Dilemas de Kalil


Por João Gualberto Jr.

Foto: Amira Hissa

 

Candidato e eleito são personagens distintos, mesmo que seja o mesmo ator a vestir as duas máscaras. Os momentos específicos do jogo requerem discursos, estratégias de comunicação e posturas diferentes. É sempre assim. Com Alexandre Kalil (PHS) não tinha como ser diferente. Para quem se vendeu em toda a campanha como “não-político”, uma característica de seu primeiro semestre de mandato à frente da Prefeitura de Belo Horizonte é justamente a política.

Se vivemos num tempo de demonização da atividade e dos indivíduos que se dedicam ao trato da coisa pública, é positiva a caracterização da maneira com que o prefeito belo-horizontino tem tocado sua gestão até agora. A princípio, o fazer política que ele protagoniza não se marca por trairagens, mentiras, malversação do patrimônio, falsos risos e tapinhas nas costas, nada disso que fez exaurir a boa vontade do eleitor brasileiro. Kalil tem se mostrado aberto ao diálogo e ouvido lados diferentes antes de tomar decisões, práticas políticas virtuosas.

Quem as relata e confirma teria, por razões partidárias e ideológicas, todas as tentações em detratar o prefeito. Contudo, militantes e parlamentares que se definem como independentes se assumem positivamente surpreendidos – a base de comparação recente é o estilo político de Marcio Lacerda (PSB), o que contribuiu a favor de seu sucessor.

O empresário e ex-presidente do Atlético turrão, falastrão e de cara amarrada se compromete com a prática da boa política. Até agora! Se podemos chamar de lua de mel esses comportamentos bem intencionados de início de mandato de parte a parte, chegará a hora em que o matrimônio terá que se consolidar, e os papéis de cada cônjuge, a clareza do “quem é quem”, virão inevitáveis. É o que esperam petistas e psolistas, por exemplo.

Kalil será levado a enfrentar dilemas políticos, estes não necessariamente bons, e o empenho em agradar a muitos lados, como tem tentado, tenderá a se comprometer. Em 2018, terá que escolher um lado na sucessão estadual, e essa posição dividirá os vereadores. Ser independente frente a um prefeito que se definiu eleitoralmente não vai mais soar bem: ou é com ele, ou contra ele.

Outro dilema da gestão está entre investir e contingenciar. As secretarias municipais a que se atribuem as principais políticas sociais estão nas mãos de gestores mais posicionados nos campos da centro-esquerda, progressista, mas o núcleo fiscal de planejamento é controlado por quadros caracterizados como “neoliberais”, alguns deles egressos dos governos estaduais tucanos de Aécio e Anastasia. Neste primeiro ano, para enfrentar a intempérie fiscal, o time do cinto apertado está à proa, com domínio do timão. A execução orçamentária, com metade do exercício transcorrido, é de aproximadamente um quarto apenas em relação ao previsto para 2017. Acontece que aperto fiscal não rende voto, e uma hora a prefeitura terá que assumir uma posição mais pródiga. Como ficará a harmonia na composição de secretariado tão diverso?  

A leitura positiva sobre Kalil até o momento pode ter motivação dupla e não excludente. A primeira, fria: filiado a um partido sem base social, o PHS, seria inevitável abrir-se para conversar com todo mundo como estratégia para se consolidar uma base de apoio em uma Câmara fragmentada e, assim, conseguir governar. Não à toa, o gabinete do líder do prefeito, Leo Burguês (PSL), foi apelidado de “Posto Ipiranga”, onde se faz de tudo.

A segunda, mais quente: a simples vontade de realizar uma gestão propositiva que leva em conta as expertises de grupos referenciais nas diferentes áreas de atuação, independentemente de que partido sejam suas lideranças. Fato é que, seja mais por uma motivação do que por outra, a postura do prefeito tem sido compreendida como compromissada com o interesse público de Belo Horizonte. Mais uma vez, até agora.

A cartada mais recente do prefeito foi a nomeação de Juca Ferreira para assumir a Cultura do município. A escolha, definida com secretários mais próximos, foi tomada depois de diálogo com representantes do segmento cultural dentro e fora do Parlamento. Interessante nesse caso é que, ao compor sua equipe, Kalil ainda lembra um cartola: precisa de um meia-esquerda habilidoso ou de um volante de marcação firme, vai ao mercado, contrata e anuncia pelo Twitter. Além disso, convém lembrar que os principais focos de insurgência contra Lacerda, como a Praia da Estação, nasceram de artistas. Portanto, pelo potencial que agregam de amplificação de leituras da política, é recomendável que se deixe para eles a porta sempre aberta.

Entretanto, há incertezas em relação às reais capacidades de Juca para tocar o setor cultural da capital. Além do freio orçamentário, sequer uma pasta específica existe ainda para abrigar o ex-ministro de Lula e Dilma. A recriação de uma Secretaria de Cultura é um dos pontos da reforma administrativa de Kalil, o mais custoso cabo de guerra enfrentado com a Câmara em seu primeiro ano.

A aprovação por unanimidade do substitutivo que trata da reforma, no dia 5 de junho, pelo plenário do parlamento, foi prova clara de consenso e do acordo de boa intenção que há entre Executivo e Legislativo. Todas as cerca de 200 emendas acordadas com os vereadores haviam sido contempladas. Porém, Leo Burguês, em uma manobra temerária ao protocolar um novo texto, meteu os pés pelas mãos e dará trabalho para Kalil reconquistar a confiança do plenário. De toda forma e apesar da atitude tida como unilateral de seu líder, era meritória a meticulosa costura entre os Poderes para se atender ao desejo das bancadas de participarem do governo.

Os grupos progressistas e que se pautam pela agenda de garantias de direitos civis destacam ainda duas ações “vitoriosas” desse início da gestão Kalil: a criação da Coordenadoria de Direitos da população LGBT, em fevereiro, e a desistência pela prefeitura das duas ações (movidas por Lacerda) pela reintegração de posse da área do Izidora, na região Norte do município, em março, onde residem milhares de famílias sem-teto.

O saldo do primeiro semestre é positivo para diversos lados e por várias razões. Mas o “por enquanto”, repita-se, acende no radar. A depender de como sobreviverá aos apertos fiscais e aos dilemas políticos, em suma, quando tiver que ser aferido como homem público em verdadeiros quadros de crise, tomaremos ciência se a surpresa tinha data de validade por ser enganosa ou permanentemente positiva.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.