Ameaça de PM evangélico mobiliza terreiros em Santa Luzia

Tensão em Santa Luzia por divergências religiosas acirram ânimos e deixam praticantes com medo, manifestação no domingo (20) pediu tolerância


por Lucas Simões

foto: Mídia Ninja

Menos de um mês após comunidades religiosas de matrizes africanas denunciarem a O Beltrano as regras impostas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) cerceando as atividades de um terreiro em Santa Luzia, o medo para exercer a umbanda e o candomblé volta a rondar a cidade da região metropolitana de Belo Horizonte.

Neste domingo (21/07), cerca de 250 pessoas saíram pela avenida Brasília, no centro da cidade, em um protesto pacífico chamado “Axé pela democracia, Justiça pela paz”, com tambores e faixas exigindo o fim do preconceito. O ato foi organizado pelo Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), após o último episódio de violência na região, há dez dias, quando um sargento da Polícia Militar, que também é evangélico, invadiu um terreiro armado e ameaçou uma mãe de santo.

O caso aconteceu no último dia 12, sábado, na véspera do Dia dos Pais, no Terreiro de Manzo Ngunzo Kaiango, atualmente localizado no bairro rural de Bonança, em Santa Luzia, e que chegou a ser cotado para receber o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade (leia o histórico no fim do texto).

Por volta das 11h, enquanto se preparavam para mais um dia de atividades, os religiosos relataram que foram surpreendido por um policial militar do 35º Batalhão de Santa Luzia, que mora em frente ao terreiro, numa distância de apenas 50 metros.

“Eu estava chegando de carro, tenho uma caminhonete, e ele reclamou que eu tinha levantado poeira na porta da casa dele, porque o chão lá é todo batido de terra e ele mora muito perto. Aí começou a me xingar do nada, dizendo que as coisas iam mudar por ali, que o barulho do terreiro ia acabar. Um horror”, conta um músico, frequentador do terreiro há mais de cinco anos, que preferiu não se identificar. “Ele disse que era policial, anotou a placa do meu carro e, claro, fiquei com medo, porque quem é de religião de matriz africana infelizmente se acostumou com esse tipo de ameaça”, completa.

Depois da primeira ameça, o sargento entrou no terreiro e voltou a ameaçar os religiosos, incluindo a mãe de santo Maria Efigênia da Conceição, de 72 anos, proprietária do terreiro, conforme relato de uma das suas filhas. “O pior para a gente é ele ter ido armado até a casa da minha mãe. E ele chegou a por a mão na cintura enquanto estava lá dentro, falando que do jeito que estava ‘aquela macumbaria’ ele ia ter que começar a ‘derrubar os outros’. Isso assustou a gente, muito mais a minha mãe, que ficou em pânico. Porque ele já tinha dado tiros para o alto em outras ocasiões, quando a gente começava a tocava o tambor. Então, pensamos que ele poderia realmente atirar”, denunciou a filha da mãe de santo, Cássia Cristina da Silva.

O caso foi levado ao tenente-coronel Walter Anselmo, comandante do 35º Batalhão e chefe direto do sargento acusado. Ele recebeu a reportagem na sede do Batalhão, no bairro São Benedito, e confirmou o episódio, mas não soube informar se foi gerado um boletim de ocorrência sobre o caso. O comandante se reuniu com Makota Celinha, diretora do Cenarab, para tratar do caso de violência. Apesar de reconhecer a ação do policial com viés de intolerância religiosa, o comandante Anselmo classifica o episódio como isolado. “Foi um caso pontual, eventual”, disse.

foto: Mídia Ninja

Entretanto, o comandante admite “divergências” religiosas entre o policial militar, que é evangélico, e as atividades do terreiro, iniciadas no bairro Bonança em 2012. “O que temos é um relato de barulho incômodo feito pelo policial. E como o policial é evangélico, aí tem essa divergência. E o policial também tem um filho com deficiência mental e uma esposa com problemas de saúde. Ele, inclusive, que é um policial operacional (de rua), tem carga horária reduzida para cuidar da família. É uma situação complexa porque o policial já morava lá quando o terreiro chegou”, justifica o comandante.

O comandante também informou que garimpou um breve levantamento de ocorrências geradas na Polícia Militar, “possivelmente” desde 2012, envolvendo o terreiro e o sargento acusado das ameaças. “No dia em que conversei com a senhora Makota, fizemos um levantamento de ocorrências, inclusive por parte da comunidade e por parte do policial. Tem reclamações dos dois lados. Me parece que é desde o ano passado, se não me engano. Ou desde que o terreiro foi instalado (em 2012)”, completa o comandante Anselmo.

Após o episódio, os denunciantes pediram para que o sargento fosse transferido do bairro e tivesse o porte de arma suspenso. Mas, o comandante do 35º Batalhão diz que nenhuma das medidas “precisou ser tomada” e que não foi aberta investigação interna para apurar a conduta do militar. “Nós tivemos uma conversa. Conversamos com ele, conversamos com as senhoras do terreiro também. Mas ele continua trabalhando. Apostamos no diálogo”, disse o tenente-coronel.

Diante disso, a rotina o Terreiro de Manzo foi completamente alterada na última semana. “Nossos irmãos estavam se revezando para ficar com minha mãe. Ela viajou também para ficar mais calma depois de tudo isso. Mas não vamos parar de exercer nossa religião. Temos festas e compromissos e vamos fazê-los”, diz outra filha da mãe de santo, Joana D’Arc da Silva

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Histórico

O Terreiro de Manzo funciona em Santa Luzia desde o início de 2012, mas o ranço de intolerância religiosa é anterior. Originalmente, o terreiro foi fundado há 20 anos na divisa dos bairros Santa Efigênia e Paraíso, dentro do histórico Quilombo Manzo Nagunzo Kaiango, existente desde os anos 1970, na rua Tiago. A comunidade quilombola, incluindo o terreiro, foram cotados para receber o registro de Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2015, mas até hoje o processo não foi concluído.

Antes disso, porém, a partir de março de 2011, uma série de notificações da Defesa Civil alertou a comunidade para o risco de desabamento de dezenas de casas do quilombo, obrigando 11 famílias a serem transferidas para moradias provisórias no bairro Granja de Freitas, incluindo o Terreiro de Manzo, em outubro do mesmo ano. Apesar das famílias terem retornado à comunidade quilombola em 2012, o Terreiro de Manzo denunciou uma série de violências na sede da casa em que funcionava, impossibilitando o retorno das atividades religiosas ao Santa Efigênia.

“Na época, nós fizemos várias denúncias. Por que quando voltamos, não tinha nenhuma reforma nas casas e não havia sequer água ou luz. Mais grave é que a pate religiosa foi demolida. Derrubaram o camarim, quartos de santo e a nossa cozinha. Tivemos também ações de intolerância religiosa, acredito que não queriam o terreiro de volta ali. Então, minha mãe acabou mudando para Santa Luzia, num terreno que ela já tinha lá, e foi obrigada a realizar as atividades do terreiro na região metropolitana, como faz até hoje. É triste porque já deixamos nosso lugar de origem por intolerância e, agora, mais uma vez a história se repete”, diz Cássia Cristina da Silva, filha da mãe de santo Maria Efigênia da Conceição.