À espera do nosso Berlusconi


Por João Gualberto Jr.

Agência Brasil

A promotoria investiga e denuncia casos de fraude em licitações numa cidade importante. São obras de grande porte, nas quais se descobriu que empreiteiras pagavam propinas a gestores públicos do Executivo e do Legislativo. O esquema era o clássico: empresários pagavam por fora para vencer concorrências com propostas superfaturadas. E a propina financiava partidos, políticos e também gestores privados, movendo a velha roda de retroalimentação cíclica dos poderes.

Mas se tratava apenas do início do novelo, o fio da meada. Os procuradores, com aporte das forças policiais e da Justiça, foram aprofundando a apuração e aquela trama de corrupção, cada vez mais ramificada e ampla, assumia dimensões nacionais. Constatou-se que todo o setor de infraestrutura do país havia sido contaminado, ou melhor, sequestrado, corrompido pelo esquema. Estradas, ferrovias, portos, o sistema elétrico nacional, até estádios de futebol, obras estatais de todo tipo foram tocadas sob a orientação do toma-lá-dá-cá institucionalizado entre os poderosos da esfera pública e da privada.

As denúncias cresceram em progressão exponencial, a barra dos tribunais se agitou como nunca e o exército de dominó foi desmoronando, peça a peça. Prato cheio para a imprensa (por dever de ofício e por gosto), a megaoperação jurídico-policial ganhou a adesão da opinião pública. Seu líder foi alçado à condição de herói da República por ser capaz de levar à cadeia figurões nacionais da política e do meio empresarial. Por outro lado, o sistema político-partidário foi esfacelado.

Grosso modo, essa foi a história da Itália nas décadas de 1980 e 1990. Política e polícia se confundiram nas editorias com a operação Mãos Limpas (Mani Pulite), e a instabilidade institucional foi a tônica. Governos ascenderam e não se sustentaram. Eleições parlamentares foram convocadas e reconvocadas em meio ao completo descrédito do eleitorado. E Antonio di Pietro, o promotor principal, vestiu a capa de controverso acusador-herói.

Qualquer semelhança não é mera coincidência histórica. O Brasil não é Itália, a Lava Jato não é a Mãos Limpas, e Moro não é di Pietro. As consequências, por lá, foram consideravelmente mais drásticas, levando à condenação, por exemplo, de quatro ex-primeiros-ministros e a extinção rápida de partidos grandes, como o Socialista Italiano, o Democrata Cristão e o Social Democrata. O que há em comum são dois pontos, além do “modus operandi” do crime corrupção: a influência ideológica e tecnológica da CIA e a desilusão total da população perante o sistema político.

Qual foi o desfecho italiano? Do berço da megaoperação, Milão, emergiu também o mais notável filho político daquele contexto: Silvio Berlusconi. Um empresário bilionário das comunicações, com o carisma do populismo, sentiu a promotoria da Mãos Limpas no cangote dele e de sua “famiglia”. O que fez? Lançou-se na política.

Sem passado na coisa pública, o magnata inventou um partido (com a virtude da virgindade) pelo qual concorrer, o Forza Italia, que conquistou um quinto do Parlamento em 1994. Seu líder, fundador e “dono” assumiu o controle da coalizão de governo. Primeiro-ministro da Itália, no primeiro dos três mandatos de sua biografia, Berlusconi estancou a sangria: demonstrou força, transformou o acusador em acusado (o que acabou por não render qualquer condenação a di Pietro) e criou leis para acomodar a crise sistêmica de corrupção, umas mais moralizantes e outras em benefício da leniência para com os poderosos.

Aguardemos, pois, o batismo do Berlusconi brasileiro. Ele já está aí, só não assumiu a carapuça. Nosso sistema não é a terra arrasada que se viu na Itália, o estancamento já foi posto em curso. Entretanto, o eleitor está de saco cheio e associa política a bandidagem com algema inviolável.

Gente que sabe do bordado, como Malco Camargos, professor da PUC Minas, já o identificou e nele aposta, mas faremos questão de não imprimir nome aqui, pois seria “loucura, loucura”. Um apresentador popular, num programa popular, da emissora de TV aberta mais popular, que trata e presenteia populares por meio de um tratamento popular. Rico, famoso, pai de família, carismático, empreendedor e com o verniz dos tesouros da juventude. A depender dos próprios trunfos, tem ou não tem um nariz de vantagem no páreo?

