Cinco crônicas de uma Greve Geral

Cobertura de O Beltrano das manifestações de sexta-feira


Foto: Lucas Simões

Um dia de Greve Geral

Por Juliana Afonso

Olho o relógio: 2h30 da manhã. Da sala, eu ouvia Raul Seixas cantando “O dia em que a terra parou”, uma tentativa de motivar os que acabavam de acordar e os que tinham virado a noite. Um café, algumas conversas. Parecia que eu ainda estava dormindo. Foi preciso lavar o rosto com água fria para fazer o corpo acompanhar a mente. Trocar de roupa, calçar os sapatos, entrar no carro.

Foto: Clésio Mendes

Na porta da maior garagem de ônibus da região do Barreiro, quatro pessoas nos esperavam. O objetivo era garantir que, naquele dia, nenhum dos 97 veículos circulasse. O movimento acontecia de forma simultânea nas 58 garagens do sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte. A ação era fundamental para garantir a Greve Geral, convocada em todo país. A última Greve Geral da história do Brasil havia acontecido há mais de 20 anos, em 1996.

Os motoristas e cobradores da maior garagem de ônibus da região do Barreiro estavam mobilizados. “Pelo menos 50% da frota tem que parar”, disse um dos primeiros funcionários que chegou ali para bater o ponto – garantia para não perder o dia de trabalho. Vez ou outra a Polícia aparecia, conversava, ligava o giroflex e ia embora.

Ali, na porta da garagem, alternávamos entre conversas e o Facebook, satisfeitos a cada notícia de adesões, trancamentos e manifestações naquele 28A. As horas passavam. Vez ou outra a porta da garagem se abria. Pensávamos então que os ônibus começariam a sair, um atrás do outro, mas após manobras eles voltavam para dentro.

“O patrão chegou”, disseram. A tensão era geral. Horas depois, alguns dos 97 ônibus começaram lentamente a sair da garagem. “O principal é o pessoal da ‘duas levas’ (motoristas que trabalham no horário de pico da manhã e voltam para o da tarde). Esses, hoje, não rodaram. Agora começam a sair alguns gatos pingados. Mas o patrão já não vai botar pra andar os 97. Só pra bater lata (jargão para andar vazios)? É melhor deixar na garagem”. Já eram 7h30.

Foto: Juliana Afonso

Saímos de lá para integrar a marcha, marcada para 9h na Praça da Estação. No caminho, trânsito, fruto dos trancamentos feitos em diversas vias nos bairros São Gabriel, Betânia, Centro e outros, além do Anel Rodoviário – que passou por três trancamentos ao longo do dia. Ouvíamos pelo rádio a cobertura jornalística que insistia em falar mal do trânsito e trazer depoimentos de pessoas que não conseguiam se locomover como forma de desmoralizar a greve.

A chuva foi chegando devagar e logo caiu forte. Veio como um balde de água fria. Imaginei a quantidade de pessoas que ficariam em casa e como ela desmobilizaria a manifestação. “Logo agora…”. Mas o afluxo de pessoas para a Praça da Estação era grande. Quando todos começaram a andar, as bandeiras e os guardas chuvas coloridos encheram a avenida Amazonas e, logo, tomaram conta da Praça Sete.

Belo Horizonte, certamente, já viveu manifestações maiores. A adesão à greve, porém, foi uma das maiores da história. Segundo a Central dos Sindicatos Brasileiros, mais de 35 milhões de pessoas deixaram de trabalhar em todo o país. O recado foi dado.

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A manifestaçâo em quatro tempos

Por José Antônio Bicalho

Foto: Lucas Simões

Tempo 1

Saindo da Praça Afonso Arinos, junto aos professores e ao povão do Norte de Minas, do Jequitinhonha e do Vale do Mururi, uma gente bonita e de luta, demos rapidinho na Afonso Pena. Éramos poucos, pelo menos para fechar as duas pistas principal avenida de BH. Debaixo da chuva grossa, fomos contra os carros. Os guardas já sabiam da nossa intenção e fecharam tudo antes que precisássemos brigar com os motoristas. Então, seguimos para a Praça Sete, uns três ou quatro longos quarteirões, sob a fortíssima chuva que caía às 11 da manhã. Guerra é guerra.

