Arreda pra cá


Por Flávio de Castro

Era novo na cidade e, digamos assim, um turista distraído. Um paulista poroso e propenso ao saudável hábito da comunicação que os autóctones exerciam em quaisquer ocasiões. Coisa que não havia em sua terra, a começar pelos interrogatórios:

“Você não é daqui não, né?” “Mexe com o quê?” “Tem filho?” “Por que veio para cá?” “Cadê sua família?” “Onde tá morando?”

No começo achou que o inquérito seria apenas o prelúdio da intimidade, sobretudo quando acompanhado de certezas e promessas:

“Vou te levar pra comer o melhor tropeiro da cidade.” “Tem que conhecer esse bar lá no Renascença.” “Vamos marcar de ir lá na minha roça num feriado desses.” “Precisa ver a cachaça que ele faz.” “Vamos marcar, some não.”

E ele marcou, foi, fez questão e não sumiu. Estrangeiro em seu próprio país, sendo comido quieto pelas beiradas a cada vez que um novo cicerone se arredava. Pois cada filho da terra que ele conhecia fazia questão de discriminar com euforia cada um dos 12 ou 13 áureos assuntos da magistral teogonia: Juscelino, Clube da Esquina, Mercado Central, Sepultura, Aleijadinho, Galo, Cruzeiro, Pampulha, Drummond, Sabino e o pouco lido e sempre citado “Grande Sertões: Veredas”.

Ele elegantemente reparava o deslize. “É Grande Sertão, no singular”. O anfitrião justificava o lapso. “Pois é, eu sempre confundo, tem tanto escritor bom…”. E a evocação mitológica seguia: Clara Nunes, Guignard, Telê Santana, Skank, Niemeyer, Anísio Santiago, Praça do Papa, Xapuri, Bolão, Mineirão e Pato Fu.

De Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso e Wander Pirolli, quase ninguém falava. Do Goma, 4:25, Thiago França, Black Josie, Indigestão, O Beltrano, Ciro Trevisan, quase que ninguém falava. Do duelo de Mcs, da Noite Branca, do Bairro Saudade, era um ou outro que falava.

Como era bonita a igreja vazia com uma lagoa de mentira em volta! Como era certo que os times de cidade foram perseguidos e subtraídos por todas as federações esportivas do Brasil! Ou ainda, como dizia um personagem mineiro do fulminante romance “Pornopopéia” (com acento!) de Reinaldo Moraes, “O Fernando Pessoa só não é melhor poeta por que não nasceu em Minas Gerais”. Rimou, gradou.

Mandavam ele comer fígado com jiló, confidenciavam-lhe os parentescos: “Vovó foi muito amiga de Risoleta”,“Henfil era garrado com papai”. E dá-lhe kaol, ora-pro-nóbis, macarrão na chapa e caldo requentado num bar gentrificado de Santa Tereza. Dá-lhe restaurante de PF sem tempero para a salada, banca de jornal fechada aos domingos e comerciantes que não aceitavam cartão de débito. Araújos, espetinhos, doces de leite, Jota Quest, melhor que tá teno, coleguinha, guerreiro, meu patrão.

Mas quem foi na Noite Branca mesmo? Quem viu as pinturas do Estevão Machado e do Kelson Frost ,as performances de Noemi Assumpção e Clarice Steinmiller? Quem conversou com a Simone da Ouvidor, quem leu Flávio Boave, Ricardo Aleixo, Ana Martins Marques, Eliza Caetano Alves? Quem sabia da cidade que o Wander Pirolli encontrou e o João Perdigão continua encontrando?

Doze anos depois ele não queria saber das doze ou trezes certezas da mineiridade. Queria a máfia de peças automotivas da Pedro II, os bares sem boemia da Savassi, a presunção neoliberal dos estúdios de tatuagem, a diamba malhada da Serra, o cartel dos postos de gasolinas, as cartas marcadas dos editais e o deslumbramento na rua Sapucai num fim de tarde. Queria saber de viver nos prédios de três andares, onde as pessoas fodiam, bebiam, escondiam o ouro e contavam vantagem. Queria a loucura de Campos de Carvalho, a viadagem enrustida dos irmãos Nava, os andarilhos do Cao Guimarães, o duelo de MCs e a cerveja gelada do Xoc Xoc.

Agora não tinha mais jeito, era também um autóctone. Pois ele já gostava de não gostar da cidade, e quando é assim não tem mais volta. Não adianta subir Bahia, cansou de descer Floresta. Na solidão da capital, saindo de um show vazio na autêntica, a saideira na pastelaria da esquina, que finalmente resolveu aceitar cartão, prometia-lhe uma outra cidade, ainda que tardia.

Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.