Passado o turbilhão e restando os destroços, a campanha do ano que vem é imprevisível e, em boa medida, toda projeção depende de Lula. Este humilde palpiteiro aposta que não será dada a ele a oportunidade da candidatura porque sua aposentadoria compulsória é item irrevogável na pauta do golpe. Se ele disputar por teimosia e força de liminar, à espera do trânsito em julgado dos trocentos processos, aí é que o caos se instalará de vez. Porque se a carinha do velhinho estiver na urna, ele leva. E não vão deixar que ele leve. Você sabe quem.

Vamos conjecturar um cenário sem Lula, portanto. A ausência dele vai encorajar muitos aventureiros e determinar um redesenho de forças e coligações entre os grupos. Pode surgir uma miríade de candidaturas, como em 1989, sendo essa variedade, exótica e fragmentada, um indício de que, de fato, entramos em novo ciclo da República. A herança de intenções de voto para o petista, nem Ciro, nem Bolsonaro ou Haddad conseguirão captar majoritariamente. Mas um “outsider” com carisma e capaz de postar-se ungido por uma aura de esperança, esse perfil, sim, ocupará a maior parte da lacuna a ser deixada pelo ex-presidente Lula.

Como demonstraram os dados do Latinobarómetro deste ano – de que tratou esta coluna na semana passada –, nós, brasileiros, nutrimos baixíssima confiança nas instituições políticas, entre elas os partidos, e somos o povo latino-americano com menor nível de confiança interpessoal. Em suma, a sinuca de bico indica que, enquanto povo, abdicamos de nos eleger motor do desenvolvimento. Mas também rejeitamos tudo e todos que têm passado na atividade política. Demonizamos e criminalizamos a atividade representativa partidária e a militância. Logo, esperamos que Dom Sebastião regresse da Cruzada montado em seu cavalo branco ou aporte em nossas costas com sua caravela.

Se esse ungido tiver o dom da prosperidade, mais messiânico demonstrará ser. As limitações para doações a campanhas, no ano que vem, favorecerão o autofinanciamento, às claras, declarado à Justiça e à Receita. Assim, mais do que nunca antes na história deste país, teremos governos e Parlamentos eminentemente plutocratas.

O apresentador popular assegurou publicamente que não é candidato a nada. Porém, perceba quanta movimentação há nesse “nada”. Primeiro, publica um artigo na “Folha de S.Paulo” em que explicita seu entusiasmo às novas tecnologias de informação, desde que sejam democratizadas enquanto instrumentos de transformação social, e declara que não devemos perder tempo para construir o futuro do Brasil que queremos. Daí, encomenda pesquisa quali e quanti para aferir a viabilidade de uma possível candidatura ao Planalto. É noticiado que, com investimento próprio e em sociedade, pretende formar um fundo de financiamento de candidatos a deputado federal. Então, colunas sociais dão conta de que ele se reuniu com um ex-presidente do Banco Central num dia, depois, jantou com o ex-presidente do Supremo e ex-herói da classe média Joaquim Barbosa. Por fim, como cidadão livre, viaja a uma capital do Sul a fim de conhecer um hospital de tratamento de câncer em crianças, com quem conversa meigamente e tira fotos.

Se não é pré-candidato há mais balão de ensaio do que o céu da Capadócia! Do contrário, não seria assediado como um Neymar do voto, de forma explícita, por legendas de centro-direita como PPS, DEM e outras.

O fator Lula ainda é central para se traçar qualquer ensaio sobre a próxima eleição presidencial. Com ele fora, fiquemos de olho na telinha, atentos ao nosso Berlusconi, mais jovem e de melhores modos. O caldeirão da sucessão vai ferver e pode cozinhar todos os insiders concorrentes e intragáveis ao paladar do povo.

Em tempo: Antonio di Pietro entrou para a política depois da Mãos Limpas, foi deputado, senador e ministro de Estado, sempre em campos de oposição aos de Berlusconi. Moro também garante que não pensa em ser candidato a nada. Vamos aguardar o verão, quando se acelera o ciclo reprodutivo das moscas azuis.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista política