Big Brother & the Holding “Companies”
Por João Gualberto Jr.
É possível afirmar que, desde a consolidação da hegemonia global dos Estados Unidos, ao fim da II Guerra Mundial, a influência dessa federação sobre a América do Sul é ostensiva e percebida por ciclos políticos vivenciados pelas nações sul-americanas (no que diz respeito à porção Norte da América Latina, em especial o México, a relação de forças com os EUA é bem mais antiga, próxima geograficamente, conflituosa e, portanto, mais complexa).
Após a “era de ouro” do pós-guerra, o acirramento da Guerra Fria com a União Soviética, principalmente em decorrência da Revolução Cubana de 1959, levou os Estados Unidos a adotarem uma política mais firme na parte Sul do continente. Já não resta questionamento sobre o papel da CIA e da diplomacia de Washington nas instaurações (e no suporte subsequente) dos regimes militares nos países do chamado Cone Sul: a documentação que atesta a Operação Condor no Brasil, no Chile, no Uruguai e na Argentina, confidencial no período, é vastíssima e disponível em vários livros, desde os publicados na década de 1970 até os mais recentes, de Flávio Tavares e a série sobre a ditatura de Elio Gaspari, só para ficar em alguns.
O processo de abertura dos governos militares também se deu de forma sincronizada, o que atestou o desinteresse norte-americano pela perpetuação dos regimes autoritários e a consolidação dos EUA como “a” potência global – a União Soviética iria se dissolver pouco tempo depois. Fato é que pareceu não convir, ou não ser mais necessária, a intervenção firme por meio de agentes militares indiretos governando a América do Sul, o que, definitivamente, não deve ser interpretado como enfraquecimento da influência ou abandono dos instrumentos de controle.
O que se evidenciou na região Sul no período de pós-redemocratização, mais ou menos nos últimos 30 anos, são três faces dessa relação geopolítica: a alternância entre ciclos de governos mais liberais/conservadores e outros mais intervencionistas/populares/populistas; a aparente coincidência entre esses ciclos políticos e econômicos (ainda que com alguma defasagem) globais e regionais; e a permanência da presença dos Estados Unidos como ator nessas flutuações políticas.
Para um posicionamento histórico, estes são alguns marcos cronológicos mais ou menos nítidos. Coube aos primeiros governos democráticos, entre o fim dos anos 80 e o início dos 90, lançar as bases institucionais das repúblicas em suas novas fases: conduzir a criação de constituições, implantar sistemas partidários e eleitorais e lidar com os esqueletos nos guarda-roupas. Os primeiros presidentes originaram-se de movimentos que se levantaram contra as ditaduras em seus países, mas dificuldades econômicas internas, principalmente no Brasil e na Argentina, pesaram contra suas gestões. O quadro nefasto de hiperinflação com forte desvalorização cambial combinada a recessão abriu espaço à ascensão de plataformas mais fiscalistas.
FHC no Brasil, Menem na Argentina e Lacalle no Uruguai (a prevalência no Chile de sucessivos governos da Concertación é exceção) foram eleitos na primeira metade da década de 1990 para “arrumar a casa”, compondo coalizões mais à direita. Ainda que a questão inflacionária tenha sido administrada, as mazelas sociais se avultaram, com desemprego e aumento da desigualdade de renda. O foco estatal mais liberalizante e privatista e menos focado em programas universais de bem estar atingira seus estertores por volta de 2000.
Foi no início do novo milênio que uma onda vermelha varreu a América do Sul: chegavam ao poder governos populares que prometiam investir em justiça social por meio de políticas públicas abrangentes, promoção de grupos historicamente excluídos e mais abertos à participação democrática. Além de Lula, Kirchner (Argentina), Lagos-Bachellet (Chile) e Vázquez-Mujica (Uruguai), elegeram-se Palácio-Corrêa (Equador), Morales (Bolívia) e Chávez (Venezuela). Essas administrações, mais intervencionistas, desenvolvimentistas e à esquerda, beneficiaram-se do maior boom econômico global das últimas décadas, impulsionado pela China, com o qual coincidiram. A alta demanda por commodities beneficiou o saldo de transações correntes, favorecendo a valorização cambial e sustentando os programas internos e os próprios governos.
