Democracia e ação

Centro de Referência da Juventude se transforma em motor de construção de políticas públicas


Por Petra Fantini

Publicado em 29/05/2018

Arquivo pessoal

O Centro de Referência da Juventude (CRJ), que funciona desde 2016 num prédio da rua Guaicurus, ao lado da Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte, poderia ter se estabelecido comodamente como um núcleo assistencial para jovens, desses onde a direção define as prioridades e monta a grade dos serviços oferecidos. Mas virou algo muito mais interessante. No CRJ, o que vê hoje é a implementação de uma experiência radical de participação democrática na construção de políticas públicas.

O CRJ foi estruturado pelo município de Belo Horizonte em parceria com o Governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Esportes e da Juventude. As obras de reforma do prédio foram finalizadas em 2014, mas ele permaneceria fechado por mais de um ano. Quando a prefeitura apresentou uma proposta insatisfatória para uso do espaço, que reuniria projetos públicos que já existiam, movimentos sociais ocuparam o prédio em 23 de maio de 2016, exigindo participar da elaboração de um Centro de Referência que trataria de novas políticas públicas. Após a pressão, e com a abertura de um inquérito civil pelo Ministério Público, o CRJ finalmente começou a funcionar em agosto daquele ano.

Seu comitê gestor é formado por dois representantes do Executivo Municipal, dois do Executivo Estadual, três representantes de entidades e coletivos ligados às juventudes da sociedade civil, um do Conselho Municipal da Juventude e um do Conselho Estadual da Juventude. A gerente-executiva (e presidenta do Comitê Gestor) é a arte educadora Samira Ávila, que antes trabalhou no Núcleo Valores de Minas e no PlugMinas.

Arquivo pessoal

O Centro passou por três etapas, como define a gestora: o ano emergencial de 2016, quando a equipe era formada por apenas quatro pessoas, não havia ainda um projeto do que seria o espaço e o local era utilizado espontaneamente; no ano seguinte, chamado experimental, o comitê gestor já estava formado e o trabalho coletivo de diagnóstico, escuta e escritura das diretrizes teve início. As ações participativas, denominadas ‘Cola, Desembola e Mostra CRJ’, ocorreram de abril a setembro de 2017 com seminários, rodas de conversa, grupos de trabalho, plenários e entrevistas individuais com cerca de 400 jovens.

Ao fim deste processo foi elaborado um documento de 90 páginas com as diretrizes e plano estratégico do Centro, baseados nos eixos educação social, trabalho e renda, qualidade de vida, direitos e diversidades, arte e cultura, redes, parcerias e modelo de gestão. Como parte do plano a longo prazo foram conceituados 21 projetos, em fase de implementação até 2020.

Durante o período de deliberação do que seria o Centro de Referência da Juventude de Belo Horizonte, o espaço seguiu funcionando e recebendo atividades. Essa fase de experimentação tinha duas premissas: o espaço teria o mínimo possível de regras para permitir o acesso irrestrito da comunidade e seria o lugar do “sim”.

“[Essa decisão] tem a ver com não pré-estabelecer a demanda do outro. É aquela velha história ‘não fale de nós sem nós’”, diz Samira. A mistura de adolescentes, jovens, moradores de rua e usuários de álcool e drogas que convivem no centro da cidade trazem receios quanto a essas liberdades, diz a gestora, mas as resoluções procuram tornar o CRJ o mais acolhedor e espontâneo possível.

Os diversos movimentos e grupos de juventude da cidade têm lotado a casa, que pode chegar a quase cem atividades por dia. Os dois andares do edifício contam com galerias abertas, uma arena para palestras, salas de aula e dois auditórios – um, especializado em atividades de corpo como dança, está com agenda cheia até agosto. “É uma sala incrível e é a única que eu conheço que é pública”, diz Samira.

Todos podem solicitar o uso dos espaços, desde que cumpram algumas regras. As atividades devem ser feitas pela, para ou com juventudes ou com público que esteja no ecossistema da juventude, como capacitação de professores; respeitar o Estatuto da Juventude; ser pontuais e não monetizadas.

Projetos

As parcerias e projetos permanentes tiveram início na terceira fase do CRJ, neste ano. A Educação para Jovens e Adultos (EJA), uma parceria com a educação municipal, trabalha com jovens em situação de rua. O Centro de Referência foi escolhido para receber o projeto porque se afasta do ambiente escolar, considerado intimidador para pessoas socialmente vulneráveis. Além disso, o acesso do CRJ é facilitado por estar no Centro da cidade.

“São jovens que já frequentavam esse território quando eram Miguilim (antigo Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua). Então esse terreno tem uma ligação histórica com a cidade, com a juventude. De certa maneira a gente quer que o laço dessas pessoas continue”, explica a gerente-executiva. Já o Brota no CRJ, realizado com a Universidade Federal de Minas Gerais, oferece formação em arte com perspectiva integral sociopolítica, cidadã, de construção de projetos de vida.

A metodologia do programa coloca o jovem no centro da ação, em um acordo didático de alinhamento dos desejos, garantindo autonomia aos participantes. Há o entendimento de que o conhecimento está no aluno, não necessariamente no professor. No Brota são oferecidas oficinas de circo, teatro, artes visuais e gastronomia.

Inicialmente vinculado à Fundação Clóvis Salgado, o projeto Ballet Jovem agora é coordenado por uma associação de professores, produtores e jovens e acontece no Centro de Referência da Juventude. “Ele nasceu como política pública e virou projeto da sociedade civil”, define Samira, afirmando que o CRJ se identifica muito com esse movimento, que tem a ver com o empoderamento do corpo social para a garantia dos seu direitos.

Samira analisa, entretanto, que muitos projetos ainda não chegaram ao “jovem de quebrada que tem menos acesso à cidade. Os que vêm já acessam a cidade, mesmo que dando pulão. Não tem necessariamente a ver com poder aquisitivo e sim com uma construção sociopolítica que o permite acessar”. Para isso, falta verba para que os projetos sejam implementados integralmente e disponibilizem vale transporte para os participantes. Chegar a toda a cidade é o maior desafio do Centro, de acordo com a gerente.

Demandas das juventudes

Representantes do Centro de Referência da Juventude participaram da elaboração do relatório da Comissão Especial de Estudo sobre o Homicídio de Jovens Negros e Pobres da Câmara Municipal de Belo Horizonte (http://www.obeltrano.com.br/portfolio/bh-assassina/). O genocídio da juventude negra, afirma Samira, é a pauta prioritária deste segmento da sociedade.

“O genocídio está presente na história não só de Belo Horizonte, mas no Brasil e na América Latina. Tem até o termo juvenicídio”, explica. A sociedade civil que integra o comitê gestor do Centro é formado basicamente por jovens militantes do movimento negro, portanto o tema é bem debatido na casa, além de ser uma das diretrizes do programa. O CRJ está construindo um Memorial pela Vida das Juventudes para homenagear os jovens mortos nas periferias da capital e garantir o direito ao luto. “Muitas vezes esses jovens sequer são enlutados, são dados como bandidos, morrem na rua, não chegam ao hospital. Lamenta-se, chora a morte do jovem branco. E as mortes dos corpos negros são naturalizadas”, declara Samira.

A movimentação política no Centro é conduzida de forma autônoma pelos grupos que se reúnem no local. “Esse é um centro político apartidário e laico, mas as pessoas cidadãs com direitos à participação social e política têm seus partidos”, esclarece a gestora. A discussão também é promovida pelo próprio CRJ através do projeto Pautas Silenciadas, que já trouxe temas como abordagens policiais violentas, a situação das mães das vítimas de violência e a LGBTfobia como patologização.

Apesar de possuírem necessidades especiais, algumas demandas são comuns a todas as juventudes, independente de etnia ou situação econômica. O acesso à educação superior como fim do ciclo geracional de pobreza, por exemplo, é trabalhado no curso de pré-enem oferecido no Centro. Além disso, Samira alerta para a política do primeiro emprego, que é cruel e sucateada, não garantindo perspectiva de carreira aos jovens profissionais. “A oportunidade é para quem, o jovem ou o patrão?”, indaga.

Mesmo necessitados de atenção, as juventudes também carregam as soluções para os problemas do país. Samira é confiante: “eu estou vendo o novo acontecer. Eu estou vendo isso com a juventude que ocupou as escolas, o CRJ, que está aqui presente fazendo arte, cultura, educação, exigindo seus direitos, debatendo, construindo coletivamente”. De acordo com ela, existe uma dinâmica na crise que faz com que as coisas aconteçam. “E eu acho que essa mobilidade própria do jovem tem a capacidade de dar as melhores respostas”, diz.