Absurdo sambar


Por Rafael Mendonça

Divulgação

Assim como o livro do Gênesis, os “Sambas do Absurdo” nasceram aos poucos. Primeiro veio o livro “O mito de Sísifo”, de Albert Camus. Depois veio o Rodrigo Campos com as músicas, depois o Nuno Ramos, com as letras, e depois a Juçara Marçal, com sua voz. E por fim o Gui Amabis com as coisas todas. E então eles descansaram.

São oito sambas, Absurdo de 1 a 8 inspirados no livro de Camus . Frases curtas. Sentidos longos.

“Ei meu coração / vem me dizer / o que entendeu / o que perdeu / as coisas são, o que elas são / tem sempre um som / um semideus, no meu colchão. / Ladeira” Absurdo 5.

E assim como o castigo de Sísifo e seu eterno subir ladeira empurrando a pedra, os sambas se entranham numa missão para o ouvinte. Missão de galgar os detalhes, de descobrir os pormenores. Entender as construções do Gui Amabis, os violões elétricos, acústicos e cavacos de Rodrigo, e a voz da Juçara. Ahhh, a voz da Juçara…

São inflamadas e cortantes as letras de Nuno Ramos. São instigantes ao ponto de incomodar. De te fazer buscar sentidos ocultos e metáforas escondidas. Falam de angústias contemporâneas. Mas remetem ao passado e ao futuro. Remetem a nossa incerteza. O certo é que sobra categoria. E as reflexões são infinitas e te levam para onde você quiser ir. Letra boa faz isso. Solta suas asas.

“Dá logo a notícia, dá / me conta do desastre / diz que o mundo acabou / com lábios maquiados” Absurdo 1

Musicalmente, dá passos à frente no samba, coisa rara em um estilo tão tradicionalista e enraizado em certas convenções. Da estirpe de um “Nervos de aço”, do Paulinho da Viola. Ou uma versão minimalista de um “Do guarani ao guaraná”, do Sidney Miller. Onde alguns torcem o nariz para qualquer coisa mais inovadora, o trio mergulha nelas.

Arte da capa por Nuno Ramos

E isso é tão prazeroso quanto incômodo de ouvir. Te tira do lugar e te coloca a pensar porque, em nome de jesusmariajosé, as coisas são tão estagnadas em um ritmo tão rico. E eles mostram isso em oito faixas, esse querer. Sussurros arrojados partem do MPC de Gui Amabis e introduzem um universo de possibilidades, um verdadeiro labirinto de caminhos musicais entre tempos e contra tempos.

O Rodrigos Campos em sua forma mais forte, solto como sempre foi, mas suas batidas nas cordas trazem aquele balanço, aquela pegada tão peculiar. Que eu insisto, não tem nada parecido. É muito original. É muito criativo o homem de São Mateus.

E a Juçara… Ahhhh a Juçara. Em seu esplendor. Em seu jeito de colocar as frases nas canções e transformá-las em facadas. Que não causam dor, causam amor. Chega a ser impressionante. Chega até a doer de tão bonito.

“E tira o caroço desse fruto / um peito um puto de um prazer de conhecer um poço oculto” Absurdo 6

Os três vêm de uma sólida e muito consistente carreira solo. Os três se metem nos mais interessantes projetos do Brasil do século XXI. São artistas construindo seu nome na história. E com sua turma, que são várias turmas, soltam esse petardo que diz tanto.

Em tempos obscuros e duros como esses que vivemos aqui no Brasil, eles trazem luz e escuridão. Um belo retrato diria até. O disco será lançado nesta sexta-feira (28), dia de greve geral pelo país. Na verdade não haveria dia melhor para ir ao ar. 

“Pra não ter, pra não ter de cantar / Pra não ter pra não ter sambar” Absurdo 8

Para ouvir: 

Atualizado no sábado às 9:00

Cultura e outras coisas

 Rafael Mendonça
 

Jornalista, editor do site O Beltrano, editor da extinta revista ‘Graffiti 76% quadrinhos’, editor do Baderna Notícias e cuidador da própria vida.