Isso até estourar a crise financeira de 2008, cujos efeitos ecoam até hoje. A bolha estourou, o ritmo da locomotiva retraiu-se e os vagões mais detrás se viram obrigados a frear. Ficaria difícil preservar a estrutura de bem estar social nas economias em desenvolvimento que, historicamente, são rigidamente procíclicas: só se investe mais em promoção, previdência e assistência social quando se tem reservas. Em 2010, Piñera rompeu duas décadas de governos socialistas e cristãos no Chile; em 2015, após muito patinar, Cristina Kirchner é apeada da Casa Rosada pelo liberal Mauricio Macri. No Brasil, se a eleição de Dilma Rousseff foi recebida como um acidente indigesto pelos conservadores, sua reeleição, em 2014, se tornou inaceitável. Tanto que não se aceitou.
A crise política no Brasil, que teve o golpe de 2016 como um de seus principais capítulos, revelou muita coisa. Ela tem como propulsor um contragolpe dos mais bem concertados da história, promovido pelas elites nacionais com o patrocínio (financeiro e intelectual) de agências norte-americanas. A hipótese mais aventada para justificar o golpe é simplória e arriscada: não fosse a descoberta e a viabilização econômica da produção do petróleo das camadas pré-sal, não estaríamos no buraco em que nos encontramos. “O diabo pôs o petróleo no México”, afirmou certa vez Vicente Fox, ex-presidente do país de Zapata.
Sobre os recursos naturais do território brasileiro, sejam minerais ou agrícolas, o interesse dos Estados Unidos transcende a abertura para que companhias privadas com algum capital norte-americano (ou até sem) explorem e faturem com eles. Muito mais: o objetivo é embargar que o Brasil, a Argentina, o Uruguai, o Chile, a Colômbia, a Venezuela etc. internalizem resultados econômicos e os convertam em desenvolvimento social e político, emancipem-se no cenário global e subam algum patamar na divisão internacional do trabalho. As potencialidades vislumbradas por trás do petróleo do pré-sal e a participação destacada nos Brics – um bloco que demonstrava ser capaz de se deslocar do espectro da OCDE – foram interpretadas por Washington como um risco à preservação de sua influência sobre o maior país do Sul do continente.
São vastas as comprovações da parceria estratégica entre companhias privadas e o Departamento de Estado estadunidense. Um exemplo é o material vazado pelo Wikileaks que revelou a bênção da embaixada dos EUA no Brasil ao acordo tácito entre José Serra, o PSDB e a Chevron. O então candidato tucano à Presidência prometera à petrolífera norte-americana, em troca de apoio, alterar a legislação de exploração do pré-sal caso fosse eleito em 2010: claro, abrindo concessões ao capital estrangeiro. Atuando nos mercados periféricos sul-americanos, essas grandes empresas parecem agentes indiretos e ocasionais do Departamento de Estado, garantindo, em troca da expatriação de lucros, a preservação da hegemonia regional dos EUA.
A operação da Lava Jato, no que tem de meritória, na mesma medida criou efeitos deletérios à economia brasileira. As indústrias da construção pesada e, principalmente, a energética se dissolveram com a atuação da força-tarefa. Sabe-se da cooperação entre o FBI e a Justiça dos Estados Unidos, de um lado, e com o Ministério Público, a Polícia e a Justiça federais do Brasil, do outro. Pois bem: totalmente descapitalizadas, como a Petrobras e as empreiteiras nacionais poderiam tornar viável a produção em larga escala de petróleo retirado das camadas pré-sal? Com tal justificativa mais do que plausível, leiloe-se e conceda-se a exploração.
