Atingidos pela lama da Samarco estão intoxicados
Em Barra Longa, moradores estão com altos níveis de arsênio e níquel no corpo. Apesar de não haver comprovação de relação causal entre a intoxicação e o maior crime socioambiental do país, a Procuradoria Geral da República em Minas Gerais pediu o monitoramento de metais pesados na região
Por Lucas Simões
Publicado em 29/03/2018
No primeiro relatório sobre a saúde dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, elaborado pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade, com exames realizados na USP, 11 moradores do distrito de Barra Longa, incluindo duas crianças, foram diagnosticados com níveis alarmantes de metais pesados nos corpos. O relatório aponta que, devido à pequena amostragem de participantes e à ausência de estudos mais profundos sobre contaminações no solo e na água da região, não é possível comprovar se a lama e os rejeitos da mineradora Samarco são a causa das contaminações. Barra Longa, juntamente com Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, são as cidades mais próximas da barragem que se rompeu, em novembro de 2015, e foram atingidas pela lama em sua malha urbana.
A iniciativa de fazer exames toxicológicos nos atingidos surgiu por meio do edital “#RiodeGente”, coordenado pelo Greenpeace, e que arrecadou R$ 450 mil para as ações com a realização de shows beneficentes de artistas como Caetano Veloso, Milton Nascimento e Criolo. A partir disso, entre outubro de 2016 e janeiro de 2017, o Instituto Saúde e Sustentabilidade, constituído pela sociedade civil, realizou uma pesquisa com 507 moradores de Barra Longa, diante dos relatos frequentes de sintomas como diarréia, dor de cabeça, queda de cabelos e manchas pelo corpo, além de queixas de problemas respiratórios.
As amostras de sangue dos 11 moradores selecionados, com idades entre 2 e 92 anos, foram coletadas em março do ano passado e analisadas pelo Laboratório de Toxicologia e Essencialidade de Metais da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP). O resultado só saiu no final de fevereiro deste ano devido a um problema com aparelhos técnicos do laboratório, segundo a USP.
Foi analisada a presença de 13 metais. Todos os 11 moradores apresentaram níveis altos de níquel, em dez a quantidade de zinco estava abaixo do recomendado, e em oito deles foi apontado nível elevado de arsênio. Segundo a pediatra Aline Bentes, da Rede de Médicos Populares e professora do departamento de Medicina da UFMG, que presta apoio aos atingidos, os metais pesados, em excesso ou ausência, podem provocar doenças graves a curto e longo prazo.
“O arsênio é o mais tóxico, causa doenças renais, hepáticas, hematológicas, pode gerar psicose, demência e delírio. Já o níquel gera problemas dermatológicos, como urticárias. Muito provavelmente, a diminuição do zinco, que é vital para a síntese de carboidratos e proteínas, aconteceu porque essas pessoas também tiveram contaminação com níquel. E o níquel reage com o zinco e elimina o zinco do corpo”, explica Aline.
Um dos casos mais graves de contaminação é o de Sofya Marques, que tinha apenas nove meses quando começou a apresentar os primeiros sintomas, um dia após Barra Longa ser inundada pela lama. Hoje, aos três anos, Sofya tem dez vezes mais níquel no corpo do que o limite máximo tolerável. Os exames de sangue dela acusam 12,78 microgramas por litro de níquel no sangue, sendo que o intervalo permitido pelo Ministério da Saúde é de 0,12 a 3,9 microgramas.
Segundo a mãe de Sofya, Simone Silva, nem mesmo vivendo a base de antialérgicos e corticóides os sintomas da filha desapareceram. “Um dia depois que a lama chegou, ela já começou a ter diarréia. A Sofya vai e volta da escola carregada porque sente tanta dor nas pernas que não consegue andar. As manchas e feridas no corpo não desaparecem e o cabelo dela não para de cair. E nem os remédios dão conta. Ela só melhora quando está fora de Barra Longa. Os médicos já falaram para a gente mudar de cidade, que em Barra Longa ela não ficará boa. Como eu vou pensar que isso não é a lama? E como eu vou abandonar a minha cidade?”, diz Simone.
Um caso similar é o da adolescente Tainara Barreto, de 16 anos, que registrou altos níveis de arsênio no sangue. A reportagem não teve acesso ao laudo médico dela, mas, segundo a mãe da jovem, Luciene Maria Barreto, quando a filha foi realizar os exames em São Paulo, as dores de cabeça, a diarréia e as manchas no corpo da jovem começaram a desaparecer. “Parece que foi só ela respirar outro ar e ficar longe da lama que começou a melhorar. Em Barra Longa, ela fica quatro dias com dor de cabeça e dois sem. Ela está no segundo ano do ensino médio e não fez uma prova nesse ano porque não dá conta de ir à escola”, diz Luciene.
