Baronesas descalças
A vez e a voz das mulheres na periferia e no cinema mineiro, um texto sobre o filme Baronesa de Juliana Antunes
Por Christiane Tassis
Publicado em 25/06/2018
A rosa do povo despetala-se, dentro e fora das paredes de tijolos expostos onde as pessoas compartilham colchões, segredos, sonhos, latões de cerveja. A menina dança, dentro e fora da fachada da casa pintada com a bandeira do Brasil, desbotada. Nos salões de beleza, pulsa a beleza do afeto, da sororidade.
No filme “Baronesa”, uma guerra entre traficantes está prestes a eclodir e as mulheres apresentam suas armas: a dança, a conversa, o encontro, a sexualidade livre, o desejo quase sobre-humano de ser feliz, em meio a um contexto de extrema privação e violência. Lugares onde o Estado não chega nem chegará. Vidas que a classe média acastelada em seus muros físicos e metafóricos só verá se assistir a este filme, estreia potente da mineira Juliana Antunes, 29 anos, seis deles dedicados à “Baronesa”. Um olhar feminino sobre mulheres de periferia, uma visão de dentro, sobre o que para a maioria de nós é o “fora”. Não se sabe o que é ficção ou realidade: ali, é tudo verdade.
Com influências de Pedro Costa, Chantal Akerman e do cineasta cambojano Rithy Panh, de “Papel não embrulha brasas”, o filme vem conquistando prêmios nacionais e internacionais desde que foi premiado em sua estreia no Festival de Tiradentes, em 2017. Um filme de mulheres, com mulheres, feminista em sua essência, mas sem discursos literais. São mulheres que não se conformam com sua condição, que transgridem cotidianamente, sem pensar em padrões estabelecidos: o fazem naturalmente, ao exercer o controle de seus corpos e desejos. Mulheres que fogem da guerra, mas não fogem da luta. Um filme pungente, que revela algo que não se vê no cinema brasileiro: a ótica das mulheres na favela. A favela do tráfico e da violência é o pano de fundo, mas o que está em foco é a subjetividade feminina, os afetos, as alianças.
Andreia é uma manicure que vive no Bairro Juliana. A guerra paira como a espada de Dâmocles sobre sua cabeça e ela quer ir embora para Pasárgada, a casa que está construindo no bairro Baronesa. Leidiane espera o marido sair da cadeia enquanto cuida dos quatro filhos, que sonham com a volta do pai, o super herói que os salvará dali.
Andreia conta cada centavo que ganha no salão. Sabe quanto custa cada pedaço de sua Pasárgada: tijolo, porta, janela. Ainda faltam 960 reais. “Vai ter que fazer muita unha, amiga”, diz Leid. Andréia ri. Vai conseguir. Aprendeu sozinha, com a vida, que mulher tem que se garantir. Seus sonhos estão longe do das cinderelas de classe média. Sabe que nunca será amiga do rei nem confia em príncipes. Foi uma dessas crianças que você vê pelas ruas vendendo bala, catando papel, engraxando sapato, dormindo na rua, e nem imagina como sobrevivem e se tornam o que são. “Homem é um bicho estranho”, diz, ao contar que o padrasto a estuprava, aos onze anos. “Ele veio arrancando minha calcinha para enfiar a rola dentro de mim, eu enfiei a faca bem no pescoço. Voou sangue para todo lado. Não foi bonito não, mas como uma menina de onze anos pode se defender?”
Andreia não acredita no amor. “Eu não amo ninguém, tenho pena de quem ama. Quando amei, o cara morreu, graças a deus que ele morreu, mas peguei de lição, bloqueei meu coração, este trem de amor para mim é ilusão”. Sentada em tijolos empilhados em seu salão de beleza, ela aconselha à cliente que faz as unhas: “Você vai ficar ridícula quando casar, você não vai se arrumar mais, seu tempo vai ser tudo pra filho, para marido. Casar muda o psicológico”.