Por fim, sobre a política, o site The Intercept apenas demonstrou aquilo que já se suspeitava, com uma reportagem brilhante. Instituições públicas dos EUA têm participação no atual estado convulso que passou pelo impeachment – e também, por exemplo, pela eleição de Macri na Argentina. De que forma? A matéria apresenta o protagonismo do Atlas Network, instituto não-governamental de propagação do ideário liberal. No Brasil, ele é parceiro e (eufemisticamente) modelo de inspiração para alguns dos mais emergentes grupos de estudo, emanação e culto ao liberalismo. Não foi à toa que esses “think tanks” vicejaram nos últimos anos, alimentado pela energia de estudantes voltada contra o Estado e a “violência” dos impostos e em defesa da mais completa autonomia individual.
Entre os financiados e tutelados brasileiros pelo Atlas está o MBL, cuja atuação comunicacional e militante foi muito importante para a destituição de Dilma. Acontece que o Atlas, por sua vez, é financiado pelo National Endowment for Democracy (NED), ou Fundação Nacional para a Democracia, braço privado sustentado pelo Departamento de Estado dos EUA. Em resumo, hoje, de maneira mais sutil e discreta do que há décadas, mas não menos efetiva, a influência norte-americana na América do Sul, para manutenção de sua hegemonia política, se dá por uma rede de think tanks liberais presentes em todos os países da região e que, indiretamente, são sustentados financeira, intelectual e estrategicamente pelo governo de Washington.
O processo de edificação da ideia depreciativa do Estado, de sua ineficiência inconteste no manejo de bens coletivos, de sua atuação arbitrária em prejuízo das liberdades individuais, de sua porosidade inata ao controle por facções e à corrupção, todo esse ideário, enfim, refloresce de tempos em tempos e compõe o ambiente de onde emergem, a cada ciclo, governos mais à direita, isto é, menos intervencionistas quanto à execução de políticas econômicas e sociais. Desta feita, contudo, graças à semeadura persistente e abrangente, à sutil catequese libertária, a doutrina do antiestatismo demonstra firmeza e altura de um caule de girassol (voltado para o Norte claro). Qual o objetivo? Seria o interesse na emancipação plena do brasileiro como indivíduo?
A cada fase liberal dos ciclos políticos no Brasil, assistimos à abertura para o capital privado, incluindo o estrangeiro (é bobagem falar que dinheiro tem pátria nestes tempos), dos chamados setores estratégicos da atividade econômica. Os liberais entendem que essa caracterização também é bobagem. Mas, pela perspectiva desenvolvimentista, eles são tidos como estratégicos porque, em tese, se bem manejados e direcionados, podem contribuir na promoção de mudanças positivas no conjunto da sociedade por seu efeito multiplicador. São setores infraestruturais, como o energético, o de insumos minerais básicos, de transportes, comunicação, defesa, entre outros. Entendendo ser papel de Estado a promoção do corpo social por meio da condução do desenvolvimento econômico, seria ele o mais indicado a administrar esses setores por meio do direcionamento de seus resultados.
A privatização das estatais dos segmentos estratégicos ocorreu no governo Fernando Henrique e se repete, agora, a toque de caixa, na gestão Temer. É certo que a insurgência indignada de uma ralé empobrecida – e também mobilizada por sindicatos de trabalhadores e outros movimentos sociais – reconduzirá aos palácios da América do Sul coalizões mais populares e afeitas ao intervencionismo de esquerda. É isso o que indica o fim do roteiro das fases liberalizantes, a se repetir na região em menos de uma década.
Entretanto, ciclo após ciclo, de privatizações de minerais, sistemas elétricos, teles, correios, siderurgia básica, portos, rodovias etc., etc., vão se escasseando os instrumentos estatais de que poderiam se dispor as gestões desenvolvimentistas para, de fato, promover um desenvolvimento médio. Assim, nosso locus histórico na divisão internacional do trabalho se enrijece e ganha feições de cárcere continental. Se almejamos a liberdade para todos, as veias do Sul seguem abertas, num jorro livre.
Política
João Gualberto Jr.
Jornalista, economista e cientista político.