Análises de metais pesados
Não existem estudos conclusivos que apontem uma relação direta causal entre as doenças e sintomas e a lama da Samarco. Um relatório técnico do GIAIA (Grupo Independente Para Avaliação de Impacto Ambiental), divulgado ainda em 2015 (leia o estudo completo neste link: https://goo.gl/y33b9H), pouco após a avalanche, apontava contaminação das águas do Rio Gualaxo, em Barra Longa, principalmente por arsênio.
O relatório também mostra contaminações fora do trecho atingido pela lama, o que levanta hipóteses de que, ao menos em algumas áreas, pode ter havido contaminação anterior ao estouro da barragem de Fundão. O relatório também aponta que os 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos liberados da barragem “varreram” metais sedimentados nos leitos para as margens de vários rios, sendo necessários estudos ampliados para determinar a origem das contaminações.
Diante da ausência desses estudos até o momento, a Procuradoria da República de Minas Gerais enviou ofício às Secretarias de Saúde de Minas Gerais e de Barra Longa, e também à Fundação Renova, exigindo a realização de um estudo que possa monitorar a contaminação por metais pesados no solo e na água da região.
O Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais também enviou, nesta semana, um ofício ao Secretário de Estado de Saúde, Nalton Sebastião Moreira da Cruz, e ao governador Fernando Pimentel pedindo que o Estado assuma a responsabilidade das pesquisas e acompanhamentos médicos, de forma a garantir a isonomia do processo.
“Nós vamos pedir que o Estado assuma todo esse processo porque precisamos da garantia de que as análises de água e solo, a confirmação de uma possível contaminação, e todo o tratamento e acompanhamento do quadro de saúde das populações atingidas sejam realizados de maneira independente. Não pode ser a Renova a realizar esse serviço”, disse Ederson Alves, presidente do Conselho Estadual de Saúde.
Destino da lama
Barra Longa, distante 60 quilômetros de Mariana, não foi totalmente arrasada como Bento Rodrigues, mas teve sua parte urbana tomada pela lama do maior crime socioambiental ocorrido no Brasil, que matou 19 pessoas e percorreu 660 quilômetros pelo Rio Doce, atingindo 39 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo. Seus seis mil moradores permaneceram na cidade durante os trabalhos de recuperação, ao contrário de Bento Rodrigues, onde todos foram removidos. Por iniciativa da Fundação Renova, parte da lama foi aterrada no Parque de Exposições, ainda enquanto nove famílias moravam na área. Outra parte da lama foi misturada com cascalho e areia e transformada em calçamento de várias ruas do distrito.
“E teve ainda uma parte da lama que virou pó e foi se espalhando pela cidade inteira. Fizeram várias obras e mexeram muito a lama, ao invés de remover tudo”, diz Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa e repórter do Jornal A Sirene, criado como veículo de comunicação dos atingidos.
Fundação Renova responde
Em resposta, a Fundação Renova, que trata da reparação e recuperação dos danos causados pelo rompimento da barragem, informou, por meio de nota da assessoria de imprensa, “que a entidade recebeu com atenção o estudo realizado pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade em Barra Longa e, apesar de a pesquisa não afirmar que a presença de metais no organismo dos moradores é consequência do rompimento da barragem, a Fundação entende que é seu compromisso aprofundar na questão por meio de novos estudos”.
Segundo a Renova, a partir do segundo semestre de 2018 será iniciado um estudo com objetivo de identificar os motivos de contato da população com metais pesados e apontar as implicações dessa contaminação na saúde das pessoas. Além disso, a Renova informou que um especialista em toxicologia será contratado para elaborar protocolos específicos e acompanhar os médicos em Barra Longa.
Como ação já em curso, a Renova informou que “segue monitorando a qualidade do ar no município e os resultados atuais estão dentro dos parâmetros exigidos pela legislação brasileira. Desde fevereiro de 2016, duas estações de monitoramento automático estão instaladas em Barra Longa. O monitoramento automático fornece 24 resultados por dia por parâmetro, totalizando 5.760 medições por mês. Em nenhum deles há dados que comprometam a saúde das pessoas das áreas de abrangência dos monitoramentos”.