Antidemocracia é retrocesso presente


Por João Gualberto Jr.

Foto: Rafael Mendonça

Andar pelo centro de Belo Horizonte ou de transporte público com ouvidos disponíveis pode render boas “aulas” de política e sociologia. Certa vez, estava em um ponto da avenida Augusto de Lima com Espírito Santo, na calçada da Imprensa Oficial. Como o ônibus que esperava não vinha, comprei de um baleiro um pacote de pipoca doce industrializada. Como demorava, o ambulante puxou papo: falar mal da política, ou melhor, dos políticos, porque política é outra coisa, da mais séria.

Se os políticos não prestam e roubam, o país vai mal, era a tônica da lamentação. O homem, entre 50 e 60 anos, que já havia trabalhado de um tudo na vida, atingindo no passado o patamar profissional de mestre de obra, percorria o centrão com seu carrinho de balas, pipoca, chicletes, afins e cigarros picados. Antigamente, ele disse, podia escolher nos classificados com que queria trabalhar e de carteira assinada, direitos assegurados. Quando era esse passado de fartura? Ora, “no governo militar é que era bom”.

Esse papo é velho, mas cada dia mais presente, mais repetido e mais perto da gente. O baleiro tinha baixo grau de instrução, mas era perceptível, em dois minutos de papo, que não se tratava de um idiota. Nem tão mal informado assim ele era, pois associava nomes a partidos e cargos, mandatos presidenciais a mandatários e assim por diante. Ele não só demonstrou saudades da época da ditadura como o desejo por seu retorno.

Não é preciso ser um expert ou crítico esquerdista para angariar uma montanha de informações que demonstram ser fruto de um silêncio imposto essa aura de prosperidade e probidade do período militar. Há fartos dados históricos que contradizem tanto a lisura nas práticas públicas quanto a sustentabilidade macroeconômica nas duas décadas de regime. E não duvidemos que exista ao menos a desconfiança dessas “imperfeições de rota” mesmo entre aqueles que, hoje, se dizem favoráveis a uma intervenção política promovida pelas Forças Armadas. O baleiro, que não é tolo, sabe que tinha corrupção, conchavos, politicagem, inflação e até tortura e assassinato de militantes de oposição. Mas quer a volta dos militares mesmo assim.

Por quê? Porque, pelo jogo que se joga agora e do jeito que é jogado, ele não tem esperança de sair ganhando nem por tabela. Se democracia é o nome desse jogo, os milhões de derrotados do dia a dia anseiam mais é por virar o tabuleiro. A face exposta por Poderes, governos, partidos e a classe política em geral, de exploradores cínicos e indiferentes ao sofrimento, reverte-se em quem sofre com sabor de desesperança. Sob a égide desse sistema aí que chamam de democracia, o povão perde e não vê meios de, por ele, obter o mínimo da desejável segurança: física, também, mas, sobretudo, segurança no amanhã, numa sobrevivência saudável, instruída e minimamente confortável.

Discorde-se. Pondere-se que não podemos refutar a filosofia do sistema – exitoso em centenas de países – tomando por base somente nossas frustrações. Sustente-se que, sim, é necessário reformar nossas instituições, repactuar regras, resgatar confiança. Tudo bem, mas vá convencer o baleiro do centro de BH. Ele está cansado do jogo de que nem coadjuvante pode ser. Ele rala, dá um duro, e o dinheiro não dá. A esperança lhe falta. Esse é o sentimento que escorre pelas ruas da cidade.

O Latinomarómetro captou esse humor. Esse estudo, desde meados da década de 1990, é repetido ano a ano para medir a percepção das pessoas de 18 países da América Latina sobre a qualidade da democracia, das instituições políticas e da economia. Os resultados da última rodada, que foram divulgados na semana passada, estão disponíveis no portal da instituição na internet. www.latinobarometro.org

É preocupante nosso apoio à democracia, como sistema preferível a qualquer outro: a posição do Brasil é a quinta pior (43% contra 53% da média dos 18 países), só superando El Salvador, Guatemala, México e Honduras. Aliás, no geral da América Latina, o apreço ao sistema democrático não demonstra ser um dado forte.  

Entretanto, estamos abaixo da média, e, na maior parte dos quesitos

pesquisados, os aproximadamente 2.000 brasileiros entrevistados ocupam o extremo da decepção no continente. Demos a pior nota para a qualidade de nossas instituições democráticas: 4,4, sendo a média continental 5,5 (de 1 a 10). Apenas 1% dos brasileiros entende que o país vive uma democracia plena (média de 5%) e 13% disseram estar satisfeitos com a democracia (média de 30%), ambas as marcas mais baixas do estudo.

