Cine 104: o retorno

Fechada desde dezembro, uma das mais importantes salas de cinema de arte da cidade volta a funcionar


Por Camila Bahia Baga

Belo Horizonte passou o verão sem uma de suas mais importantes salas de cinema de arte. O Cine 104, que interrompeu suas atividades em dezembro passado, volta a funcionar dia 9 de março. A pausa ocorreu devido a mudanças na equipe e no modelo de funcionamento, que por sua vez foram motivados pela queda na captação de recursos.

Diferentemente dos outros espaços do CentoeQuatro, mantidos pelo Instituto Antônio Mourão Guimarães, o Cine é financiado pela Lei de Incentivo Federal à Cultura, a Lei Rouanet, em projeto do qual o instituto é proponente. Embora conte com a mesma empresa apoiadora, o Banco BMG, o Cine 104 captou para 2017 o equivalente a 43% da média anual que vinha captando desde 2013.

Segundo Mariana Godinho, coordenadora do Espaço CentoeQuatro, as mudanças foram “questão de necessidade”. “Nós tínhamos uma quantia que não daria para funcionar o ano inteiro. Entre funcionar alguns meses no formato de antes, ou o ano inteiro em um novo formato, fizemos a segunda opção”, explica.

A nova programadora é Juliana Antunes, diretora e roteirista de “Baronesa”, filme vencedor da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, e uma das curadoras do Cineclube Aranha, do Cine Santa Tereza.

Para Daniel Queiroz, programador da sala de 2012 a 2016, à redução do orçamento somou-se uma vontade já existente de alterar o perfil da sala. “Existia um questionamento interno quanto à ocupação, que era baixa, e se isso estaria relacionado à programação”, diz. Mas a postagem no Facebook feita por Daniel, anunciando sua saída, recebeu mais de 150 comentários pesarosos.

O Cine 104 como era

O Cine 104 traz em sua origem – no projeto aprovado pelo Ministério da Cultura – o objetivo de difundir o cinema a preços populares com fins culturais. Desde sua abertura, em outubro de 2012, privilegiou produções independentes, autorais, nacionais, de produtoras independentes e obras consideradas “de arte” e “relevância”. Em 2016, 61% dos filmes exibidos foram brasileiros e 47%, estreias exclusivas, que só entraram em cartaz na cidade no Cine 104.

Para Affonso Uchôa, diretor e distribuidor independente do filme “A Vizinhança do Tigre”, o trabalho do 104 foi inovador e importante. “O 104 era programado inventando um espaço, inventando a possibilidade de alguns filmes que não tem contato direto com o establishment do mercado de cinema no Brasil conseguirem atingir um público. Esses filmes só chegavam em Belo Horizonte porque a postura do 104 era de criar janelas de exibição para além do catálogo das exibidoras brasileiras. Isso é atuar de uma maneira propositiva diante do mercado, e não ficar refém de uma estrutura que já existe e que exclui” , diz.

A sala foi criada após o fechamento de diversos cinemas de rua, como Usina, Savassi Cine Clube, La Boca, Nazaré, Cine Acaiaca e outros. O caminho escolhido por Daniel Queiroz foi o de preencher essa lacuna. “Eu notava que a cidade estava com um circuito de cinema ficando defasado em relação a outras capitais. Muitos bons filmes que eram lançados no Rio e em São Paulo não chegavam em BH por falta de salas. Eu achei que o caminho interessante para o 104 seria trabalhar como um cinema de circuito, com lançamentos semanais, e que não se preocupasse só com o potencial de bilheteria, mas com a relevância dos filmes exibidos”, diz.

“Era a sala que exibia filmes que eu não veria em outro lugar”, afirma Luana Melgaço, produtora do filme “A cidade onde envelheço”, de Marília Rocha, que está na programação de reabertura do Cine 104. Nos dias que sucederam a estreia do longa no Cine Belas Artes, os ingressos para as sessões das 19:30 esgotavam muito antes das 19:00. “Belo Horizonte é onde o filme nasceu e foi filmado. É uma pena que a cidade tenha demanda, tenha interesse do público, e falhe pela falta de salas”, diz. “A cidade onde envelheço” entra em cartaz no Cine 104 na quinta-feira (9), às 19h, com ingressos a R$ 12 a inteira e R$ 6 a meia.

Projetos especiais

Dado o desafio de atrair público para um cinema não-comercial, fora dos shoppings e da lógica hegemônica hollywoodiana, foi preciso estudar como enfrentá-lo. Um dos caminhos foi a aposta na formação do público em projetos como o Escola vai ao Cinema, Encontros e Cine 104 Mostra: O Cinema de BH, além de sessões comentadas.

Enquanto a média de público por sessão regular foi de 11 pessoas em 2016, nas sessões especiais a média chegava a 50. O “Cine 104 Mostra: O Cinema de BH”, que exibia às terças-feiras produções belorizontinas, obteve a média de 77 pessoas por sessão. Para a sala, era a oportunidade de se fazer conhecida para novos públicos. Para os realizadores e realizadoras, a oportunidade de ver seu trabalho exibido em um esquema profissional. Segundo Juliana Antunes, o projeto será mantido.

O “Escola vai ao Cinema” exibiu filmes para 1.174 estudantes da rede pública, da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e jovens infratores. Os filmes escolhidos foram “Que horas ela volta?” (Anna Muylaert), “Retratos de Identificação” (Anita Leandro) e “A Vizinhança do Tigre” (Affonso Uchôa). Todas as sessões eram gratuitas e comentadas.

“Essas sessões me ajudaram a vislumbrar um pouco da utopia máxima de distribuição desse filme, que é fazer o filme chegar ao seu público. A gente não chega nesse público por uma série de barreiras que não dizem respeito aos filmes nem às pessoas; é uma organização de mercado, uma organização social de importância à cultura. Tudo isso atrapalha as pessoas a verem coisas que às vezes dizem muito respeito a elas, como pra mim é o caso do Vizinhança. Essas sessões pra mim eram especialmente fortes por isso: era o filme encontrando seu público ideal, que ele só poderia encontrar se fosse por alguma iniciativa muito excepcional, como aquela”, diz Affonso Uchôa.

Para além da utilização do cinema como método didático, modo de abordagem comumente adotado, a proposta do projeto era o contato com o cinema como obra de arte, objeto de fruição e questionamento. “O desejo era trabalhar a arte, a alteridade e a sensibilidade: crianças e adolescentes terem acesso a outros mundos através do cinema, ter seus próprios mundos representados e saber ainda que eles mesmos também podem produzir filmes”, explica Maria Elisa Macedo, uma das mediadoras do projeto.

It’s a new dawn, it’s a new day

Juliana Antunes assume a programação da sala, acompanhada de seus novos desafios. Segundo a cineasta, a vontade é que programas como o Cine Quintal, parceria com a Associação Filmes de Quintal, que exibia e discutia ao longo do ano filmes selecionados no ForumDoc, sejam mantidos. A barreira enfrentada, no entanto, é orçamentária. “A maior diferença é, de fato, a redução do orçamento e o que isso acarreta. Para os encontros com realizadores de fora, que eram muito interessantes, não teremos verba. Mas podemos fazer sessões comentadas com realizadoras e realizadores daqui”, diz.

Segundo a programadora, o objetivo agora é atingir um equilíbrio entre filmes autorais e filmes de maior alcance de público. “Teremos filmes mais populares, mas não abandonaremos o alternativo e o nacional”, explica Antunes. “Da minha parte, me interessa muito programar filmes de realizadoras, brasileiras ou não.”

Praça Rui Barbosa, 104

Embora se situe na região central, com acesso a metrô e diversas linhas de ônibus, a localização do 104 não é das melhores, numa porção um tanto degradada da cidade. Para Affonso Uchôa, isso deve ser somado na equação da bilheteria do cinema: “Eu acho que o 104 não tinha problemas de programação. Ele tem um problema de frequência, e que não é só o cinema que irá resolver. É um problema de compartilhamento do espaço público, de circulação entre as diferentes classes no espaço urbano, um problema de urbanismo e de democracia”.

O cineasta considera que só uma programação regular e significativa poderá de fato alimentar o espaço e, consequentemente, o cinema: “Você só resolve isso atraindo as pessoas para verem mais que um filme naquele lugar. Tornando aquele centro cultural um lugar de referência, pujante, atraente, vivo, em que as pessoas vão ver shows, exposições, feiras, residências artísticas… e vão até ver um filme”, diz.