Do ressurgimento ao auge do Carnaval de Belo Horizonte

“Dizem que a Tetê é uma santa, que faz milagre e coisa e tal. Mas milagre mesmo, minha santa, é beagá ter Carnaval”.


Nos idos dos anos 1990, Belo Horizonte era sem dúvida um túmulo carnavalesco em grande parte da cidade – que se tornava um deserto durante o feriado mais famoso do país. A pasmaceira persistiu até 2009, quando, certo dia, o bloco Tico Tico Serra Copo desceu do alto da Serra em direção ao Centro. Dois dias depois, o Peixoto repetiria a façanha. Esse ano muitos riram, outros dançaram pelas ruas. E veio vindo. Este texto da colaboradora Bárbara Ferreira é o primeiro da série carnavalesca d’O Beltrano. Outros virão com outros temas e assuntos. Acompanhem.

Rafael Mendonça>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Por Bárbara Ferreira (texto e fotos)

“Dizem que a Tetê é uma santa, que faz milagre e coisa e tal. Mas milagre mesmo, minha santa, é beagá ter Carnaval”.

Assim como já falavam os foliões do bloco Tetê a Santa, nos idos do ressurgimento da festa momesca da capital mineira, ela é um milagre, mas esse, sem santos. O milagre do Carnaval belo-horizontino está diretamente ligado a uma ânsia de ocupar as ruas da cidade, a uma vivência comum entre artistas, músicos e pessoas ligadas à cultura e, principalmente, a uma vontade coletiva de criar algo que expresse esse momento da cidade. No entanto, esse Carnaval, que começou acanhado, vem se modificando ao longo dos anos, e hoje atinge o seu auge, trazendo preocupações, polêmicas e uma necessidade de aprimorar e reafirmar essa história de luta e resistência.

Entre as necessidades de se adaptar ao tamanho da festa, a vontade de diversificar e pulverizar os blocos, os patrocínios e suas exigências, o diálogo com o poder público e as lutas e bandeiras de cada bloco, nos últimos oito anos, uma história está sendo construída, mas para muitos integrantes de blocos isso ainda é um desafio constante. E talvez o maior deles seja lidar com a diversidade de sons, de pessoas, lutas e a da própria cidade.

“O Carnaval é sem dúvida um grande aprendizado. A rua é um aprendizado. Estar na rua é aprendizado, tocar é aprendizado. Tocar com diversos tipos de pessoas, interagir com moradores de rua, com moradores de cada bairro em que passamos. Isso tudo é sempre enriquecedor e, como ele cresceu e vai continuar crescendo, acho que tem trazido, cada vez mais, um chamado à diversidade mesmo. As escolhas de cada um, de cada grupo e de cada cidadão”, afirma a musicista Nara Torres, 31, que é uma das idealizadoras do bloco Chama o Síndico e rege a bateria feminina Sagrada Profana.

Diferente dos carnavais de outras cidades, a folia belo-horizontina ressurge de forma tímida, em 2009, e com muita dificuldade de diálogo com o poder público. O que no começo era reprimido, hoje já se consagrou e, muitas vezes, esbarra entre o ser e fazer independente e a necessidade de infraestrutura. A cada ano, novos blocos, mais turistas e mais pessoas querem pertencer à festa. As baterias aumentam, as demandas se modificam e a própria experiência é alterada. No entanto, como algo muito forte e típico do Carnaval de Belo Horizonte, a maioria dos envolvidos com a organização ainda acredita em manter alguns ideais.

Para o integrante do bloco Garotas Solteiras, Jhonatan Melo, 25, muitas coisas mudaram, mas ainda existe a construção coletiva. “Eu acompanhei a evolução da festa de rua ainda antes de ter qualquer envolvimento com a organização de blocos. Obviamente o público mudou, a rua passou a ser ocupada por multidões e os blocos começaram a precisar se preparar de forma mais efetiva. As baterias começaram a ensaiar, o repertório e as propostas começam a abarcar mais possibilidades. Mas continuo acreditando na construção coletiva. Muitos blocos ainda mantêm seus ideais. Alguns, claro, passaram por adaptações e fizeram escolhas que alguns questionam, mas me mantenho nos quais acredito como agentes de transformação”, aponta.

Até agora, não se sabe qual caminho será tomado para a festa da capital, mas para a maioria dos envolvidos o maior desafio é, sem dúvida, conseguir uma estrutura viável, não ceder a pressões do poder público ou patrocinadores e, ao mesmo tempo, manter a tradição do ressurgimento desse Carnaval.

Lutas. Entre a tentativa de manter a sua essência política e a chegada de uma multidão, muitos optam por especificar suas lutas. Entre a luta do movimento negro com os blocos afro, a das mulheres com as baterias femininas e a diversidade de gênero, novos blocos têm surgido, tentando manter o caráter político da festa, e também tentando ampliar o debate com esse novo público. No último fim de semana, ainda no Pré-carnaval, Belo Horizonte foi tomada pelas mulheres, mostrando a potência da festa enquanto modificador social.

