"Abrimos um debate irreversível na Justiça"
Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia, briga contra o retrocesso e o reacionarismo no judiciário brasileiro
Por Lucas Simões
A socióloga Vilma Reis, histórica ativista do movimento de mulheres negras no Brasil e pesquisadora da área de segurança pública, diz ter aberto “uma fenda no sistema” ao ser reeleita ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia neste ano, mais uma vez por votos da sociedade civil. O modelo é relativamente novo no país. Foi implementado inicialmente em São Paulo, em 2011, quando a advogada Luciana Zaffalon foi a primeira ouvidora eleita por votos de um conselho misto entre sociedade civil e defensores públicos, e não mais por indicação do governador, como acontece na maioria das Defensorias Públicas do país.
“Mudar essa indicação foi dizer que agora estamos dentro do sistema e não mais na militância tangente, que é necessária, mas não suficiente por si só. Retirar a indicação do governador possibilitou que pessoas comuns pudessem ser eleitas para lutar por seus direitos institucionalmente. E fazer uma pressão nunca antes vista”, diz Vilma Reis, em entrevista exclusiva a O Beltrano. A socióloga esteve em Belo Horizonte na semana passada, para a abertura do XXII Encontro da Renap – Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, na sede da OAB-MG, discutindo com outros 173 advogados do país inteiro o que chama de “abrir fissuras no sistema de justiça”.
Segundo ela, o judiciário atravessa uma fase de “populismo penal”, ao citar as condenações arbitrárias de Rafael Braga, preso por portar água sanitária nas jornadas de junho de 2013, e da desembargadora Kenarik Boujikian, condenada a pena de censura, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, por libertar 11 presos que já haviam cumprido sentença, em 2016. “São dois casos que nos mostram como a Justiça se aproveita desse frágil e antidemocrático momento do país para uma usurpação de poder e manutenção de valores colonialistas. Por isso, as ouvidorias-gerais são um início, uma via de acesso para fazer furos na institucionalidade opressora da Justiça”, completa.
Hoje, existem 11 ouvidorias gerais no país eleitas por votos da sociedade civil, além de projetos para implementar o modelo em mais três Estados: Minas Gerais, Espírito Santo e Pará. “São três regiões decisivas, com conflitos de mineração, latifúndio, afetação de quilombolas, indígenas e do movimento sem terra. Nesse contexto, minha experiência na Bahia mostra que é preciso dar um passo além na resistência e a ouvidoria é um começo”, diz Vilma.
Na entrevista abaixo, Vilma Reis disseca sua atuação à frente da ouvidoria baiana e discorre sobre Angela Davis, racismo institucional, conflitos mediados na Bahia, além de explicar a chamada “pedagogia do constrangimento” — método de ocupar espaços institucionais por minorias excluídas dos espaços de poder.
O que mudou com a implementação de ouvidorias da Defensoria Pública eleitas pela sociedade civil e não mais pelo governador?
Ao transformar essa regra do jogo, quando o governador deixa de escolher quem vai fiscalizar a Justiça do Estado, passamos a atuar literalmente por dentro. Na minha gestão, eu estou ao lado de mais ou menos 120 lideranças sociais diversas, aglutinados em um movimento organizado de ouvir as pessoas, reconhecê-las e levá-las para dentro do sistema, para dentro da defensoria pública, com voz própria. Elas compõe comigo essa ouvidoria. Eu fui escolhida pelo Conselho Superior da Defensoria da Bahia, composto por seis membros, sendo três da sociedade civil. Temos uma cadeira neste Conselho Superior da Defensoria e acesso às audiências de custódia, podendo interferir juridicamente e denunciar abusos no âmbito institucional. O que estamos dizendo é que vai ser mais difícil criminalizar nosso povo, os movimento sociais, porque nós estamos aqui, por dentro. Sem qualquer relação de amizade ou coleguismo com desembargadores, promotores e até defensores. É algo inédito porque até então não havia representações de movimento sociais, indígenas, sindicais etc. Agora, o quilombola, o assentado, o sem terra pode estar dentro da defensoria, denunciando institucionalmente uma série de irregularidades.
E a ouvidoria tem conseguido inibir arbitrariedades cometidas pelo judiciário?
Nós podemos estar numa audiência de custódia e exigir a não-violão dos direitos. Muita gente passa por uma audiência de custódia, que em tese é uma conciliação, uma forma de um juiz entender melhor um caso, sem ter um advogado. Sem entender o que acontece ali e, pronto, já tem uma condenação. Nós garantimos que isso não aconteça. Eu tive uma experiência forte em Rio dos Macacos, uma comunidade quilombola na região metropolitana de Salvador. A Marinha reivindica o terreno desde 2010 e tivemos vários conflitos por lá, mesmo o Incra atestando que a terra é dos quilombolas. Percebi que a militância, a pressão, os protestos são fundamentais. Mas só quando comecei a atuar como ouvidora, conseguimos frear um pouco o avanço da Marinha, que chegou a impedir a entrada do Incra na comunidade. Fizemos isso por meio de instrumentos legais, do próprio sistema.
Como você lida com o racismo institucional, a partir de sua função como ouvidora?
Imagine isso: para muita gente que nunca viu uma mulher preta, de cabelo para cima, sentada ali na instância máxima daquela instituição de Justiça, já existe um impacto pelo simples fato de eu ocupar uma cadeira dentro da Defensoria Pública e ter voz ativa institucional para denunciar, cobrar e exigir. É uma disputa de narrativa que já começa aí. Isso é um passo gigantesco e cria, naturalmente, embate com uma justiça branca e classista, que mais se parece uma dinastia togada. Eu chamo isso de pedagogia do constrangimento. Em muitos casos é necessário constranger quem te oprime, estando no mesmo espaço que essa opressão. Porque vivemos num país em que, dos 18 mil juízes que temos, apenas 1,4% são negros. É uma questão de enfrentamento ao racismo institucional de dentro desse sistema, algo que a Angela Davis esteve nos lembrando recentemente em sua visita à Bahia: as instituições da escravidão, do racismo e da colônia estão em carne viva na nossa sociedade. Não são meras marcas do passado. E precisamos enfrentá-las.
Como você analisa os dois dos casos recentes mais notórios de arbitrariedade da Justiça: as condenações de Rafael Braga e da desembargadora Kenarik?
A Kenarik foi condenada pelo TJSP e absolvida pelo CNJ (em agosto deste ano) justamente por pressão interna, incluindo uma rede de advogados populares. Ou seja, de alguma forma, a construção da ouvidoria, do diálogo e contato com uma advogacia popular, ajudou nesse processo. E vale lembrar que o sistema de justiça de SP possui uma das câmaras judiciais mais reacionárias do mundo. Não é um caso simples. Especificamente na questão do Rafael Braga (condenado a prisão pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por portar desinfetante e água sanitária nas jornadas de 2013, e posteriormente por tráfico de drogas num flagrante que a defesa afirma ter sido forjado), essa pressão externa e interna, que a Defensoria de fez bastante, não foi suficiente. Não estamos colocando aqui que uma ouvidoria indicada pelo povo irá resolver o problema do judiciário. Não é isso. Mas é um movimento de enfrentamento às injustiças normatizadas e que tende a crescer, mesmo neste momento de retrocesso.