Da casa grande à senzala

A novíssima poesia marginal é política, debochada e vem da favela


Por Janaina Cunha

Foto: Zi Reis

 

Nascida e criada na periferia de Nova Lima, a poeta Nívea Sabino tem 36 anos de idade. Graduada em comunicação social há uma década, não conseguiu trabalho na sua área, apesar de ter sido reconhecida como destaque acadêmico na universidade. Em silêncio, ela lembra, buscava resposta para o infortúnio uma vez que, a rigor, deveria estar entre os agraciados pela tal meritocracia. Com o tempo, encontrou várias respostas que, agora, oferece em poemas desconcertantes. Negra, lésbica e dona de uma escrita singular, Nívea arrebata o público em suas performances. Seu corpo fala, e por ele ecoam vozes de milhares de jovens.

“É uma energia que me tira do chão. Não me pertence, me invade. Sei que não estou sozinha”. Tímida e generosa, assim ela descreve a descarga emocional produzida pela defesa dos versos autorais nas disputas poéticas conhecidas mundialmente como Poetry Slam. Extrapolando o conceito de sarau, em que autores mostram seus textos, os eventos reúnem jovens escritores dispostos a duelar com seus poemas. Em geral, são três minutos para cada apresentação, que não pode contar com recursos cênicos, objetos ou adereços. Os textos são avaliados por um júri de não-especialistas, escolhido na plateia momentos antes do início da competição. Quanto maior a fusão entre corpo e palavra, e a contundência do discurso, maior o arrebatamento.

A origem das disputas neste formato é atribuída ao poeta norte-americano Marc Smith, há mais de 30 anos, em Chicago (EUA). O nome Slam! refere-se, em tradução literal, ao verbo bater, e também remete à onomatopéia de um golpe repentino, algo imprevisto. Tanto num sentido como noutro, é a síntese de um movimento poético potente, que a cada dia reverbera com mais intensidade nas periferias e fora delas. E tem sido apontado por estudiosos da literatura como a essência da novíssima poesia marginal no Brasil.

“Se antes tínhamos uma escrita de contestação da ordem hegemônica, promovida pela classe média, o que vemos hoje é um movimento com esta mesma intenção se consolidando em outro território social, que é a periferia”, afirma o poeta e escritor Rogério Coelho, que acaba de defender a dissertação de mestrado “A PalavrAção: Coletivoz e Slam Clube da Luta”, pela faculdade de Belas Artes da UFMG.

Foto: Slam-Clube-da-Luta-Divugação.

Fundador do Sarau Coletivoz em 2008, Rogério Coelho se aproximou da experiência do Slam! há cerca três anos pelas mãos da poeta, atriz e pesquisadora Roberta Estrela d’Alva – belo-horizontina radicada em São Paulo. Em 2014, ele trouxe a experiência para Minas, criando o Slam! Clube da Luta, e incluindo os poetas mineiros no circuito de competições. Depois das seletivas estaduais, os mais pontuados participam da disputa nacional, em São Paulo, e o vencedor representa o país no Grand Slam, que ocorre anualmente em Paris. Entre os jovens poetas brasileiros que chegaram ao mundial está o mineiro João Paiva, do Clube da Luta, em 2015. Este ano será a vez da poeta Luz Ribeiro, do Slam! das Minas, de São Paulo, desembarcar em território francês para a competição em novembro.

O primeiro Slam realizado em Belo Horizonte, lembra Rogério Coelho, foi uma ação experimental, com apenas oito participantes e sem muita referência técnica. “O mais próximo que conhecíamos disso eram os duelos de Mcs, da cultura Hip Hop, que também se ampara na competição. Então, fizemos intuitivamente. Aos poucos, ganhamos força neste entendimento da palavra como um lugar pleno de questionamento com explosão, colocando em xeque a ordem estabelecida e a cultura do privilégio”, ele conta. Hoje, Rogério Coelho comemora a existência de vários coletivos em Minas, como o SlamTernas (bairro Santa Mônica, Belo Horizonte), A Rua Reclama (Timóteo), Slam da Estação (Sarzedo), Ondaka de Poemas Curtos (Uberaba), A Verdade Seja Dita (Vespasiano) e A Rosa do Povo (Itabira), entre outros.

Em todos estes, Rogério Coelho atuou como slam master – uma espécie de mentor, que orienta quanto à metodologia e repassa informações acerca do circuito nacional e internacional. “Estamos lidando com a poesia como forma de auto-representação, promotora de inclusão, em que o autor experimenta seu texto junto com as pessoas do seu entorno. É uma escrita de certo modo condicionada à ação e que inclui o corpo. É o momento da escrita-ação”, ele explica. Nesse universo, já há autores que escrevem especificamente para o formato da batalha, os slammers, assim como o Slam! se compreende como uma categoria bem definida de expressão-manifestação da poesia falada.

Rogério Coelho avalia existirem mais de 500 coletivos slam em diferentes países, reunindo milhares de jovens escritores. Em 2016, 24 nacionalidades conseguiram enviar representante ao mundial na França. Para se integrar ao movimento não é necessário atender a muitos pré-requisitos. Basta o escritor dispor de três poemas autorais, com os quais participa da batalha, e estar de acordo com as regras. “São agrupamentos abertos e sem formalidade estrutural”.

Pesquisador da literatura marginal, Rogério Coelho identifica uma profunda desconexão entre as universidades e as palavras que vêm das ruas e que se elabora no contexto dos movimentos sociais. Em sua primeira tentativa de desenvolvimento de mestrado, em faculdade particular, se deu conta do fosso entre a literatura formal e a realidade. Por isso, levou seus estudos para a Faculdade de Belas Artes da UFMG, onde encontrou pouso para as reflexões em torno da PalavrAção.

“Estes poetas estão buscando autonomia, se afirmando por meio de uma linguagem de auto-representação contra o pensamento hegemônico, independentemente do reconhecimento acadêmico. Aliás, rechaçam esse lugar e nos fazem compreender que ‘o mundo é diferente da ponte pra cá’”, avalia o também poeta, citando verso do grupo de rap Racionais MCs. “Não tem como não ser panfletário, porque está lidando com questões sociais urgentes, como igualdade racial e de gênero. Não é discurso para se ocupar apenas da estética literária ou da forma. Estamos lidando com uma espécie de antropofagia natural e direta”.

A poeta Nívea corrobora o ponto de vista de Rogério, que ela conheceu em 2010, no Aglomerado da Serra, em evento do Sarau Coletivoz. “Quando acabo a performance, deixo de ser poeta e sou de novo a pretinha sapatão. Então, a poesia que faço está impregnado de mim mesma. Ela é política, perpassa esse ser político que eu sou, que luta pelos direitos humanos, que quer acessar uma outra realidade social. Me enxergam de maneira estereotipada e não me vejo refletida nos espaços de poder. Por isso a poesia que faço é o lugar onde posso ser lida de outra maneira”.

Inevitavelmente, ela diz, a performance poética se converte em espaço de luta ideológica bem definida e frontal. Com essa convicção, ela vai para a disputa com a firmeza de quem pretende “virar uma chave na cabeça do outro”, e deixa público e júri arrebatados. Avaliada com nota máxima no último Slam de que participou no Clube da Luta, Nívea está entre as escolhidas para disputar vaga para o Slam BR, em São Paulo. Mas ela não se envaidece com a disputa nem ambiciona chegar a Paris. “Quero mesmo é que as pessoas me ouçam, me vejam, e que estar em público promova alguma mudança de olhar. Se isso acontecer, eu não preciso sair do lugar”.

Nívea Sabino disponibiliza seus poemas no blog www.brancacomoaneve.blogspot.com e teve seu livro de estréia, Interiorana, publicado pela editora Pade no ano passado. Ela pretende lançar, em breve, nova publicação autoral. “Minha poesia é importante para todos que aprendem nos primeiros dias de escola que o racismo existe. Precisamos encontrar maneiras de fazer um registro da nossa história que não seja branco”.