Foram três desfiles com os blocos Sagrada Profana, Clandestinas e Bruta Flor, todos eles levantando a bandeira contra o machismo e, principalmente, lembrando que no Carnaval é preciso respeitar as mulheres. Membro do bloco Clandestinas, a estudante de psicologia Raíssa Bettineli acredita que é preciso aproveitar o Carnaval e falar. “Já ouvi foliões dizendo que o bloco não deveria se manifestar, mas talvez a pessoa não saiba de onde ele veio. Acho que temos que aproveitar o Carnaval e essa quantidade de pessoas para falar mesmo. Tem que ser falado no cortejo, nas redes sociais. Não temos mais noção da proporção que ele atinge e podemos chegar a um público muito maior”, afirma a estudante.

O bloco Clandestinas surgiu dentro da Casa Tina Martins, que é um local que recebe e acolhe mulheres vítimas de violência. Com isso, além da bandeira, elas levam a música para essas mulheres, que talvez nunca se imaginaram tocando em uma bateria. Também com uma proposta de musicalização das mulheres, o bloco Sagrada Profana surge de oficinas de percussão, ministradas pela musicista Nara Torres ao longo do ano. É também uma maneira de empoderar as mulheres pela música, segundo Torres.

“Pensei que queria propor algo novo e que estava no meu coração querendo brotar. E dentro dessas discussões todas do feminismo, da mulher mais atuante, mais protagonista, senti que seria a hora certa de começar esse projeto. Saímos com uma fanfarra de 50 mulheres e o que agregou toda essa turma foi o momento que estamos nessa discussão. O feminismo em pauta de novo e as mulheres se empoderando”, explica.

Na mesma linha das mulheres, os blocos afro, que já existem há décadas na cidade, estão tendo cada vez mais visibilidade e fazem questão de reafirmar a sua cultura em meio a esse momento tão plural. “Os blocos afro daqui são incríveis. Tanto o Angola Janga, em que sou uma das vocalistas, quanto os demais, têm a característica de demonstrar – tanto em seu repertório quanto nas políticas de afirmações sociais que fazem fora do Carnaval – que são diferentes. Não queremos apenas montar uma festa agitada, queremos mostrar ao povo preto que o espaço pertence a ele e que ele é o dono de sua própria cultura”, explica a cantora Ana Roberto, 22.

O público LGBT também tem a sua bandeira levantada no Carnaval. Um dos principais blocos que aborda esse tema é o Garotas Solteiras, que sai às segundas-feiras, desde o ano passado. Ao som das músicas de divas pop como Beyoncé e Lady Gaga, eles têm um discurso contra a homofobia e a transfobia. “Alguns blocos são criados exatamente para levarem as questões políticas sociais e humanas para a rua. No Garotas Solteiras, por exemplo, o repertório é criteriosamente selecionado: nós não aceitamos músicas com teor machista, homofóbico, racista ou com discurso de ódio”, aponta Jhonatan Melo.

Patrocínio. Uma outra questão que está rendendo vários debates no Carnaval de 2017 é o patrocínio da cervejaria Ambev e a venda exclusiva de seus produtos. Como a festa sempre se fez sem um aporte financeiro externo e sempre coletivamente, a chegada da empresa gerou desconforto para vários foliões e integrantes de blocos. A maioria é contra a verba privada, principalmente pelo fato de que ela, mais cedo ou mais tarde, virá com imposições a uma festa que é espontânea e na rua.

O músico Ygor Rajão, que tem uma oficina de sopros para quem toca no Carnaval e rege o bloco Pega que Sara, acredita na importância em saber que o ressurgimento do Carnaval foi político. Para ele, com o tempo essa carga política é um pouco esvaziada, mas os blocos tradicionais ainda mantêm isso em pauta. “Acho que vai ser sempre uma questão de ocupar a rua, ser contra patrocínio, eventos fechados, camarotes. Acho que isso vai sempre estar em pauta de uma forma ou de outra. Prezar pela democratização da festa, por sua acessibilidade, isso eu já acho que não vai acabar. Já não é um Carnaval Fora Lacerda e não vai ser fora Kalil”, aponta.

Para alguns, o dinheiro pode ser uma das coisas que tiram a festa do seu sentido de origem. “Patrocínio é algo perigoso. Eu sou completamente contra a cooptação de uma marca de cerveja sobre uma festa que foi feita na raça, pelo financiamento e trabalhos coletivos. Sou contra o monopólio de qualquer marca dentro da festa e quero ter direito de escolher o que vou beber”, denúncia Jhonatan Melo.

O crescimento de alguns blocos é o principal fator para a chegada do patrocínio, já que o público demanda uma melhoria no som, na infraestrutura e na segurança do local onde acontecerá o bloco. Mesmo assim, ainda existem pessoas que acreditam em outras possibilidades. É o caso do economista Rodrigo Castriota, que participa como regente de vários blocos, como o Juventude Bronzeada e o Chama o Síndico. “Acho que existem alternativas fora do patrocínio. A gente tem maneiras de levantar dinheiro, como as festas e a venda de artigos do bloco. Me preocupa que o caminho do patrocínio seja sem volta. Por mais que nos primeiros anos exista uma negociação, concordar com esse esquema pode refletir no futuro”, se preocupa.

Esse ano, a prefeitura de Belo Horizonte espera um recorde de público e de turistas e fechou um patrocínio com a Ambev. Os vendedores ambulantes só poderão comercializar produtos da cervejaria, com a exceção de água e da catuaba. No entanto, a permissão da venda de catuaba se deu após uma polêmica e uma mobilização dos vendedores e dos blocos em favor da bebida, que é sucesso em Belo Horizonte desde os primórdios desse novo Carnaval.