Então apareceu ele. O cachorro. Grande, peludão, sem dono e disposto a nos acompanhar. Pêlo que não via água desde sempre, e por isso impermeável. Foi andando junto a nós, aos carros de som, à turma da enxada do norte de Minas, trançando entre os professores, com gosto, sem baixar a cabeça, sem se deixar fazer carinho, com muita dignidade, sem se deixar fotografar, sabendo-se militante canino.

Correu entre as pernas, cabeça erguida, chuva no lombo… e seguiu em frente, no meio dos carros que eram os últimos à nossa frente, que passaram antes da polícia fechar a Afonso Pena. E desapareceu rumo à Praça Sete.

Tempo dois

Juntamos todos na Praça Sete. Gente que subiu da Praça da Estação, que desceu da Praça Afonso Arinos, que veio caminhando pela Antônio Carlos, que veio dos sindicatos ou que já estava lá desde cedo. A cidade era nossa… pelo menos o principal encruzamento da cidade. Fechamos tudo. Um pessoal de guerra debaixo da chuva. Foi lindo e podia durar para sempre.

Tempo três

Encontrei o diabinho do Gustavo que me disse do movimento inusitado no café do Cine Brasil. Fui ver. A esquerda tomando cafezinho chique, como eu tomo algumas vezes. Não naquelas xícaras com chocolate escorrido, porque não gosto. Pedi uma Bud e paguei R$ 8. No camelô era R$ 5. Na fila do banheiro, de uns dez, rapidinho estabeleceu-se o consenso: mulheres podiam passar na frente e entrar no banheiro dos homens. Se não tiver mulher na fila, homem podia ir no banheiro de mulher. Mas com cuidado para não mijar na tampa. Tudo muito civilizado.

Foto: Lucas Simões

Tempo quatro

Fim de manifestação. Maletta é o lugar óbvio e lógico. Todo mundo lá. Uma onda vermelha nas mesas. Bonito quando vinha o grito “fora Temer” e “volta querida”, e ninguém ficava calado. Cerveja, talvez um pouco demais. Achei muito bonito. Talvez não tenha sido tanto assim.

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Onde a certeza se curva

Por Janaina Cunha

Foto: Lucas Simões

Belo Horizonte amanheceu banhada de chuva e vestida de greve. Enquanto as emissoras de rádio davam conta de uma suposta desmobilização por causa do temporal, a avenida Antônio Carlos acolhia, entre os carros, grupos que se deslocavam a pé para a praça da Estação. Antes das 9h, já havia algumas dezenas deles em frente ao antigo prédio da Estação. Ainda cedo, outros grupos se concentraram em frente à Prefeitura e nos sindicatos. Ao final da manhã, eram milhares.

Foto: Lucas Simões

A estimativa da Central Única dos Trabalhadores era de 100 mil pessoas na concentração final, na Praça Sete. De acordo com a presidente da CUT, Beatriz Cerqueira, mais de 60 atos ocorreram em todo o Estado contra as reformas trabalhista e previdenciária e contra o governo Temer.

Mas esta foi uma Greve Geral marcada por sinais menos evidentes que merecem atenção. Dos bairros ao centro, era fácil perceber as muitas portas fechadas, num protesto silencioso que não necessariamente repercutiu no volume de pessoas nas ruas. Eram os pequenos comerciantes mandando o recado. No Centro e vizinhança, faixas, cartazes e manifestações de diversas cores, sem assinatura de instituições oficiais. Eram cidadãos desvinculados dos movimentos estruturalmente organizados, também preocupados em se fazer notar.

Foto Mjmt / Portal Ouro Preto

Na cafeteria da rua Goiás, de portas abertas, a funcionária confessa à colega que o pessoal gritando lá fora “é música para meus ouvidos”. Pergunto se não tiveram vontade de participar, e uma delas responde: “a gente queria, mas não deu. Até o fim do dia eles (os donos) vão ver que não valeu a pena abrir. Mas pelo menos a gente está aqui para servir o pessoal da greve”.

Paro por mais de uma hora na porta de um desses inferninhos de roupas, acessórios e afins, de baixo custo. Nenhum cliente. O corredor entre os estandes, habitualmente lotado, estava vazio em plena sexta-feira, ocupado por vendedores entediados. A lanchonete em Lourdes, aberta sempre às 7h, funcionou a meia porta até as 13h. Foi decisão do proprietário liberar os funcionários para os protestos.

São nuances de uma cidadania em processo, de uma população que experimenta a cidade para além da convulsão que o caos oferece. E que impõem uma reflexão acerca dos deslocamentos possíveis no campo minado das certezas políticas cada vez mais diluídas em tempos de pós-verdade.

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Um Brasil parado na tela do computador

Por Rafael Mendonça

São João del Rei – foto Katia lombardi

Eram quatro e meia da manhã quando iniciei o que esperava ser um dia longo. O olhar a distância e o desejo de estar em pelo menos 28 lugares diferentes. Mas seria apenas eu e o computador. Olhar para a tela logo cedo me mostrou que, além de longo, o dia seria cheio de emoções. Já na madrugada, tentativas de se fechar garagens, rodovias e aeroportos. Algumas bem sucedidas, outras não.

Foto Mídia Ninja

Eram seis e pouco quando já se tinha notícias de que Curitiba, Recife, Porto Alegre e São Paulo estavam completamente sem transporte público. Um sem número de rodovias, avenidas e caminhos interditados. Eram sete e meia quando começaram a aparecer notícias das pessoas nas ruas. Aos milhares.

O recado foi dado, mas, ao fim do dia o governo falou em fracasso. Kennedy Alencar e Fernando Rodrigues, dois dos jornalistas que mais entendem dos bastidores de Brasília, soltaram matérias com o mesmo discurso. De que o governo sentiu o baque e sua vida ficou bem mais complicada. 

Foto Mídia Ninja

Eram umas dez horas quando já se recebia notícias dos atos em todos os cantos do país, em todas as regiões e em cidades de todos os portes. Ao fim do dia – devo ter ficado umas 15 horas na cobertura -, teria visto fotos de mais de 300 cidades. E isso me animava.

Nas capitais, os atos gigantes começavam. Tirando São Paulo e Rio, que marcaram manifestações para a tarde, multidões tomavam as ruas pelo país. Em São Paulo houve repressão ao fechamento de vias no centro, Ipiranga com São João. No Rio a polícia liberou as barcas na força bruta.

Foto: Jornalistas Livres

Ao fim da manhã, o Brasil estava parado. Eram centenas de coisas acontecendo. Fábricas, refinarias e toda a sorte de manifestações. Arrefeceu um pouco até o início da tarde. Quando as coisas voltaram a esquentar para valer com os atos nas duas maiores cidades do país.

Foto: Ana Carolina Fernandes

No Rio a coisa foi feia. Milhares de pessoas se encontravam em frente à Assembleia Legislativa quando a polícia militar simplesmente atacou. Com bombas, gás e porrada. A onda de violência chegou na outra concentração, na Cinelândia, com mais gente ainda. E a região central do Rio virou praça de guerra. Em sua estratégia, malvada, a polícia cercou e caçou. Houve depredação? Sim, mas não foi a causa da repressão. Foi consequência. O terror se espalhou pelo Centro, Lapa e chegou até Glória e Catete. E por milagre não teve muita gente machucada de verdade.