O governo da região com menor índice de aprovação é o brasileiro, 6%, sendo o de El Salvador o segundo mais impopular, com 17% de aprovação, e 36% a média latino-americana. Esse resultado vai ao encontro das pesquisas internas sobre aprovação com viés de nulidade à gestão Temer. E, sobre a atual administração federal, 97% dos brasileiros ouvidos afirmaram o país está governado por grupos poderosos em benefício próprio (contra 75% de média), mais uma vez, o valor mais extremo.

Também são do Brasil as marcas mais graves de falta de confiança no governo (apenas 8% confiam), nos partidos políticos (7%) e nas outras pessoas (7%). A desconfiança em relação ao Poder Legislativo só é maior do que a dos paraguaios (11% contra 10%). A desconfiança geral do brasileiro, refletida na falta de apreço às instituições políticas, resulta da impressão de que a corrupção é o problema mais grave que enfrentamos. Essa é a opinião de 31%, para uma média de 10%, e tendo a Colômbia em segundo lugar, bem mais atrás, com 20%.

Se a percepção da gravidade da corrupção na esfera pública é um fenômeno estrategicamente fabricado, não importa mais porque pegou. Tentando ligar os pontos, ou os dados, a impressão é realmente de campo aberto para o messianismo na política. O povo brasileiro, demonstrando extrema insatisfação, quer mudanças profundas uma vez que não confia nas instituições, entende que o governo é de uma elite que não governa para ele e reprova a democracia. Contudo, para a promoção dessa mudança ansiada, não confia em si mesmo como elemento propulsor e protagonista, o que também é um traço de falta de apreço à democracia, à participação popular.

Em 2012, um livro que ligava administração pública à macroeconomia virou best-seller rapidamente no mundo: “Por que as nações fracassam” (título no Brasil), de Acemoglu e Robinson. O ponto central da obra é a tese de que a prosperidade longeva de uma país, detectável, por exemplo, pelo nível alto e ascendente de renda per capita, não se deve propriamente às características geográficas, à cultura de seu povo ou a políticas econômicas. O segredo são as instituições políticas. E mais: não é a bonança econômica de um país que redunda em instituições políticas de boa qualidade (vide os casos de Japão e Argentina como exceções na história), mas sempre o inverso.

Os autores distinguem as instituições políticas em dois tipos. As extrativistas são constituídas por elites que atuam pela preservação do status quo e rejeitam o ingresso da massa populacional no jogo. Já as inclusivas estão abertas à participação de grupos minoritários e, ao contrário das primeiras, balizam-se na democracia, na garantia de direitos como a liberdade de expressão para a promoção da educação que, posteriormente, impulsionará o desenvolvimento tecnológico e esta, por sua vez, a prosperidade econômica.

A associação entre aristocracia, desigualdade e pobreza média é direta e ela passa necessariamente, na visão de Acemoglu e Robinson, pela restrição ao conhecimento, ou seja, pela restrição a direitos civis. Por outro lado, a inclusão política garante maior probabilidade de desenvolvimento econômico do país, a exemplo das grandes democracias, graças ao investimento na educação.

Como alterar um quadro extrativista para outro inclusivo? Na segunda parte do livro, os professores relatam casos em que a ruptura histórica sempre está presente, ou radical, revolucionária ou exógena (pragas ou acidentes geográficos gravíssimos), ou gradual. A receita de bolo é essa. Tomando por base o que o Brasil vem vivenciando de 2013 para cá, estamos caminhando em qual direção no “continuum” subdesenvolvimento-desenvolvimento? Ao, aparentemente, a partir dos resultados do Latinobarómetro, desconfiarmos de nós mesmos e renunciarmos à potencialidade da condição de fator de mudança, que tipo de instituição ajudamos a construir por omissão? Desinformados, seguimos encarnando simultaneamente os papéis de vítimas e vilões de nós mesmos. É o que parece.

Somos pobres porque não temos adesão à democracia. Seria esse o sentido lógico. Defender e atuar por golpes de Estado em favor de um pretenso desenvolvimento econômico é falácia histórica e teórica já catalogada. Mas ignoramos a literatura, uma vez que a ignorância é política pública de primeira ordem.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista política