Big Data: o candidato-produto e o eleitor-consumidor


Por João Gualberto Jr.

 

“Este aplicativo tem acesso a: identidade; agenda de contatos; localização; compras; comunicações de rede; armazenamento etc., etc., etc.” Esse informativo, alguma vez, já foi capaz fazer você pensar duas vezes antes de baixar um aplicativo em seu celular? Honestamente… Eles avisam, e o combinado não sai caro. Ou sai?

E aquele “quiz” divertido que você responde com avidez e cujo resultado compartilha depois, inocentemente? “Que escritor brasileiro você é?”, “Qual personagem de Star Wars você é?” ou “Com qual revolucionário você mais se identifica?”. Assim, vamos abrindo nosso coração e contando nossas intimidades para o Facebook, o Instagram, o Twitter, o Snapchat e qualquer outra rede social. Esses “confidentes”, porém, não têm boca de túmulo e passam para frente o que você conta: é só pagar, ou nem isso, que nossas informações vão para empresas que estão à caça de nosso dinheiro. E do nosso voto.

Dados são o petróleo do século XXI, e valem muita grana, cada vez mais, e igualaram em definitivo o papel de consumidor ao de eleitor. Cada ingresso em uma mídia social deixa rastros e, a cada passo, deixamos nossa pegada impressa na areia. Ao longo de anos, podemos ser traduzíveis pelos milhões e milhões de grãos de areia por onde passamos com “likes”, “retweets”, compartilhamentos e afins. Se os grãos que nos tornamos valem muito dinheiro é porque existem especialistas que sabem ler perfis e preferências nesse banco de areia. Não são videntes vislumbrando o posicionamento dos búzios ou imagens na borra de café ao fundo do copo; são profissionais qualificados munidos de softwares que processam dados em busca categorização de perfis e padrões de comportamento.

Essa é mais ou menos a lógica do Big Data, método de mineração e análise de dados que fincou pé no campo da propaganda e do marketing e alterou o modo estratégico da captura do consumidor, com peças e ações cada vez mais segmentadas e criando uma tendência à customização da publicidade, o “microtargeted advertisement”.

Claro, o marketing eleitoral não desperdiçaria esse tipo de abordagem, que é um tanto a cara do nosso tempo de múltiplas interconexões remotas em contraposição a um atomismo social. A estratégia é seduzir o eleitor, jogando com as preferências e preconceitos dele, que, inadvertidamente, tecla ou dá um refresh em sua timeline pelo smartphone, sem perceber de quem é a mão estendida que lhe oferece um doce em forma de discurso. Os peixes ainda são fisgados pela boca.

Os resultados do referendo do Brexit, em que a maioria dos britânicos decidiu dar um farewell à União Europeia e da eleição vitoriosa de Donald Trump, nos Estados Unidos, (ambos em 2016) já demonstraram atuação decisiva desse tipo de ferramenta digital de marketing. A empresa que atuou na campanha do magnata republicano, sediada no Reino Unido, vangloria-se de ter revertido rios de votos bombardeando propaganda pró-Trump e anti-Hilary, especificamente e diretamente, a 20 milhões de norte-americanos. Na mosca! Essa mesma companhia de marketing desembarcou em São Paulo e, de lá, em sociedade com uma agência brasileira, já está lendo as areias em que pisamos para interpretar nossas pegadas. Para onde vamos?

Não é de hoje que uma visão pessimista do processo eleitoral prefere igualá-lo a um mercado de bens. Nos anos 40 e 50, pensadores como Schumpeter e Downs, classificados como elitistas, já viam a disputa por votos nas sociedades de massa amparada por procedimentos hipócritas em que os grupos de elite disputavam entre si o poder ludibriando o povo e manipulando sua participação. O óleo dessa máquina é a propaganda, que vende candidatos como marcas de sabão em pó ou automóveis. E esses candidatos prometem entregar aquilo que o consumidor deseja comprar.

A democracia

Novas tecnologias não são boas ou más por concepção; o fim de seu uso e a intenção de quem usa é que são qualificáveis. Foi assim com o fogo, a faca e mesmo a pólvora. A presença de robôs hipervocalizadores nas redes sociais e a mineração de dados tendem a desaguar, sim, na conformação quase perfeita entre campanha eleitoral e mercado de bens pelas características da interface entre produto e consumidor: a propaganda. Mas, para o que temos de democracia, essas novas ferramentas de comunicação e marketing representam ameaça?

Joscimar Silva acredita que sim, mas pela forma como elas são mobilizadas pelos atores políticos, como resguardado acima. O doutorando em Ciência Política pela UFMG pesquisa os influenciadores políticos digitais e integra o Grupo de Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral e o Centro de Pesquisas em Política e Internet, ambos da UFMG. O pesquisador alerta para o suicídio que os políticos estão cometendo ao contribuírem para a erosão do sistema democrático brasileiro, e o marketing digital é uma das frentes preferenciais a propagar esse discurso de autodestruição. Um marco é a campanha presidencial de 2014, na visão dele. “Na era da pós-verdade, o vale-tudo tende a desestabilizar o sistema. O debate deixa de existir e dá lugar ao ataque a pessoas, à desconstrução de reputações, o que, na verdade, desconstrói a democracia”, afirma.