Mais para o fim da tarde começaram as concentrações em São Paulo. Estimativas davam conta de 100 mil pessoas só no Largo da Batata. Houve invasão no Sindicato dos Bancários que ainda precisa de muitas explicações por parte das autoridades. Mas, voltando ao largo, foi chegando a turma que se concentrou na Paulista. A turma dos anarquistas, dos professores e de dezenas de milhares que seguiram em direção à casa do Temer em SP. O que, na minha opinião, foi um erro, mas que não vem ao caso. No fim do ato, o pau quebrou, claro. A confusão se estendeu do Altos dos Pinheiros, onde fica a casa do Temer, até de volta ao Largo do Batata. Foi feia a coisa.

Foto: Mídia Ninja

E não era só a PM contra os manifestantes. Na grande mídia, a cobertura também foi desonesta. Se desse mais um passo à direita, cairia na esquizofrenia. Não se mediu palavras para desmerecer o movimento. A mídia independente, principalmente o Jornalistas Livres e a Mídia Ninja, tiveram um papel fundamental no registro para a história da sexta-feira. O discurso na imprensa tradicional era de tumulto, vandalismo e impedimento do direito de ir e vir do cidadão de bem. Os repórteres e apresentadores estavam proibidos de usar o termo greve geral.

Mas o recado foi dado pelas ruas: a população brasileira está mesmo disposta a nocautear as reformas trabalhista e da Previdência.

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De Caloi na manifestação

Por Lucas Simões

Foto: Lucas Simões

Seis e meia da manhã. Muito antes das primeiras bandeiras sindicais serem erguidas ou de qualquer caminhão de som estar ligado, o aposentado João Raimundo, 69, já estava na Praça da Estação para a greve geral. “Eu quis ser um dos primeiros a chegar para garantir a união. Muita gente diferente vai se juntar e a gente tem que se unir, se acolher, receber os outros bem. É assim que o povo fica forte”, disse, montado em uma velha bicicleta Caloi que serpenteava as ruas de uma cidade completamente nova para ele.

Esta foi a primeira vez de João Raimundo em Belo Horizonte, em quase sete décadas de uma vida simples construída em Almenara, no Vale do Jequitinhonha, onde nasceu, cumpriu o ensino básico, casou, criou dois filhos e aposentou-se como segurança de banco. Nesta semana, ele decidiu percorrer os 730 km de sua cidade até a capital pela primeira vez, “aguentando firme o sacolejo do ônibus”, para fazer exames médicos e visitar parentes que não via há mais de dez anos. Mas só embarcou mesmo porque lembranças de 21 anos atrás bateram forte.

Foto: Lucas Simões

“Eu podia fugir desse médico, sabe? Eu não gosto de médico. Mas vim com vontade porque em 1996 eu não pude estar na greve, naquela enorme que teve no Brasil todo, que parou tudo. Mas o banco onde eu trabalhava ameaçava a gente. Aí decidi que tinha que estar aqui hoje”, disse.

Foto: Lucas Simões

Debaixo da chuva, João Raimundo pedalava à frente do primeiro dos cinco carros de som espalhados pelas ruas, atrás apenas dos policiais militares que acompanham a manifestação e orientam o trânsito. Da Praça da Estação, passando pela avenida Amazonas, praça Sete e Raul Soares; entre a percussão carnavalesca do Baque de Luta, no meio dos capoeiristas, dos professores, dos funcionários dos Correios e da Petrobras, lá estava ele, como um farol anônimo à frente da multidão. “Tem gente para trás ainda? Meu Deus do Céu…”, ele pergunta tentando enxergar a multidão por completo lá atrás, mas sem esperar resposta, logo com os olhos vidrados novamente à frente, sempre à frente.

“É para lutar pelos nossos direitos agora, não depois. Por que depois esse futuro que a gente tanto sonha talvez não exista mais, né?”