A “farewell tour” de Lula


Por João Gualberto Jr.

Foto: Ricardo Stuckert
Lula pelo Brasil – Inhuma (PI), 02/09/2017.

Lula não deve ser candidato a presidente. Essa negativa não resulta de um exame de probabilidade, significando “tender a não ser”. A esse respeito, já é possível afirmar que ele não será candidato a presidente, que não terá permissão para isso. São favas contadas sua condenação em segunda instância pelo TRF da 4ª região, em tempo de tramitação recorde, como foi a primeira por Sérgio Moro, na vara de Curitiba. O ex-presidente simboliza a cabeça do leão na sala dos troféus de caça da Lava Jato, desde que foi deflagrada, há uns três anos.

O espaço está reservado, e as frentes criadas para encurralar esse leão – ou essa jararaca –, não à toa, foram muitas: tríplex no Guarujá, sítio com pedalinhos em Atibaia, compra do terreno do instituto que leva seu nome, palestras no exterior, superfaturamento de obras da Petrobras. A história que calhar primeiro, calhará, e calará: fundamental é barrar sua candidatura pela força da Lei da Ficha Limpa. Essa é uma das metas principais da operação megalomaníaca e pirotécnica que apostou no incêndio indiscriminado da plantação alegando visar queimar apenas os pulgões.

Provável é que Lula não seja nem mais santo, nem mais diabólico, do que qualquer outro figurão da política brasileira. Acontece que é e sempre foi “persona non grata” pelo establishment nacional, unido agora para legá-lo de forma restrita à história. Não é possível suplantar tamanho poder concertado e concentrado.

A acusação da vez foi feita pelo ex-companheiro Palocci. Vindo de quem vem, um velho e muito próximo aliado, representa uma estocada brutal no projeto de uma nova candidatura de Lula. No depoimento do ex-ministro da Fazenda, foram informados haver “pacto de sangue” com a Odebrecht, R$ 300 milhões em propina ao PT e um projeto do partido de se perpetuar no poder valendo-se da produção do pré-sal (seja lá por que vias). Tudo muito forte, mas, outra vez, cadê provas? Como alguém escreveu por aí, se Palocci não tiver provas contra Lula, quem tem?

Antes, convém situar que o ex-ministro é mais um encarcerado pela Lava Jato pressionado pela privação de liberdade e louco para conseguir fechar uma delação premiada com a força-tarefa – ele até mudou de advogado com esse objetivo, contratando um defensor que já conhece o “caminho das pedras”. Qual é a senha para obter o prêmio por colaboração? “Lula fez, Lula aconteceu”. Vide os casos de Delcidio do Amaral, de executivos de empreiteira e de ex-diretores da Petrobras. Falar o que “sabe” é música para ouvidos de procuradores, delegados e juízes. Agora, apresentar a partitura é outra coisa.

Dos diversos defeitos de que se pode acusar Lula, carência de inteligência e de carisma não podem entrar na lista. Então, por que ele insiste em se apresentar como pré-candidato? Será que realmente acredita que se safará de uma condenação conclusiva sendo que, diariamente, por um empenho volumoso, a Justiça, o Ministério Público, a imprensa, o empresariado, os desafetos políticos etc. fazem crer que não há saída e se esforçam para tanto? Não, não é crível que o pai dos petistas fie-se na possibilidade de múltiplas absolvições para ter caminho livre de postular a Presidência. Então, por que ele reeditou a caravana da cidadania pelo Nordeste e, outra vez, posta-se como presidenciável?

Antes de mais nada, porque agir como age é o comportamento esperado de quem se garante inocente. Mais do que isso, a consolidação da imagem de vítima perseguida pela Justiça (pelo establishment) demanda, por sua vez, a construção da pré-candidatura, com a manutenção de seus altos índices de intenção de voto, a ser abortada oportunamente por uma condenação. Como já atestou mais de uma pesquisa de opinião, é grande a parcela do eleitorado que entende haver um apreço especial da Lava Jato pelo ex-presidente, independentemente de ele ser ou não inocente. Daí que o corpo a corpo precoce com o povão faz parte do roteiro de martírio desenhado há tempos.

O embargo a uma candidatura líder, dona de 30% ou mais de intenções, representará protagonismo inconteste do Judiciário no processo eleitoral. Daí que levar ao cabo das últimas consequências o antagonismo entre desejo popular e ação da Justiça é interessante para Lula e para o PT, que sustentam o discurso classista como papel de fundo – e não se quer, aqui, discutir o que existe de factível nele. Uma figura de sua envergadura história e política, com o poder de penetração popular de que continua a gozar, ser barrado por impolutos homens de toga, tende a jogar por terra qualquer interesse desse povão na nossa tal democracia troncha. E Lula sabe bem disso e se candidata, antes de a presidente, a mártir dos pobres brasileiros – especialmente se for condenado à guisa de presunções, convicções e domínios do fato. Assim, é de se supor que seja de seu benefício tocar o barco.

Mas a pose e o comportamento dele rendem mais interpretações. Lula concluiu no último dia 5, em São Luís, sua caravana pelo Nordeste: 25 cidades da Bahia ao Maranhão, mais 4.000 km percorridos e milhões de nordestinos vistos no olho a olho. As imagens oficiais da viagem – raramente estampadas nos jornalões – são impressionantes. O contato físico, as multidões, o suor, a alegria estampada em rostos sofridos, tudo reforça a impressão de que não há estadista vivo no Brasil como ele, amado e odiado como todo grande homem público.

E essas mesmas imagens, somadas aos discursos mistos de indignação e esperança e ao contexto nacional, dão uma tom de “farewell tour” à caravana. E o que Lula fez foi buscar aqueles que o amam em maior concentração geográfica. Há 20 anos ou mais, o petista percorria aquelas mesmas terras em suas caravanas da cidadania detratando o tucanismo reinante e prometendo chegar ao poder com e por aquele povo. Retornou nas últimas semanas, já septuagenário, cansado, viúvo e ferozmente acossado, dono de dois mandatos, oito anos na Presidência consecutivos e muito bem avaliados. Teve jeito de apelo, de agradecimento, mas, sobretudo, de despedida.

Lula não deve ser candidato a presidente, agora, no sentido de não convir, de não ser desejável. Para quem o ama e para quem o odeia, ele simboliza o passado, é um gigante legado (para lá e para cá). Os primeiros entendem que jamais nutriram tanta esperança em um Brasil menos injusto do que nos anos do governo lulista, e anseiam pelo regresso a um quadro de 15 anos atrás. Os outros enxergam nele o passado populista, getulista, demagogo, fisiologicamente corrupto, uma farsa igualitária sustentada pelo contribuinte produtivo, em suma, um modelo já suplantado pelo tempo.

Triste nossa condição de vislumbrar estritamente no passado as mais fortes impressões de nosso mais forte homem público. Triste não existir cidadão que o suplante como símbolo de esperança geral – condição de que o próprio Lula é responsável, claro. Triste um chefe de Estado eleito e reeleito ser condenado e preso a essa altura da vida e, pior ainda, que muitos torçam por isso não movido por sentimento de cumprimento da lei e da justiça.

Compreensível toda a movimentação de Lula, mas, por ter seu nome e sua biografia já registrados na história, por carregar consigo o passado, por ser o passado, ele não deve ser candidato. Não será, o que é triste pela forma como esse impedimento vai se dar. E, se por um milagre, conseguir se fazer candidato, não há de ser, igualmente, motivo para se alegrar.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.