Cura para uma cidade cinza
Projeto Circuito Urbano de Arte (Cura) inaugura mirante de arte urbana, com quatro murais pintados nas fachadas cegas de prédios do hipercentro, vistos da rua Sapucaí
Texto: Lucas Simões Fotos: Beto Hektor
Há dez dias, a rua Sapucaí foi transformada por grafites e pinturas. Na semana passada, do charmoso mirante em frente à Benfeitoria, no bairro Floresta, era possível ver cinco artistas suspensos em andaimes, espalhando os últimos lances de tinta spray pelos ares e finalizando gigantescas pinturas de até 50 metros de altura, em quatros prédios do hipercentro de Belo Horizonte. No fim do dia, exaustos do trabalho intenso, eles observavam as próprias obras quase acabadas: uma baita provocação à cidade.
“É importante frisar que não estamos apenas colorindo a cidade. Vai muito além disso, é um resgate, um ato político, como todo ato artístico”, adianta a artista Priscila Amoni sobre o impacto que o projeto CURA – Circuito Urbano de Arte começou a criar instantaneamente na capital mineira. No domingo, uma festa na Benfeitoria comemorou a finalização dos grandes murais, o primeiro passo de uma proposta maior para a cidade.
Idealizado há dois anos por Juliana Flores, Janaína Macruz e Priscila Amoni, o CURA é o primeiro mirante de arte urbana do Brasil, de onde é possível contemplar todas as imensas telas do mesmo lugar: da rua Sapucaí. “Não temos notícias de outros mirantes de arte no mundo, a céu aberto, desse jeito, mas não posso afirmar que é o único. Do país, com certeza é o primeiro e vamos expandi-lo no ano que vem. A ideia é envelopar esse horizonte onde houver espaço, instigar as pessoas a se reunir no mirante, mas também descobrir ângulos novos para se chocar com as obras enquanto passam pela cidade. As pessoas começaram a enxergar telas onde havia apenas empenas cinzas, fachadas vazias. Isso é demais”, se empolga Juliana Flores.
As empenas ou laterais cegas que estimularam a ação do CURA foram comumente usadas para permitir a construção de prédios lado a lado, sem espaço entre eles. Como a prática de engenharia foi proibida na década de 1980, as que já existiam foram mantidas em cinza. “Houve um período em que podia ter publicidade nessas empenas. Mas, depois, em BH, até esses anúncios foram proibidos e elas ficaram completamente cinzas mesmo. Resolvemos usar as empenas para dar outra perspectiva à cidade”, completa Juliana.
Inspiração
Uma ideia que habita o imaginário da capital mineira há quase duas décadas. Isso porque o CURA é abertamente inspirado no pioneirismo do artista Hugues Desmaziéres, francês responsável por pintar pelo menos sete empenas emblemáticas em Belo Horizonte, entre 1985 e 1995, incluindo o famoso retrato de Tiradentes: uma arte de fundo azul marcante, registrada na empena do prédio de número 39 da rua Rio de Janeiro, esquina com a avenida do Contorno.
Quase todas as obras de Desmaziéres, a maioria referente a ilusões de ótica e debates sobre progresso e questões ambientais, foram deterioradas ou apagadas, incluindo Tiradentes, sumido dos horizontes da capital em 2014. “Aquilo fazia parte de uma memória intensa para a cidade. Elas marcaram momentos, infâncias, inspirações, um mundo de possibilidades daquela Belo Horizonte. Agora, queremos propor algo similar com essa Beagá contemporânea”, diz Juliana.
O CURA prezou por trazer uma diversidade artística além das fronteiras geográficas da capital, numa tentativa de também enxergar a metrópole “de fora”. É a missão dada aos artistas convidados Tereza Dequinta e Robérzio Marqs, de Fortaleza (CE), e da muralista espanhola Marina Capdevilla. Além deles, o projeto conta com belo-horizontinos Priscila Amoni, também idealizadora do CURA, e Thiago Mazza.
Das obras mais impactantes, a pintura de Priscila Amoni traduz a perspectiva audaciosa e intensa do CURA ao estampar uma mulher negra rodeada de plantas medicinais da cabeça aos pés, com a sugestiva palavra “coragem” grafada quase ao acaso, no meio do imenso desenho que preenche a empena do Hotel Rio Jordão, na Rua Rio de Janeiro, 147, com vertiginosos 50 metros de altura e 16 metros de largura. É o segundo mural mais alto já grafitado no país, atrás apenas da pintura feita pelo artista carioca Toz, no Hotel Marina, no Rio de Janeiro, marcada em um edifício de 26 andares, com 75 metros de altura e 10 metros de largura.
“No primeiro dia da pintura, eu tive uma grata surpresa ao chegar perto da superfície. Por que vi que, ao lado de várias inscrições publicitárias, no meio da minha empena tinha a palavra ‘garagem’ escrita. E eu faço há anos um trabalho de intervenção transformando as ‘garagens’ da cidade em ‘coragem’. Mudo as letras, faço a intervenção nos portões dos outros e dou o fora. Então, quando cheguei para fazer o desenho, decidi manter o ‘garagem’, agora adaptado para ‘coragem’, como já fazia antes”, diz Amoni.
“Na minha arte, estou falando de resgatar a ancestralidade negra, de elevar o poder feminino e estampar isso no hipercentro, onde a cidade passa. Estou falando da medicina indígena, das florestas mortas. Cada planta que pintei representa uma coisa. A dracena é a planta de Iansã e representa força. A lavanda e o alecrim são a calma e a alegria. A marada, que brota na cabeça da mulher, é onde nasce a beleza. Nós, artistas, trazemos uma mensagem forte refletindo a cidade, não apenas enchendo suas paredes de cor”, afirma Amoni.
A espanhola Mariana Capdevilla, radicada em Barcelona, assina a pintura do terceiro mural mais alto já grafitado no Brasil. Sua pintura preenche o empena do Edifício Trianon, na rua da Bahia, 905, ao lado do Othon Palace, com escala de 44 metros de altura e 20 metros de largura.
Reconhecida muralista na Europa, ela também tem obras em países como Estados Unidos, Canadá e México, com influências de técnicas de pintura Renascentistas, como o sfumato que cria suaves efeitos de esfumaçamento entre tonalidades numa perspectiva altamente realista. Além disso, em tom provocativo e despojado – como idosos que representa de forma pouco convencional em seus murais -, Capdevilla decidiu abordar o carnaval político de Belo Horionte.
Sua pintura carrega um choque de cores vibrantes que fazem alusão ao carnaval nascido na icônica Praia da Estação, em 2009, incluindo na obra o desenho de um estandarte em homenagem ao movimento que impulsionou a festa momesca na cidade. “Quando recebi o convite, resolvi me inspirar em Belo Horizonte. Me contaram do carnaval e do fator político. Ouvi muito sobre isso, e quis representar esse movimento, já que é algo novo para mim e diz muito sobre a expressão da cidade. Na Espanha não tem carnaval, não tem isso”, diz Marina, empolgada.
Também pela primeira vez na cidade, Tereza Dequinta e Robézio Marqs formam o Acidum Project há 11 anos, em Fortaleza, espalhando por aí suas pinturas com influência surrealista, repleta de lendas urbanas e cenários lisérgicos. Eles ficaram encarregados de pintar a maior empena do projeto, no Edifício Rio Tapajós, também na rua da Bahia, 235, com escala de tem 22,5 metros de altura e mais 37 metros de largura. “Haja tinta”, brinca Robérzio. O casal propôs pintar um mural repleto de códigos e significados sobre diálogos possíveis entre Belo Horizonte e seus moradores.
“Normalmente nós pintamos murais verticais, que são menos complexos. Esse em Belo Horizonte é horizontal e, isso, de alguma forma, foi um ponto de partida para brincar com o horizonte da cidade e a relação de comunicação horizontal que seus moradores podem ter com ela. O mural tem vários códigos e fala muito sobre relação de distância de dois personagens distintos, mas que podem se comunicar bem”, diz Robézio.
“Como a gente trabalha muito o surrealismo, tem sempre uma coisinha que você vai descobrindo aos poucos na pintura. Ela não é uma coisa fixa ou identificável de primeira. Ou seja, é uma tela urbana que vai literalmente dialogar com a cidade, aos poucos. Será uma reflexão constante e mutável, com calma”, completa Tereza.
Uma calma reflexiva que não cabe à bela obra do grafiteiro Thiago Mazza, estampada no Edifício Satélite, na rua da Bahia, 478, em uma empena de 37 metros de altura e 11 metros de largura. Talvez a mais provocativa do projeto, mesmo sem querer. Antes mesmo de ser concluída, a pintura de um galo e uma raposa prestes a iniciar um duelo causou uma pequena guerra entre torcedores de Atlético e Cruzeiro nas redes sociais. E pelo simples fato de o galo estar desenhado na parte superior da empena, enquanto a raposa é retratada na parte inferior.