Joscimar lembra que a democracia requer a confiança em seus procedimentos, mas a tônica principal da propaganda política no Brasil, atualmente, é o enfraquecimento do papel dos partidos e das instituições, de forma geral, criando um sistema cada vez mais personalista. “Podemos chegar ao ponto em que o cidadão vai entender que a eleição não é mais importante”, vaticina.

Pensar as decisões políticas como expressão da vontade consciente de indivíduos e, portanto, da sociedade é uma hipótese enfraquecida se considerarmos o peso da propaganda em uma época de performance política, de profusão de notícias falsas e de economia de atenção nas arenas de comunicação digital. A emoção é quem fisga o voto do “consumidor”, mais do que nunca, e o interesse público vai pelo ralo, como alertaram os filósofos elitistas há quase um século.

No contexto brasileiro, a situação é ainda mais preocupante, vista a demonização da atividade pública, indiscriminadamente, e a acídia que dela decorre. E o pesquisador lembra ainda que, além do caráter estético da política eleitoral, o cidadão médio brasileiro é carente de informações e não dispõe de tempo ou vontade de angariá-las. O candidato ou aspirante que, de maneira hipócrita, adota um discurso antissistema para, ao ingressar, usufruir dele, pode não ter êxito, pois estará implodido a escada durante a escalada.

Em face dessa distopia brasileira, o doutorando em Ciência Política recomenda cautela para as empresas de propaganda que já estão explorando as técnicas de análise e agrupamento de dados digitais com fins eleitorais. Ele ressalta que essas mesmas ferramentas podem ser utilizadas em benefício do sistema político: por exemplo, para o fortalecimento da participação democrática e para a identificação de demandas e formatos de políticas públicas.         

As redes

Joscimar Silva ajuda a identificar as potencialidades – já em exploração pelo marketing político –, no Brasil, de três das principais redes sociais: o Twitter, o Whatsapp e o Facebook. Ele entende que, apesar de todas as promessas das agências, o trabalho com análise de uma montanha de informações para parir um rato de propaganda custa muito caro para que se garanta alguma eficácia. Em épocas de vacas magras e rigidez nas normas de financiamento de campanha, haverá uma restrição natural ao uso eleitoral do Big Data. “Para atuar em uma única mídia social, as ferramentas são caras. Sei que robôs, fakenews e multiplicadores serão uma constante. Não sei se a campanha será tão direcionada, mas haverá competição exagerada nas redes”, prevê.

O Twitter, caracterizado pela limitação de caracteres, é o mais poroso para a chamada raspagem de dados. Ou seja, a mídia oferece mais condições de, gratuitamente, dados de usuários poderem ser capturados com a utilização de softwares, que permitem até a técnica por filtragem por grupos e amostras.

Sobre o Whatsapp, Joscimar aposta na campanha direta, vocativa, porque é uma ferramenta que permite a certeza de que a mensagem chega ao destino e a grupos de indivíduos pré-selecionados. Outra vantagem é a exploração dos multiplicadores, voluntários e pagos, que atuarão na propagação dos anúncios. O pesquisador entende, por exemplo, que o serviço de mensagem por telefone será o preferido para a captura de eleitores indecisos.

Contudo, entre as ferramentas, o Facebook merece destaque. Ele é a arena ideal não necessariamente para pedir votos, mas para direcionar temas e agendas a serem manipulados pelas campanhas. É nele que os robôs (socialbots) atuam de preferência, desafiando as regras e a fiscalização por bombardearem milhares de postagens por minuto de centros de informática (troll farms) em países como Rússia e Índia. Como lidar? Não importa, os perfis falsos, por meio de suas “notícias” enquadradas como “verdades” ao gosto do produto e do consumidor, recorrentes na timeline, têm grandes chances de convencer o usuário de que dado assunto, com dado frame, é fundamental para você e para o país.

E o poder do Facebook está em sua popularidade no país. Segundo o TSE, somos 146,29 milhões de eleitores. Os brasileiros com conta na rede já somam 102 milhões, segundo balanço da empresa. Claro que nem todo eleitor usa o Facebook e nem todo usuário possui idade para votar. Contudo, do total de brasileiros com conta, só 9% têm menos de 17 anos, ou seja, não são eleitores obrigatórios. Os outros 91% são. Assim, aproximadamente 60% do eleitorado brasileiro estão no Facebook. E isso é muita gente.

Sobre o perfil mundial de usuário – não há por que ser diferente no Brasil –, também segundo dados do próprio Facebook, 67% dos titulares de conta usam a rede todos os dias, em um intervalo médio diário de 22 minutos. Some por mês e por ano que se verá que é muito tempo.

Sabendo de tudo isso, para vender seu sabão em pó, os marqueteiros já estão de olho nas nossas pegadas, e com lupas que só eles têm. E assim, incautas e distraídas, elas deverão indicar o rumo do Brasil. Que o Santo Zuckerberg nos guie e proteja! 

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista política