Diário das detentas

‘A Estrela’, revista com textos e fotos produzidos por presidiárias da Penitenciária Estêvão Pinto, é pioneira ao abordar a vivência e o drama de mulheres encarceradas

Por Lucas Simões

Foto: Ciro Thielmann

Há uma semana, Karinne Cândido de Andrade, de 42 anos, poderia ter deixado a Penitenciária Estêvão Pinto com um salvo conduto de sete dias para ficar com a família, mas decidiu adiar a soltura provisória. Não queria perder o lançamento da revista “A Estrela”, produzida inteiramente pelas presidiárias, que aconteceu na última segunda-feira (25/09), dentro do complexo carcerário feminino do bairro Horto, na região Leste de Belo Horizonte.

“Minha família está brava comigo. Vai ser uma briga quando eu sair, mas precisava esperar a revista ser publicada. Queria estar aqui com minhas amigas. Foi a revista que me fez acreditar em mim mesma”, diz Karinne.

Presa duas vezes por tráfico de drogas, ela diz que depois de cumprir sua pena irá retornar à faculdade. “Eu fazia Direito antes de ser presa, mas agora vou cursar Assistência Social e trabalhar pelos direitos dos menores infratores. Quero trabalhar com direitos humanos”, diz.

“A Estrela”, idealizada pela jornalista Natália Martino e pelo fotógrafo Leo Drumond, ambos da Nitro Editorial, nasceu para que detentos pudessem contar suas histórias e se enxergar como pessoas com direitos, deveres e, principalmente, oportunidades. Logo no editorial, uma das presas, Rosângela de Azevedo, dá um recado que justifica a publicação: “Vivemos como estrelas, num lugar escuro e sombrio, numa imensa solidão”.

Este é o quarto número de “A Estrela”, que antes havia sido editada pelos detentos das associações de Proteção ao Condenado (Apac) de Itaúna e de São João del Rei (MG), e da ala LGBT do presídio de Vespasiano (leia aqui uma das matérias dessa terceira edição publicada por O Beltrano em julho http://www.obeltrano.com.br/portfolio/viver-o-carcere-pelo-olhar-lgbt/ ).

Já a edição atual é a primeira produzida dentro de um complexo penitenciário feminino (leia aqui uma das matérias deste quarto número http://www.obeltrano.com.br/portfolio/noticias-do-lado-de-la/ ).

Segundo a defensora pública Ana Paula Carvalho, que presta assistência às detentas, a edição atual da revista traz experiências “bem mais pesadas da prisão para mulheres do que para os homens”,

“Tudo é um peso a mais para mulheres encarceradas: a questão familiar, a visita dos filhos e a própria guarda das crianças, porque muitas têm medo de perder a guarda por estarem presas. Lendo a revista, você percebe que a questão sentimental é mais ampla e profunda. O sistema prisional do Brasil foi feito para homens, não para mulheres. Então, se é ruim para o homem, é pior para a mulher”, diz Ana Paula.

Hoje, o Brasil é o quinto país que mais prende mulheres no mundo. Nos últimos 16 anos, a população feminina encarcerada cresceu assombrosos 698%, passando de 5.601 para 37.380 entre 2000 e 2016, segundo o último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). De todas as mulheres presas no país, 43% não tiveram sequer os casos julgados.

 

Foto: Leo Drumond

DIA A DIA

Nas 31 páginas da revista, estão histórias que compõem uma espécie de diário coletivo do dia a dia na cadeia e grandes fotografias. Os relatos vão desde as aguardadas ligações telefônicas, liberadas a cada quinze dias para conversas de cinco minutos, e as rígidas regras de visitação aos domingos, que não permitem abraços, até as expectativas para quando a liberdade definitiva chegar.

“Para meu pai, José, sou uma segunda chance. Ele tenta se aproximar depois de ter me abandonado quando criança. Para as minhas filhas, sou tudo, melhor mãe do mundo. Mas, para a polícia, sou apenas alguém que fez mal à sociedade. Para o juiz, sou uma traficante que deve ser privada da liberdade por oito anos. Para mim, sou alguém que se renova e ultrapassa barreiras com a cabeça erguida”, diz parte do texto assinado pela detenta Luana Bispo.

Além de escrever para a revista, a detenta Patrícia Graziele Bernardes, de 28 anos, gravou um videoclipe de seu rap “Com Quem Ficar” dentro da penitenciária, durante a produção da revista. A letra fala da saudade dos maridos e dos relacionamentos homossexuais dentro da prisão.

“Escrevi os textos e essa letra inspirada nas minhas amigas aqui dentro. Aqui, na cadeia, a gente aprende a ouvir, coisa que lá fora é muito difícil”, diz Patrícia.

Todo o material da revista foi produzido por 16 detentas que participaram das oficinas de jornalismo e fotografia ministradas pela equipe da Nitro Editorial durante uma semana do mês de junho, um curto período que alterou por completo a rotina da Penitenciária Estêvão Pinto.

“Nas Apacs foi mais fácil porque é um modelo mais razoável. Em um presídio comum, entrar com câmeras, alterar os protocolos de segurança, gastar o dia inteiro gravando e fotografando, tudo isso foi complicado, mas tivemos muito apoio”, diz o fotógrafo Leo Drummond.

“Eu sofro de síndrome do pânico. Já tentei fazer outras oficinas na cadeia, mas elas acontecem em ambientes fechados e eu nem sempre conseguia. Com a revista foi tão leve e divertido que eu acordava como se estivesse indo trabalhar, como se fosse uma jornalista de verdade”, diz a detenta Karinne Cândido.

“A Estrela” conta com patrocínio do projeto Rumos Itaú Cultural. Serão impressos mil exemplares a serem distribuídos em eventos, como o Festival de Fotografia de Tiradentes, e em órgãos públicos de justiça, como o Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública.

“É um projeto que queremos levar para o máximo de unidades prisionais. Apesar de não termos dinheiro, é preciso valorizar isso. Para o ano que vem, queremos ampliar”, disse a Superintendente de Atendimento ao Preso da Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), Louise Bernardes.

Leia aqui um dos textos publicados na quarta edição da revista “A Estrela”: http://www.obeltrano.com.br/portfolio/noticias-do-lado-de-la/

 

Foto: Ciro Thielmann