Mas Andreia acredita no prazer. O sexo é também uma forma de libertação e independência. “A gente mulher pode ser garantir à vontade, sem trazer mais um menino pro mundo. Faz amor com você própria”, diz, mostrando os dedos: “Cinco dedinhos: profissionais do sexo! Tem que ter a cabeça aberta”.
No colchão com os quatro filhos, Leidiane penteia os cabelos da filha pequena. A menina de cinco anos quer cuidar do cabelo não por vaidade, mas para vender para a mãe tirar o pai da cadeia. Leidi acha graça. Os filhos pequenos também querem vender o cabelo, mas ela explica: os de homem são curtos, não valem nada. Os meninos se lamentam.
Com o amigo “Negão”, elas se divertem. Negão usa boné da Nike, tornozeleira eletrônica e tem uma nota de um dólar, dos “Station”. Na caixa d’água transformada em piscina, tomam cerveja, falam sobre a vida, o sexo, a guerra. Negão quer entrar na guerra. Andreia tenta dissuadi-lo. “Será que a gente sente dor na hora que morre?” Negão acha que não vai morrer de primeira, não. Testa um colete à prova de balas, testam armas. O gesto de empunhar armas se faz presente até na coreografia do funk. A alegria se mistura com a violência, como se não fosse possível evitar nem uma coisa nem outra.
Em um momento muito próximo da epifania, Andreia e Leid cantam “Deus olhai meu povo da periferia”, quando são interrompidas por um som mais alto que suas vozes. São tiros. Reais? O que era aura (imagem longínqua) torna-se rastro (imagem próxima). A sensação real do terror daquele cotidiano assoma-se ao espectador do cinema, que pula da cadeira. Nas ruas sem saneamento, Andreia e Leid amarram fitas pretas nos postes de luz, que lembram cruzes altas.
“Baronesa” não procura a redenção nem a catarse. A vida segue, num drama sem lágrimas, só o engolir seco da dor e seguir adiante do jeito que dá. Em sua casa pela metade, Andreia prepara a sua argamassa, recheia os tijolos. Sentada no muro de sua Paságada em construção, ela fuma seu cigarrinho e toma sua cerveja, contemplando com olhos firmes o horizonte, o morro verde ao redor, o silêncio. Em cima dos telhados de zinco, Leidiane observa o seu mundo, o mar de barracos de tijolos expostos e telhados de zinco, enquanto uma criança negra dorme sozinha e o futuro a espreita.
“Baronesa”: um filme de guerrilha em todos os sentidos.
“Baronesa” é fruto de um processo de escuta atenta e intensa. E também de muita luta. Filme de guerrilha em vários sentidos: das personagens, da equipe. Consumiu sete dos 29 anos de Juliana Antunes. Mineira de Itaúna, veio para Belo Horizonte há uma década para estudar cinema na UNA.
A ideia surgiu quando observou bairros com nomes femininos: Juliana, Jaqueline, Kátia, Regina, Letícia, Suzana, estampados nas linhas de ônibus vermelhos que conduzem à periferia de Belo Horizonte. Mulheres-destinos. Como seria a vida das mulheres que viviam ali?
Com duas colegas do coletivo Pepeka Pictures – Marcela Santos, que estudou som para fazer o filme e Giselle Ferreira, assistente de direção, que também nunca tinha desempenhado a função antes, começaram a fazer um documentário para a faculdade.
Aos poucos, e sem dinheiro, Juliana foi se aproximando daquele universo. Conheceu os bairros, mas se interessou principalmente pela Vila Mariquinha, favela entre os bairros Juliana e Jaqueline. Foram muitas tentativas de aproximação, sem sucesso: muitos na comunidade desconfiavam que ela era da polícia. Até que começaram a colar cartazes ao lado de salões de beleza, explicando que procuravam personagens para um filme. E foi quando encontraram Leid e Andreia.
