As veias abertas dos refugiados

Grupo Ponto de Partida estreia a peça "Vou Voltar", sobre a história de exílio do grupo de teatro mais antigo da América Latina, o El Galpón, durante a ditadura no Uruguai


por Lucas Simões

foto: Julia Marcier

As milhares de pessoas, incluindo crianças, mortas neste ano ao tentar entrar na Europa, na maior crise de refugiados desde a 2ª Guerra Mundial, “não podem ser resumidas a um simples caos pontual pela televisão”, afirma a diretora teatral e dramaturga mineira Regina Bertola.

“Os refugiados existem desde os hebreus e continuam se repetindo, seja nos imigrantes nordestinos discriminados no sudeste brasileiro ou em famílias separadas por ditaduras e colonizações. Percebemos que a humanidade não evoluiu. Mudamos a moda, alguns valores, avançamos na tecnologia. Mas permanecemos cultivando nosso principal problema: o outro, o que é diferente de nós”, diz.

O drama dos refugiados e exilados está estampado no espetáculo “Vou Voltar”, que Regina Bertola e o grupo Ponto de Partida, de Barbacena, trazem a Belo Horizonte somente nesta sexta-feira (18) e sábado (19), no palco do Teatro Bradesco (veja o serviço no final da matéria). Já o título, “Vou Voltar”, carrega a tristeza da perda de raízes. O fio condutor da peça é a história de resistência da companhia teatral El Galpón, a mais antiga da América Latina, fundada em 1949 e com atuais 68 anos de atividades ininterruptas.

A partir de 1976, o grupo uruguaio, famoso por sua defesa da democracia, ficou exilado por nove anos no México, durante a ditadura militar do país. No exílio, denunciou as violências do regime ditatorial em apresentações por 17 países, enquanto esteve impedido de atuar em sua terra natal, até 1984. Todos os bens e recursos do grupo foram confiscados pelo governo do primeiro ditador do regime, Juan María Bordaberry, incluindo o espaço próprio da companhia, a Sala 18 de julho, situada na principal avenida de Montevidéu, com capacidade para 800 pessoas.

À época, personalidades como Jack Nicholson, então presidente do Sindicato dos Artistas Americanos, declarou apoio público ao El Galpón, quando parte dos artistas foram detidos. Alguns deles passaram por torturas e ficaram até cinco anos presos, sem conseguir exílio. “Alguns ficaram no Uruguai depois que foram soltos. Mas os que conseguiram exílio, chegaram a se dividir uma época e estar em quatro continentes, ao mesmo tempo, apresentando espetáculos e denunciando a situação do Uruguai. Um artifício famoso era a apresentação da peça infantil ‘Los Cuates de Candelita’, toda de palhaços, numa linguagem bem lúdica, mas que no fim tinha uma mensagem política fortíssima contra a ditadura e a falta de liberdade”, destrincha a atriz Júlia Medeiros, do elenco do Ponto de Partida.

Da resistência, e das prisões e torturas, os cerca de 40 integrantes do El Galpón guardaram mais do que memórias coletivas de um exílio político e dolorido. Em quatro dias em Montevidéu, a companhia Ponto de Partida ouviu as vivências individuais que transformaram os artistas, seus laços familiares e afetivos. Uma amálgama pessoal que inspira toda a linha narrativa da dramaturgia do espetáculo. Como é o caso da história da atriz Amélia Porteiro, gestora cultural integrante do El Galpón desde 1973. Ela estava grávida quando foi exilada no México e, em nove anos no exterior, nunca desembalou por completo a mudança trazida do Uruguai.

“A história de resistência do El Galpón carrega um peso grande de rupturas, estranhamentos e acolhimentos na condição de refugiados. A Amélia conta que na casa dela tudo sempre ficou embalado em caixas. Só tiravam o básico, porque eles achavam que poderiam, a qualquer dia, voltar ao Uruguai com o fim da ditadura. É um sentimento muito forte, ainda mais ter um filho nessas condições. Foi por aí que decidimos compor os personagens. Não estamos representando a história de cada um deles, individualmente, mas os sentimentos e vivências múltiplas inspirados na história deles. Cada atriz e ator são vários refugiados”, completa Júlia.

Um dos marcos para os artistas do El Galpón foi o acolhimento na Embaixada do México no Uruguai, onde parte do grupo teatral morou por dois meses, enquanto aguardava a papelada burocrática para o exílio no México, convivendo com outros 200 artistas e pessoas em busca de refúgio. Uma delas era a então menina Marina Rodríguez, à época com 9 anos de idade, e até hoje atriz do grupo. “Ela não era atriz da companhia naquela época, era só uma criança. O pai estava preso pelo regime e a mãe não conseguia autorização para buscá-la. Marina foi exilada sem ser do El Galpón, mas, já no México, então com 17 anos, voltou a encontrar os amigos que tinha feito na embaixada. Participou da escola artística do grupo e está até hoje com eles”, relata a atriz Júlia.

foto: Julia Marcier

Adulta, Marina assinou o espetáculo “A Embaixada” pelo El Galpón, que resgata a história do embaixador Don Vicente Muñiz Arroyo, responsável pela proteção direta de centenas de artistas, escritores e intelectuais uruguaios exilados no México. “Muitos dos atores relatam os casos de solidariedade e afeto de Don Vicente. A Marina conta que dormia na biblioteca da Embaixada e, à noite, ele dedicava um tempo para mostrar livros que pudessem interessá-la e, ao mesmo tempo, distraí-la daquele horror. Além disso, Don Vicente buscou pessoalmente vários exilados, no carro do governo mexicano, considerado não-território uruguaio. Isso garantia que perseguidos pudessem chegar em segurança à Embaixada”, complementa Júlia.

Montagem

Todas essas memórias afetivas estão presentes em “Vou Voltar”, com 20 atores envolvidos em uma linguagem dramática e subjetiva sobre os refugiados, o medo, a perda da identidade, a violência e as rupturas socioculturais e imposições políticas. Para dar vida a esse retrato, a diretora Regina Bertola recorreu aos textos dos escritores uruguaios Eduardo Galeano e Mário Benedetti, dois dos maiores nomes da literatura da América Latina, que chegaram a viajar com o El Galpón durante o exílio.

“Os dois viveram a história do El Galpón, mas, além disso, viajaram com o grupo também fazendo denúncias não só do (regime instalado no) Uruguai, mas de toda a América Latina e dessa condição de ser refugiado. O Benedetti escreveu um texto exclusivo para o El Galpón montar durante o exílio. E o Galeano tem várias obras escritas enquanto estava refugiado, como ‘Dias e Noites de Amor e de Guerra’ (1978). No fundo, a peça fala de sentimentos tão humanos, que têm o poder de impactar a todos”, explica Regina.

O espetáculo conta com diversas canções latino-americanas, algumas compostas especialmente para a peça, sob direção musical e arranjos da dupla Pablo Bertola e Pitágoras Silveira.

Programe-se

“Vou Voltar”, do Ponto de Partida, está cartaz no Teatro Bradesco (rua da Bahia, 2.244, Lourdes) apenas nesta sexta-feira (18) e sábado (19), ambas as apresentações a partir das 20h. Os ingressos custam R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada). Para mais informações: (31) 3516-1370.