Empresas e ditadura

Comissão da Verdade apresenta relatório parcial da investigação contra corporações que apoiaram o regime militar


por Lucas Simões

Com atraso de décadas, as empresas que ajudaram a financiar a ditadura militar (1964/1986) e a operacionalizar a repressão contra os movimentos sociais e de trabalhadores estão no foco das investigações sobre este sombrio período da vida brasileira. A Comissão da Verdade dos Trabalhadores e Movimento Sindical apresentou, na última quinta-feira, em audiência na Assembleia Legislativa, relatório parcial do levantamento sobre conivência e apoio de empresas e empresários ao regime de exceção. O trabalho é uma continuidade do realizado pela Comissão Nacional da Verdade, finalizado em 2015, no governo de Dilma Rousseff, e está dividido em duas frentes distintas.

A primeira delas é liderada por Sebastião Neto, secretário-executivo do Fórum de Trabalhadores Por Verdade, Justiça e Reparação. Após conseguir o apoio das dez centrais sindicais do país, o grupo estabeleceu o Grupo de Trabalho da Comissão da Verdade no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para levantar documentos sobre a participação das empresas que contribuíram com o regime militar.

“Sabemos que são muitas, centenas. Só em Minas Gerais, pelo menos 50 empresas cooperaram com o golpe. Vamos levantar no país todo. Estamos certificando casos de tortura dentro de empresas, informações repassadas por empresários para criminalizar sindicalistas, tudo isso. E queremos processar os empresários que participaram da ditadura porque é justo que as empresas arquem com isso”, diz Sebastião.

Sebastião Neto (membro do Fórum dos Trabalhadores por Verdade Justiça e Reparação)

Ele cita o Caso Volkswagen como um exemplo. Em 2015, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou a montadora alemã por crimes cometidos contra trabalhadores do ABC Paulista. Após o episódio de repercussão mundial, a Volkswagem se tornou a primeira empresa a negociar uma reparação judicial por participar e financiar a ditadura no Brasil.

“Ainda será firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) prevendo sanções e reparações aos trabalhadores perseguidos e também referente ao financiamento da montadora ao golpe. Isso está nos últimos ajustes. Temos provas de que a Volks passou ao Dops informações de funcionários ‘subversivos’, além de ter doado ao Exército carros. Só para citar dois exemplos”, diz Sebastião.

A previsão é que o relatório completo da Comissão da Verdade dos Trabalhadores e Movimento Sindical seja apresentado no dia 5 de dezembro. O trabalho complementar, da Comissão da Verdade de Minas Gerais, versão estadual da Comissão Nacional da Verdade, apresentará suas conclusões pouco depois, em 11 de dezembro.

O professor Jurandir Persichini Cunha, conselheiro e coordenador adjunto da Comissão da Verdade de Minas e do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, adianta que o relatório mineiro, em elaboração há quatro anos, também terá um foco no movimento sindical, com recorte para dois episódios marcantes: o Massacre da Usiminas, em Ipatinga, e a repressão na mina de Morro Velho, em Nova Lima. Em estimativa preliminar, ele adianta que pelo menos 3.500 trabalhadores foram afetados em todo o Estado pela repressão militar, com conivência das empresas.

A pesquisa vai além do período ditatorial, compreendido entre 1964 e 1985, e cobra punições para casos que antecederam o golpe militar, desde a década de 40. “Nós partimos de uma pesquisa desde 1946 até 1988, porque é um período de extrema repressão. Havia uma preparação de terreno para o golpe. E muita gente foi criminalizada, antes mesmo da ditadura, como os comunistas, e até mesmo depois, na redemocratização”, diz Jurandir.

Geraldo Pimenta (deputado estadual PCdoB/MG), Jurandir Persichini Cunha (conselheiro e coordenador adjunto da Comissão da Verdade de Minas e do Núcleo de Estudos Sociopolítico da PUC Minas)

O professor é um sobrevivente direto do Massacre da Usiminas, no inesquecível 7 de outubro de 1963, quando ele ainda trabalhava como metalúrgico em Ipatinga, no Vale do Aço. “Militares atiravam com metralhadoras para todo lado”, recordou, emocionado.