Em 2013, o projeto foi vencedor do Edital Filme em Minas, para curtas e médias. “Baronesa” foi feito com os 50 mil reais advindos do edital: o que era curta virou longa. Porém com os mesmos recursos. Juliana trabalhou por seis anos praticamente sem remuneração. Alugou um barraco de 30 metros quadrados no Bairro Juliana e ali viveu, sozinha, por seis meses. “Justamente o bairro que eu hesitava em filmar, por levar meu nome”, conta ela. A guerra do tráfico não estava prevista no roteiro: surgiu no meio da pesquisa e o filme tomou outro rumo. Roteiro, aliás, não houve propriamente: durante a imersão, Juliana detectava situações e sugeria tópicos para que as personagens representassem, à sua maneira. A vida ia invadindo o filme e vice-versa.
Nesse meio tempo, Juliana trabalhava como assistente de direção no filme “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans, quando conheceu as produtoras Marcella Jacques e Laura Godoy. Juntas criaram a Ventura, que se tornou a produtora de Baronesa. Tentaram editais de finalização, sem sucesso. “Acho que a maior dificuldade para a gente foi fazer com que um grupo de mulheres inexperientes tivesse o respeito e que as pessoas acreditassem no projeto”, conta Marcella Jacques.
Foi quando Affonso Uchoa entrou na montagem. Não por acaso Affonso é creditado como “guru espiritual” do filme. Rita Pestana se juntou ao projeto, para fazerem a montagem a partir de um material bruto de 60h de filmagem. Juliana destaca a montagem como fundamental para a existência do filme. “Entreguei uma bacias de miçangas e eles fizeram um colar”, diz.
Foram muitas mulheres que se apoiaram para fazer com que o filme acontecesse, a equipe é majoritariamente feminina, mas “Baronesa” também contou a parceria e o afeto de homens realmente amigos, que acreditaram e investiram no filme. A Filmes de Plástico entrou como co-produtora, investiu na finalização, com a parceria também de Pedro Durães, que finalizou o som a partir do trabalho de Marcela Santos. A Katásia Filmes cedeu a ilha de edição, possibilitando o longo trabalho de montagem, que levou quase um ano.
Baronesa estreou no Festival de Tiradentes de 2017, levando o prêmio de melhor filme Mostra Aurora e Prêmio Helena Ignez Destaque Feminino (Direção de Fotografia – Fernanda de Sena). O júri destacou, entre outras qualidades, “a afirmação da alegria e do prazer em meio aos desastres da experiência social brasileira; pela retenção da violência do extracampo; pelos riscos da mise en scène, ao assumir um gesto fílmico na iminência de desabar.”
Logo após “Baronesa” conquistou três prêmios no prestigiado festival FID Marseille: Melhor Filme pelo Júri Popular, o Prix Marseille Espérance e o Prix Renaud Victor. A partir daí, o filme ganhou projeção internacional. Correu o mundo em mais de 50 festivais de cinema, como o Forumdoc, em BH; Reencontres Internationales de Montréal, no Canadá; Ambulante Documentary Film Festival, no México; e Punto de Vista International Documentary Film Festival, na Espanha, sendo premiado no Indie Lisboa e no Festival de Havana.
Juliana e as meninas da “Ventura” preparam agora seu próximo longa, Bate e volta Copacabana, sobre excursões de mineiras para conhecer o mar, no Rio de Janeiro. Meninas marginalizadas da periferia, lésbicas jovens, que perdem o ônibus propositalmente ao chegar ao Rio. Laura Godoy trabalha num filme sobre a passagem de Orson Welles por Ouro Preto. Marcella Jacques batalha para viabilizar o longa de animação “Orquestra vazia”, da diretora belo-horizontina Maria Leite, via editais.
O sucesso de Baronesa é mais uma amostra da necessidade de mais políticas públicas para viabilizar o trabalho de produtoras de menor porte e corrigir a disparidade histórica entre homens e mulheres no cinema.