Sobre a polêmica, Mazza garante que sua pintura não tem qualquer intenção de provocar os torcedores rivais. “Eu esperava a polêmica, mas tentei minimizar ao máximo. O Galo vem por cima porque ele é uma ave. Se eu fosse fazer um gato e um passarinho, o gato viria no chão e o passarinho estaria voando. É a mesma coisa. Independente do Galo estar por cima, a Raposa é muito feroz, a boca dela vista de perto é até maior que o Galo. Mas isso vai servir para as pessoas refletirem sobre o tamanho da paixão delas por futebol e o quanto elas podem mudar a percepção das coisas a partir desa paixão”, diz o artista.
Além disso, ele garante que a inspiração para o desenho não nasceu “necessariamente” da rivalidade histórica entre os clubes belo-horizontinos. E, sim, durante uma residência artística na Rússia sobre contos de fadas, quando retratou a fábula “O Galo e a Raposa”, escrita pelo francês Jean de La Fontaine no século XVII. “Nessa residência na Rússia, me deparei com a fábula do galo e da raposa e, como eu gosto muito de animais e meu trabalho tem muito de natureza e animal, decidi investir nisso. Fiz o desenho dos animais. Já tinha esse esboço e tinha muita vontade de fazer isso na minha cidade”, diz.
“É claro que eu pensava na associação óbvia entre os times, porque são seus mascotes. Pintei dois animais, símbolos do futebol da cidade. Não provoco nenhum dos lados apaixonados por futebol. É assim como na fábula: a raposa sempre tentando dar o bote no galinheiro, a pintura representa esse conflito eterno. Então, espero que ela crie uma discussão saudável, que aquela esquina da rua da Bahia vire a esquina do Galo e da Raposa”, afirma Mazza.
Bastidores
Com os quatro murais praticamente prontos, passar mais de dez horas por dia em cima de um andaime e um balancinho agitando spray, carregando latas de tinta, capacetes e outros acessórios de segurança, não foi tarefa simples para os artistas.
“A minha principal dificuldade foi ter que usar o balancinho no andaime. Tem que estar muito atenta para não deixar cair nada lá embaixo porque pode acontecer”, diz Mariana Capdevilla. “Eu desço várias vezes para conferir como está a pintura. O pessoal manda fotos de longe para a gente ter noção, tem um drone também capturando imagens, mas não consigo ver só no celular. Às vezes desço, então, e isso demora um pouco mais o processo”, diz Thiago Mazza.
A curadora Juliana Flores explica que todos os artistas do CURA pintaram com os chamados balancinhos, estruturas acopladas em andaimes. E não com os LIFTs, plataformas móveis controladas por um braço mecânico, que permitem ao artista se afastar e se aproximar das obras. “Quando fizemos o projeto, os prédios que escolhemos para abrigar as quatro primeiras pinturas não podiam receber a instalação do LIFT, pelas limitações do Patrimônio Histórico. A única opção foram os balancinhos, que são uma pegada mais roots. Pouca gente usa isso para grandes murais porque realmente exige mais do artista, é menos prático”, diz Juliana.
Expansão
A 2ª edição do CURA – Circuito de Arte Urbana já tem patrocínio garantido pela Lei Rouanet e deve acontecer a partir de junho de 2018. Neste ano, o projeto foi viabilizado pela Lei Municipal e Incentivo à Cultura, com patrocínio do Instituto Unimed e da Ambev. A curadora Juliana Flores diz que a ideia é pintar entre 10 e 12 murais somente no hipercentro, “fechando” o chamado Circuito CURA na região, visto inteiramente da rua Sapucaí.
“Iríamos fazer sete murais desta vez, mas não tivemos perna para tanto. Vai ficar para a próxima edição. Mas vamos continuar no centro e pintar o máximo possível. Temos muitas fachadas ainda com empenas, como o Edifício Príncipe de Gales (na rua Tupinambás, 179) e o Hotel Nacional Inn (rua Espírito Santo, 215)”, destaca Juliana.
Além disso, ela diz que o levantamento feito pela curadoria do projeto junto à Fundação Municipal de Cultura (FMC) também revelou outras potenciais áreas para receber mirantes de arte a céu aberto na capital, como a Praça Raul Soares. “Mapeamos dezenas de empenas na cidade. Naquela região da Raul Soares você tem pelo menos cinco empenas disponíveis. É só olhar para cima. Imagina a praça se torna um novo mirante. Por que não?”, instiga Juliana.