Achados e perdidos do cinema nacional

Mostra Curta Circuito, que acontece no Palácio das Artes, resgata três cineastas brasileiros esquecidos


por Lucas Simões

 

Películas de filmes depositadas numa fazenda do Pantanal desde os anos 1980 ou encaixotadas na poeira de um velho baú em Nova York há sabe-se lá quantos anos. Essas são cenas que Daniela Fernandes, diretora da Mostra Curta Circuito, se habituou a encontrar para realizar o tradicional festival dedicado à memória do cinema nacional em Belo Horizonte.

Em sua 16ª edição, a também chamada Mostra de Cinema Permanente, que acontece até o mês que vem na Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, vai além do caráter histórico e artístico de resgatar do limbo grandes cineastas. Ela também lança um olhar profundo sobre a precariedade do armazenamento do audiovisual nacional.

Os três homenageados da vez talvez soem pouco familiares ao grande público. Não porque as obras produzidas entre 1960 e 1970 por Carlos Mossy e Alfredo Sternhein, dois dos maiores nomes da pornochanchada em São Paulo, e Afrânio Vital, um dos únicos diretores de cinema negros na década de 1970, estejam ultrapassadas. E, sim, porque simplesmente se perderam ou deterioraram com o passar do tempo.

“Os filmes dirigidos pelo Afrânio, ‘Longa Noite do Prazer’ e ‘Os Noivos’, foram encontrados todos apenas em U-matic (fita cassete). Não tem nenhuma película. Estavam guardados em Nova York e numa condição péssima de armazenamento. Já os filmes do Alfredo, como ‘Anjo Loiro’ e ‘Paixão na Praia’, só conseguimos um DVD gravado de uma VHS, muito precário também. Ele tinha algumas películas numa fazenda no Pantanal, mas guardadas há 30 anos. Era impossível estarem conservadas. E o Mossy também não tinha nenhuma película utilizável, todas perdidas. Sorte é que o Canal Brasil, ano passado, teve a iniciativa de digitalizar sua obra completa. Fizeram até um box comemorativo”, explica Daniela.

Películas

Há dois anos, desde que a Labo Cine fechou as portas, o Curta Circuito parou de trabalhar com a recuperação de películas, já que a empresa sediada em São Paulo era a única especializada neste formato no Brasil. “Foi um baque porque paramos de garimpar películas antigas, que poderiam se salvar, serem preservadas por um bom tempo ainda”, diz Daniela.

A técnica permitiu a recuperação do premiado filme “Tostão, a Fera de Ouro” (lançado em 1969 e restaurado apenas em 2012), com a primeira trilha de Milton Nascimento e Fernando Brant para o cinema.

“A Labo Cine era a única empresa nacional capaz de fazer a recuperação de películas e o Francisco Moreira, restaurador, o único profissional com esse gabarito no país. Mas ele morreu em janeiro do ano passado. Então, ficamos sem a empresa e o técnico. Hoje, o centro mais próximo é Buenos Aires, o que faz ficar impraticável o tratamento de películas. Então, optamos por trabalhar basicamente com o processo digital DCP (Digital Cinema Package), que garante um bom restauro do filme, independente de seu formato, ainda que marcas pesadas de má conservação não possam ser apagadas. Mas, películas mesmo, é inviável”, diz Daniela.

Desde então, o Curta Circuito restaurou em DCP dezenas de filmes, tentando criar uma aproximação entre passado e presente, assim como foi na reestreia de “Marcelo Zona Sul”, lançado originalmente em 1969 e restaurado em 2015, com presença do diretor Xavier de Oliveira na plateia, o que causou grande comoção no público.

“Esse filme é um retrato da juventude carioca sessentista. Tinha fila de dar voltas no Cine Teatro Brasil. Uma fila enorme de gente esperando para conseguir ingresso na época do lançamento. Mas quem se lembrava do Xavier de Oliveira hoje? Ele ficou emocionadíssimo porque já estava caindo no limbo do esquecimento para o cinema. E nem acredita que sua obra, mesmo com algum marca do tempo na restauração, pudesse prender a atenção de tanta gente”, diz Daniela Fernandes.

Caso similar ao do cineasta carioca Afrânio Vital, 69 anos. Bacharel em comunicação e filosofia, Afrânio deixou sua marca mais importante no cinema. Trabalhou com o renomado cineasta Carlos Hugo Christensen, atuando como assistente de direção no longa “Anjos e Demônios”, em 1969, sua primeira participação na direção.

Depois, sem se acorrentar a temáticas previsíveis da época, falou sobre a impunidade da violência contra a mulher em “O Caso Cláudia”, além de tangenciar a influência de Nelson Rodrigues em “Os Noivos”, em um retrato próprio sobre classe média e família. Apesar de não fazer mais cinema desde 1984, quando lançou a ficção “Estranho Jogo do Sexo”, a obra cinematográfica de Afrânio estava há anos praticamente esquecida.

O produtor Francisco Marques, que trabalhou com Afrânio Vital no início da carreira do cineasta, ao lado de Carlos Hugo Christensen, sublinha a necessidade do público reconhecer nomes que contam parte fundamental da história brasileira.

“O Afrânio estava filmando na mesma época em que os Trapalhões, Mazzaropi. Mas não é reconhecido. Alguns foram eleitos para serem cineastas principais, outros deixados de lado. A pornochanchada falava alto e a nudez era muito exigida na época. Mas o Afrânio tem o mérito de problematizar a vida em seus filmes, sem abrir mão da nudez, da erotização comum naquele tempo. Assim como eu, ele ficou entusiasmado com o convite de repassar parte de sua obra. Essa manutenção da memória é importante, ainda que tardia em vários casos”, analisa Francisco.

No próximo dia 15 de agosto, o cineasta Afrânio Vital é convidado do Curta-Circuito. Ele vai realizar uma MasterClass no Cine Humberto Mauro, entre 19h e 22h, abrangendo toda a sua trajetória no cinema. A oficina é gratuita, com capacidade para até 90 pessoas. Os interessados devem ser inscrever pelo site www.curtacircuito.com.br até o dia 10 de agosto.