Fundador do Slam! da Estação, de Sarzedo, Fabrício Tadeu de Paula, vulgo Bim, também não poupa o verbo. Aluno de graduação em história, ele escolheu o curso para recuperar a memória ancestral “que a Europa não conta”. E diz que o apelido é herança de infância. “Bim não tem nada a ver com o terrorista. Na verdade, só ‘toco terror’ contra racista, machista e homofóbico”, ironiza. 

Cred-Slam-Clube-da-Luta-Divugação.

Bim, slam máster que sonha ser professor, já foi vocalista de banda de hardcore, skeitista e encontrou assento no ativismo social. Foi conduzido ao universo da poesia marginal pelas mãos de outros ativistas, como Carla de Castro e Rogério Coelho, ao mesmo tempo em que descobria o movimento hip hop. Mas desde criança, ele lembra, gosta de brincar com as palavras. “Trato de questões da periferia, mas não só as dores. Tem muito amor dentro das favelas. A poesia marginal abraça o que a academia tenta nos retirar porque não nos prendemos às regras da Academia Brasileira de Letras. Transformamos em palavras o que vemos, sentimos, vivemos, e estamos dispostos a dizer do que muitos não tiveram coragem de falar”.

Educador social comprometido com a arte, Bim diz que em sua poesia está a assinatura de um autor de periferia disposto a trabalhar com o dialeto das ruas e o jogo dialético da contemporaneidade. “As pessoas não se dão conta de que enquanto aconteciam os saraus na Casa Grande, os negros escravizados também expressavam pura poesia nas senzalas”.

SEM MEDIR FALA

Por Nívea Sabino

Digo que a revolução

será debochada

Segue comigo

vai ser rimada

poetizada

Te apresento em versos

– a maior luta armada –

Negra dominando a fala

e a palavra

por essa eu sei

Que cê não esperava

( fez de mim escrava )

Filha da… empregada!

que procurava vaga

na escola “fraca”

que não era paga

Vim dizer que você fraquejou no plano

de oprimir a negrada

Lá na minha quebrada

a gente rima “favelada”

com” empoderada”

Sapatão é as minas

que irão te mostrar

que seu “liliu” na mão

diante do meu “não”

é uma piada

Ei, macho alfa!

– sofre não! Sofre não…!

Nenhuma mulher mais

independente da cor

ficará calada

enquanto houver outras violentadas

Violeta é a cor

que marca a luta

de resistência ao roxo

que ocê deixou

Preta nagô, nagôôô…

Vamos dizer do tanto

que Dandara lutou

Cê acha mesmo que só barbado

resistiu ao escracho!?

Eu sangro!

– Faça-me o favor!

Não passará, enquanto eu não passar!

Passar gritando,

denunciando

o mundo tosco

que nós criamos

A cada uma hora e meia

uma mulher é morta

Minha poesia

não mede a fala

que põe na cara:

O Brasil é o país que mais mata:

mulher preta

transsexual

e viada

RAPOESIA

Por Bim

Armados de Caneta,

Rajadas de palavras sem engasgo,

O papel manchado de tinta

Isso é meu sangue derramado.

Espalhando resistência,

Nosso Sarau é o Griot dos favelados.

Que faz do conhecimento,

Um grande aliado.

Rimar com sentimento,

Vou brindar com os meus heróis,

Sem querer ser a voz de muitos,

Só provar a muitos que eles têm voz,

Aqui é a rua, o morro, o beco,

A roça, a viela é tudo noiz.

E se duvidar do que eu digo

Conhecerá o seu algoz.

Cada palavra declamada

Traz a essência dessa alma,

Que erra, tropeça e levanta,

Mas não abandona a caminhada.

Esse é meu dejavú

Meu frenesi de toda vez,

Faço da forma lúdica

A minha única lucidez.

A poesia me seduz,

Flow na velocidade da luz,

Padawan que fez da caneta,

Um sabre de luz,

Lado Oeste da força

É que me conduz,

E se for o meu crime

Serei mais um Dimas

Então me pregue na cruz.

Rapoesia são vozes

De revolucionários.

Mas por idiotas moralistas

São criminalizados,

Poesia é a resistência,

E veio okupar os espaços,

Segregados e esquecidos

Por seus governantes arcaicos.

Sarau onde a liga é feita

De Neofilia com Clássicos,

Castro Alves, Carolina

Del Guerra, Di Cássia, DW

São referências

Que valem ouro,

Pra minha mente

Formar mais um esboço.

Nosso sarau se fortalece

Com quem traz

Na voz o peito aberto,

Cada domingo na praça

Faz desse sonho

Um sentimento certo,

Que a poesia

É monumento real

Nessa selva de concreto.

O CORPO DA CIDADE

Por Rogério Coelho

(1° ato Vozes aladas)

Ah cidade, esse meu corpo é meu?/ ah cidade, este meu corpo é seu?/ quando me concentro na dualidade/duelos sobre minha idade/ deixam-me desfacelado./ Dez mil faces aladas/ voam sozinhas pelas periferias/ desgarradas do cerne/ desfringidas do centro/ desmembradas de vozes/ Vão caladas/aladas / caladas/aladas/caladas…/

/ Vozes caladas/ aladas /des-propriadas do antro do dinheiro./ concentram-se no verbo inteiro/ pr’alimentar da esperança um ponteiro/ de horas, de obras// uma seta que finca no meu tempo/ um ponto/ em qualquer lado distante do relógio, estou pronto/sou velho nisso/ dispenso o osso/ só sustenta a rigidez soft-fluida; verbos são alentos da minha alma utópica-suicida/ que nem cerveja ou ópio co-incida/ sou uma seta desconhecida/ que ruma Pra-todo lugar/ que a rima desocupa o cunho vulgar/ somente pra que eu possa xingar/

/ Meu palavrão é feito de regiões extremas //externas/, extensas//regiões muito tensas/// Preciso não ser um/ não preciso serhum/preciso todos, não ser muitos de mim/ muitos de todos/ meus irmãos e membros/ meus irmãos e pernas estão por todos os lado da cidade/ por todos os pontos do corpo da cidade/ por todos os contos da cidade em corporamada//

/ Amo esse corpo/da cidade/Esse corpo é meu, em densidade//dança comigo? Nessa idade, oh cidade/ por que és tão descompassada? Pisa em meus pés/ finca-os na calçada/ onde sou obrigado a dormir/ onde estouro umbrigado a assumir/ minha posição de não ser um? Minha posição de não serhumano!/

/ Debaixo da marquise/ sigo desferindo golpes que encaixo, contra meu próprio estômago/ lutando contra meu próprio desguarnecimento de forças// de membros// e membranas por onde andam os ônibus lotados//os pontos do meu lugar/ entregam meus chákras derramando em cada canto/ vida e trabalho, e operário, e faxineira, e limpadores, e pedreiros, etrafix-cante, e kantinian’ops!?, sofistas, melodramaticistas, nietzscheanos, e desempregados, e desesperados… desgarrados do corpo… se vão// //do corpo /se vão// do corpo/ Membros mortos se enterram, sabia?! Se vão/ encerram-se enquanto parte/ de participação no corpo// não crescem mais de unhas para cavar, jamais/ de mãos para pedir, ou de dedos para mostrar revolta!!//revoltas se vão; dedos se vão; pernas se vão// enterraram minhas pernas que lá no bairro Jaqueline ficaram/fincaram, longe, longevas achavam/ gastaram-se no caminho do dinheiro vivo/ em carne viva// não me empregaram// enterraram minhas irmãs pernas/ cheias de varizes// sem vez! vazias de sangue novo/cem vezes vazias/ pernas velhas demais pr’aviver entre os mortais/// veias, varizes, ruas, córregos, canetas, poemas, punhetas, prisões, prédios, prismas, teorias e canções,/// pessoas velhas demais pr’aviver entre os mortais///preceitos, conceitos, cus, e suores, e sovacos, esgotos, e canos ¾, e buzinas nos quartos de motel, /// pessoas velhas demais pr’a viver entre os mortais /// confusão, sem-fusão, extorsão, corrupção, comédias, coquetéis, televisão/// poetas velhos demais pr’aviver entre os mortais ….escorrem lágrimas e sangue demais!!!!