Ele revela que, à época, foram dados oficialmente como mortos oito operários, após a ação violenta do Exército contra um protesto de sindicalistas na porta da companhia, mas que o número de vítimas será contestado pelo relatório da Comissão da Verdade de Minas.

“Nós conseguimos provas de que a Usiminas mandou comprar 32 caixões em Belo Horizonte naquela época. Temos documentada essa situação, depoimento do motorista que levou os caixões e do chefe do almoxarifado da época. Vamos contestar isso e provar que houve manipulação”, diz Jurandir.

Uma contestação que também será feita à mineradora inglesa AngloGold. A empresa é detentora da Mina de Morro Velho, em Nova Lima, explorada por mais de 150 anos, desde 1835, chegando a retirar 1.500 quilos de ouro por mês da região. É a mina de ouro mais antiga explorada continuamente no mundo — atualmente as atividades de mineração estão paradas devido à profundidade atingida pela mina.

Somente em 1964, entretanto, mais de 600 operários foram perseguidos politicamente pela empresa e, alguns anos antes, em 1948 e 1949, dois trabalhadores foram mortos em confrontos com a polícia durante protestos por melhores condições de trabalho.

Além disso, muitos funcionários da mina foram afetados pela silicose, doença pulmonar causada pela inalação do pó da sílica emitido na perfuração das rochas. Segundo o relatório da Comissão da Verdade de Minas Gerais, as cidades de Nova Lima, Raposos e Rio Acima, afetadas pelas atividades da Mina Morro Velho, concentram um dos índices mais altos de viuvez do mundo, devido às sequenciais mortes provocadas em homens pela silicose.

“A situação do Morro Velho é chocante porque a maioria dos trabalhadores morreu por doença ou foi perseguida por lutar por melhores condições de trabalho, numa época em que se fazia jornada de 12 horas diárias em condições insalubres. Mais ou menos 176 trabalhadores foram indiciados criminalmente, e ainda não temos o número de mortos pela silicose, mas posso adiantar que é altíssimo. Existem poucos vivos daquela época. Além disso, temos a conta de 93 feridos e mais 3 desaparecidos. E isso é apenas uma parte do que apresentaremos em dezembro”, completa Jurandir.

 

Comunistas presos

Na saída da audiência, uma briga entre opositores e apoiadores da ditadura militar acabou em agressões e prisões, em frente a Assembleia Legislativa. Três membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foram presos pela Polícia Militar, acusados de destruírem banners e faixas do grupo de direita “Resgata Brasil”. Contrarios às investigações, o grupo fazia manifestação no local e pedia nova intervenção militar no país.

No boletim de ocorrência da PM foi registrado que Arthur Ribeiro de Alvarenga, 59 anos, um dos líderes do “Resgata Brasil”, relatou que três pessoas saíram correndo da Assembleia Legislativa gritando xingamentos como “fascistas”, antes de atacar as faixas e banners do grupo, que continham dizeres como “Não seremos uma nova Venezuela” e “Intervenção militar já”.

O professor Warlen Nunes dos Santos, 31 anos, que também prestou depoimento à PM como testemunha ocular da confusão, disse que as cerca de 20 pessoas do “Resgata Brasil” provocaram os membros do PCB e foram “para cima deles”. “Esse pessoal, protestando pela ditadura, estava esperando desde cedo na saída da Assembleia. E já foram provocando, indo para cima. Aí uns três caras não aguentaram, claro. Ficaram nervosos e começaram a rasgar as faixas. Imagina uma pessoa que sofreu na ditadura ter que ouvir ‘volta ditadura!” e “mata mais comunista!’… é revoltante”, disse Warlen.

Os três presos são Ítalo Augusto Ferreira Lima, 39, Pablo Luís de Oliveira Lima, e Getro Taveiro Santos Filho, 32. Eles foram encaminhados para a Central de Flagrantes (Ceflan II). A Polícia Civil não informou se eles responderão a inquérito ou se foram liberados após prestarem depoimento.