francisco prejudicará a saúde do rio, o Ministério da Integração garante que a transposição não causará danos ambientais. O trabalho de recuperação ficou a cargo da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).

No entanto, o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco – Plano Novo Chico só foi lançado em agosto de 2016, ou seja, nove anos após o início das obras, e a menos de um ano para o começo da captação dágua do eixo leste. O ministério assegura que já foram investidos mais de R$ 2,4 bilhões em sistemas de esgotamento sanitário, gestão de resíduos sólidos, controle de processos erosivos e sistemas de abastecimento de água.

“Desde o início das ações, em 2005, já foram cercadas e protegidas 1.170 nascentes; implantados 1.487 quilômetros de cerca, com vistas à proteção de áreas de mata ciliar e topos de morro; implantadas 35.096 bacias de captação de enxurrada e implantados 1.543 quilômetros de terraços – além da readequação ambiental de 184 quilômetros de estradas vicinais. A expectativa é a de que outras quatro mil nascentes sejam recuperadas nos próximos anos, além da construção de barraginhas e curvas de nível que aumentam a recarga do lençol freático e reduzem o carreamento de sedimentos para o leito do rio”, assegura o ministério.

Segundo Sarmento, a recuperação do São Francisco está em um programa previsto no relatório de 2003. “Independentemente de qualquer transposição, era necessária e não tem fim. É um programa contínuo. Precisa livrar o rio das agressões maiores. A maior agressão é a falta de saneamento, e também o desmatamento para produção de carvão vegetal. Cerca de 60% do carvão vegetal em Minas vem do desmatamento”, argumenta.

Eixo Norte

A obra da transposição tem seu custo atualmente estimado em R$ 9,6 bilhões, sendo que R$ 3,6 bilhões são referentes ao eixo leste, segundo o Ministério da Integração. “O Eixo Norte está com 94,92% das obras prontas e deveria ficar pronto no segundo semestre deste ano. O último atraso nesse trecho ocorreu após a empreiteira Mendes Júnior desfazer o contrato”, informou a pasta. As obras remanescentes foram relicitadas e, no dia 20 de abril deste ano, foi assinado contrato com o Consórcio Emsa-Siton. No entanto, uma disputa judicial trava a retomada das obras e, por isso, ainda não se sabe quando serão finalizadas.

PPP

Com a transposição já pronta, agora o atual governo estuda a possibilidade de privatizar sua gestão por meio de uma Parceria Público-Privada. As tratativas ocorrem desde outubro do ano passado, quando Michel Temer (PMDB) já estava presidente da República. O ministro Helder Barbalho (PMDB) solicitou ao BNDES que realizasse estudos de avaliação econômica e financeira para se conceder a transposição. No entanto, os estudos de viabilidade ainda não estão prontos.

O Beltrano agradece a gentileza da Fiat Automóveis em ceder o veículo Fiat Toro (Toro Freedom, 2.0, 16V, diesel, 4P) sem o qual, dificilmente, esta expedição venceria as estradas de terra e as trilhas percorridas no sertão de Pernambuco e da Paraíba.