É pela vida das mulheres

Ato desta sexta-feira luta pela descriminalização do aborto no país


Por Petra Fantini

Publicado em 22/06/2018

Rio de Janeiro – Mulheres defendem legalização do aborto e protestam contra CPI na escadaria da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Nesta sexta-feira, a Onda Verde argentina chega ao Brasil e feministas autônomas e de coletivos convidam as belo-horizontinas a lutar pela legalização do aborto no país. Um ato político acontecerá às 17h30 na Praça da Liberdade – o nome do local, inclusive, tem tudo a ver com a temática pela autonomia dos corpos femininos.

Além da capital mineira, o movimento nacional se espalhará por São Paulo, Rio de Janeiro, Londrina, Maceió e Porto Alegre. “A pauta da legalização do aborto é histórica do movimento feminista, mas nos últimos tempos ficou comprometida com as alianças que o governo fez com setores ultraconservadores em nome de governabilidade”, contextualiza Junia Guedes Machado, uma das articuladoras do movimento.

Na Irlanda, a votação favorável a um referendo realizado no final de maio, que revoga a oitava emenda à Constituição, pode permitir que o aborto seja realizado de forma irrestrita até a 12ª semana de gestação, chegando até a 23ª semana em caso de risco para a saúde da mulher e anormalidade fetal. Já a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou, em 18 de junho, projeto que descriminaliza a prática. Agora a discussão segue para o Senado, onde, segundo previsões, também deve ser aprovado. O movimento de mulheres que elaborou e lutou pelo projeto argentino ficou conhecido como Onda Verde por causa dos lenços que usavam.

Por aqui, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), com apoio técnico do Instituto Anis (Instituto de Bioética), ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, pedindo que o Supremo Tribunal Federal impugne os artigos do Código Penal que preveem pena de prisão para mulheres que cometem aborto nos casos não autorizados por lei. A relatora da ação, ministra Rosa Weber, convocou audiência pública a ser realizada em 3 de agosto que discutirá a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

O avanço da pauta na Argentina e Irlanda, países historicamente católicos e que compartilham conservadorismo parecido com o brasileiro, é visto como uma brecha muito importante e “deixa evidente que são as mulheres nas ruas que vão conseguir os avanços”, observa Junia. A vereadora Áurea Carolina (Psol) destaca ainda a força das mulheres jovens nesse processo. “Essa primavera feminista da Onda Verde vem com a força das jovens urbanas, negras, isso me dá muita esperança”, afirmou.

Junia acredita que um grande número de mulheres nas ruas é fator determinante para que a causa avance. “A ideia é criar uma frente feminista pela legalização do aborto, englobando todas as mulheres, as que estão organizadas em coletivos, nos seus locais de trabalho e as mulheres autônomas”, diz a militante, destacando a importância de sair do ambiente online e chegar às mulheres nos seus cotidianos, propondo uma discussão mais ampla que combata o senso comum.

“A discussão é pautada por uma desinformação muito grande, uma carga moralista e religiosa muito forte, então a gente quer criar uma unidade de ação entre as mulheres plurais e também aproveitar esse momento para dialogar com a sociedade”, define Junia. Dentre essas noções pré-concebidas está o medo de que o aborto seja banalizado e usado como contraceptivo.

Relatório publicado em março pelo Instituto Guttmacher, organização dos Estados Unidos parceira da Universidade Columbia e da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF) (https://goo.gl/EoF2j9), porém, mostra que o país com o menor índice de aborto é a Suíça, onde a prática é legalizada de forma irrestrita desde 2002. Portugal também tem diminuído o número de abortos a cada ano desde a legalização em 2007 (https://goo.gl/Gxnjhk).

A luta pelo aborto legal, seguro e gratuito tem como objetivo levar a pauta para o âmbito da saúde pública, dando início a uma discussão sobre políticas de educação sexual não só para as mulheres, mas também para os homens. Junia lembra ainda que mulheres com poder aquisitivo se submetem à prática de forma clandestina mas pelo menos sobrevivem, enquanto outras que não têm essa oportunidade estão arriscando a sua vida e efetivamente morrendo.

Junia e Áurea estão confiantes com a possibilidade do Brasil conseguir avançar na discussão pela descriminalização do aborto, “desde que aproveitemos que nossa disposição de ir para a rua está latente”, diz a militante. Há também, segundo Áurea, uma forte reação à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/15, fruto de uma manobra política chamada “cavalo de Troia”, que pode criminalizar os tipos de aborto já permitidos.

A lei original tratava da extensão da licença-maternidade para o caso de bebês nascidos prematuramente, no entanto deputados da Comissão Especial da Câmara incluíram uma mudança no artigo primeiro da Constituição que enfatiza “a dignidade da pessoa humana desde a sua concepção”. A discussão que ocorrerá em breve no STF também soma para motivar a luta. “É importante que a gente esteja mobilizada até lá. Esse ato vai ser o início de um movimento crescente e é uma oportunidade que a gente vai construir no caminho”, define Junia.

Como estratégia para enfrentar argumentos moralistas, a vereadora propõe acolher as pessoas religiosas, respeitando as suas crenças, mas explicando como elas não impedem que o aborto continue acontecendo todos os dias. “As mulheres decidem pelo aborto, precisam fazer o aborto, independentemente das preferências religiosas das outras pessoas ou até dela mesma”, diz. Se é correto ou não sob o ponto de vista moral cabe ser decidido com a autonomia de cada uma, conclui Áurea.

Religiosidade

De acordo com o último Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 86,8% dos brasileiros são cristãos. O mesmo estudo observou que o número de católicos têm diminuído e o de evangélicos está em forte expansão. Sendo assim, os pastores destas igrejas possuem posições de relevância e influência política em suas comunidades, inclusive no tema do aborto. “A Igreja tradicionalmente tem uma posição contra, mas uma coisa é ser contra o aborto como uma decisão religiosa e outra como uma questão do estado”, introduz o pastor José Barbosa Jr, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

O religioso se destaca pela posição progressista em um local tipicamente conservador, entendendo que o aborto é uma questão de saúde pública e direito da mulher. Ao observar sua rede de conhecidos evangélicos, ele diz não ter confiança de que o tema avance no Brasil da mesma forma que ocorreu com os vizinhos hermanos. “O pseudo-argumento pela defesa da vida colou”, lamenta.

José defende uma mudança de estratégia por parte do movimento, focando no argumento da saúde pública. Segundo ele, a pauta feminista de autonomia do corpo feminino não faz sentido para quem é da direita conservadora. “Por exemplo, a Igreja Católica é oficialmente contra, mas quando eu falo e mostro dados dos países onde foi descriminalizado, muita gente muda de opinião”, explica.

O pastor de crianças da 8ª Igreja Presbiteriana Bruno Barroso, por outro lado, é completamente contra a legalização irrestrita do aborto por acreditar que a vida começa a partir do desenvolvimento embrionário. “Se há uma célula ou duas falam que há vida em Marte, no planeta Terra quando uma mulher está desenvolvendo um bebê não há vida?”, questiona.

O religioso defende que a pauta pela legalização irrestrita do aborto está relacionada com um processo de eugenia, ideologia pseudocientífica que busca a “pureza racial”. Como exemplo Bruno cita a organização norte-americana pró-aborto Planned Parenthood, cuja fundadora Margaret Sanger é acusada de ser racista e apoiar o método contra deficientes físicos e mentais nas primeiras décadas do século XX.

Historiadores e centros de pesquisa, como o Instituto Guttmacher, afirmam que o trecho da carta de 1939 com as supostas alegações racistas foi tirado de contexto e que elas não são comprovadas. O pastor também cita a Islândia, afirmando que o país controla o nascimento de bebês com Síndrome de Down através do aborto. O país gélido foi o primeiro do mundo a legalizar a prática, em 1935, mas não há diretrizes públicas exigindo que ela seja feita contra fetos que tenham o transtorno mental.

A decisão é livre e estima-se que tem acontecido com mais frequência desde que, em 2000, o acesso a exames pré-natais de ultrassom possibilitou que a doença fosse detectada. Dados do Ministério da Saúde daquele país (https://goo.gl/UGXKQ9) informam que, entre 2007 e 2014, 64 mulheres que foram diagnosticadas durante a gravidez que seu filho iria nascer com síndrome de Down decidiram abortar. No mesmo período, porém, 22 crianças nasceram com a doença. Em 2016, segundo a Associação de portadores de Síndrome de Down, foram seis nascimentos.

Bruno questiona também a veracidade dos dados que comparam o número de abortos antes e depois da legalização, que comprovariam queda no uso da prática. Segundo ele, a clandestinidade não oferece possibilidade de que eles sejam comprovados. Ele defende que a “cultura do sexo” seria o verdadeiro inimigo a ser combatido. “O governo tem que trabalhar com a educação, a gente tem que acabar com a cultura do sexo, da promiscuidade, antes de querer matar a criança”, afirma.